Só por curiosidade: você sabe onde fica El Salvador, qual sua capital, quantos habitantes tem e como anda a vida cultural por lá? Pois é. Não é apenas porque o Brasil fala português e o resto da América Latina, espanhol, que existe essa ignorância abismal: é falta de interesse mesmo, o brasileiro não tem a mínima curiosidade em saber o que rola no resto do continente, tanto em termos políticos, quanto sociais e artísticos.
Com texto da salvadorenha Jorgelina Cerritos, encenação de Márcio Meirelles e interpretação dos baianos Andrea Elia e Edu Coutinho, com trilha sonora ao vivo de Ramon Gonçalves, Do Outro Lado do Mar pode preencher essa lacuna vergonhosa pelo menos em relação ao teatro.
Num embate cerrado entre Dorotea, uma funcionária burocrática de um cartório, e um homem que desconhece tudo sobre si mesmo é o start de uma das peças mais instigantes desta temporada no Rio de Janeiro. Com extrema delicadeza e elegância, o enredo desenvolve o tema da identidade do ser humano, abrindo a vertente para a discussão tanto em termos íntimos quanto sociais.
Ele tem um objetivo: resgatar seu passado através de uma certidão de nascimento exigida por um canil para que consiga adotar um cachorro, mas a mulher é firme em suas convicções, pois segue as regras: sem esses dados, ela nega o papel. Quando a funcionária lhe pergunta coisas básicas no sentido de dar andamento ao processo, se depara com o impasse: o homem não pode satisfazer a burocracia, pois não tem ideia sobre sua origem: não sabe seu nome nem o sobrenome, nem o da mãe nem o do pai e nem seu domicílio, pois mora num barco ancorado perto do cartório. Tentando resolver a questão através de uma mitologia caseira, arrisca: chama-se Pescador do Mar.
Poderá a identidade do ser humano ser resumida através de um papel timbrado? Não bastaria apenas a vontade de ser? É realmente necessário ter um nome para ser identificado e assumido na sociedade? Essas e outras perguntas [sempre com muita ternura e lirismo] compõem um mosaico de reflexões sobre o paradoxo da existência. Uma questão shakespeariana dessa natureza em pleno século XXI beira o absurdo, mas que se há de fazer? O mundo não é mais do que isso: uma sucessão de desatinos e disparates sem a menor lógica ou razão.
No entanto, Jorgelina Cerritos não para por aí, ela vai além. As demandas de cada um se interpõem de forma simbiótica, cada qual defendendo suas posições. Para isso, há uma troca de confidências: a infelicidade da mulher tangencia a solidão de uma funcionária à beira da aposentadoria: ninguém a espera em casa, não teve filhos e sua vida teria que reciclar o termo marasmo em todas as suas configurações menos nobres. Por sua vez, o Pescador do Mar lhe conta que se batizou daquela maneira porque vive das águas, ouve suas vozes, conversa com elas, é íntimo do mar, de sua natureza e destino, sabe do que é feito, de onde ele vem e pra onde vai, trocam informações. São unha e carne. Completam-se. E, para ele, isso configura a felicidade.

Há um instante, milésimos de segundo, em que ambos se entreolham e pensam sobre o que ouviram um do outro; frente a frente, a mulher coloca em xeque sua posição. Ao final [que poderia ser classificada desde já como uma das cenas mais pungentes da dramaturgia mundial], ela lhe estende a certidão, protocolada e carimbada com seu nome, Pescador do Mar, nascido naquele exato momento e certificando que ele finalmente existe, reservando-se a posição de sua real progenitora.

Montada pela Companhia Teatro dos Novos junto ao Toró Teatro, Do Outro Lado do Mar é a primeira versão no país de uma obra de Jorgelina Cerritos que, em 2010, conquistou o importante prêmio Casa de las Américas pela dramaturgia deste texto, que foi encenado em países como Cuba, Guatemala, Costa Rica e Estados Unidos.
Pra fechar, outra reflexão não menos importante: enquanto a elite do teatro brasileiro se banqueteia com textos europeus e americanos, a América Latina continua ficando para trás, o que é um equívoco, pois é aqui que ainda existe vida e esperança. O que estará acontecendo no Peru, no Equador, na Colômbia, na Bolívia, no Uruguai e no resto do Caribe? Até quando ficaremos nesta eterna condição de colonizados culturais, negligenciando autores do nosso próprio continente?

Do outro lado do mar está em temporada no Teatro Poeirinha até 30 de outubro. Informações como ficha técnica, endereço, horários, ingressos, teaser do espetáculo etc., veja em https://teatrohoje.com.br/2022/10/02/do-outro-lado-do-mar-2/.

Furio Lonza é um escritor, dramaturgo e jornalista ítalo-brasileiro.