O dramaturgo e roteirista americano Tracy Letts é um velho conhecido das plateias brasileiras, tanto no teatro quanto no cinema, tanto como escritor quanto como ator. Agosto foi sucesso de crítica e público no mundo inteiro, colecionando inúmeros prêmios e indicações, tanto lá quanto cá.

A Última Ata promete repetir esse êxito, pois o texto foca dois temas bem atuais: a História sendo deturpada por conveniências políticas e sociais e o extermínio de populações indígenas.

Com direção do argentino Victor Garcia Peralta e tradução e adaptação de José Pedro Peter, o elenco de The Minutes (título original) é composto por nada menos que Alexandre Dantas, Alexandre Varella, Analu Prestes, Ary Coslov, Débora Figueiredo, Dedina Bernardelli, Leonardo Netto, Marcelo Aquino, Mário Borges, Roberto Frota e Thiago Justino. Nunca se viu no teatro tanto talento junto.

A rigor, a reunião de vereadores corruptos & gananciosos numa cidadezinha nos cafundós do Brasil não mereceria maiores curiosidades, mas o enredo é instigante principalmente pela atualidade e ficamos à espera do seu desenvolvimento com os dedos cruzados.

No entanto, o roteiro prende o espectador mais pela atuação dos atores e atrizes do que pelo texto em si, que possui alguns equívocos e redundâncias.

Por ser um roteiro nitidamente norte-americano, existe a inconveniência de uma adaptação que seja minimamente verossímil, mas essa é uma pedreira que resvala no subjetivismo.

Tem quem embarca, tem quem tolera e há também quem faça caretas.

A história gira em torno da construção de um chafariz na praça principal, encimada por um homem a cavalo, estátua que representaria um herói local responsável pela defesa da cidade na hipotética invasão de indígenas selvagens lá pelo ano de 1864.

Nesse embate pelos votos a favor e contra, ficamos sabendo que um dos vereadores [Ary Coslov] sumiu ou abriu mão do mandato por estar indignado ou pode até ter sido assassinado. Portanto, seu incerto destino fica em suspenso.
A peça abre justamente com esse mote, levantado com elegância e insistência pelo personagem interpretado por Alexandre Varella, que exige saber o que aconteceu e por que não teve acesso à última ata da reunião anterior, na qual esteve ausente em virtude da morte de sua mãe. Há um silêncio suspeito de todos os outros vereadores, cada qual mentindo ou se omitindo de abrir a caixa-preta que envolve o evento.

Contudo, essa aparente simplicidade dá ao autor plena liberdade de construir um mosaico de informações que se entrecruzam e completam o enigma. Num flach-back oportuno, o vereador aparece na reunião anterior contando uma história completamente diferente em relação ao suposto herói, que na verdade seria um genocida e nunca um libertador. A reconstituição das cenas do fato histórico fictício são impagáveis, onde os atores imitam canastrões de quinta categoria numa amadora & vulgar pantomima de boulevard, auxiliada pela brilhante iluminação onírica de Ana Luzia Molinari de Simoni.

Como disse um dia Tolstoi, descreva tua aldeia que estarás descrevendo mundo. É justamente nesse microcosmo que está escondida a verdade, que, ao final, surge espremida entre o mito e a realidade.

Ao final da peça, há uma espécie de ritual onde os 11 atores metem a mão numa cumbuca com um líquido vermelho, representando inequivocamente sangue, o que é uma redundância, pois todo mundo já tinha entendido que os vereadores tinham as mãos (e a consciência) sujas.

O que dizer dos atores? É um show de talento e competência: como sempre, Analu Prestes é uma festa em cena. Exercendo com inteligência e mestria a ambiguidade de sua personagem, evolui em cena como uma autêntica maga safada; Marcelo Aquino interpreta um pastor com astúcia e perspicácia; coube a Leonardo Netto o papel mais difícil: ao mesmo tempo que sua timidez o impede de recuar de suas convicções, não abre mão da ousadia; Mario Borges, Ary Coslov e Dedina Bernardelli seguem o mesmo diapasão de sagacidade e lucidez; Roberto Frota, Alexandre Dantas e Thiago Justino têm o privilégio de figurarem como autênticos mestres na habilidade de confundir e atrapalhar o veredicto, ao mesmo tempo que elucidam a questão mesmo que inconscientemente; Débora Figueiredo [outro exemplo marcante] soube administrar as poucas falas que o texto lhe dá com a intuição de uma veterana: suas pontuações são cirúrgicas e apropriadas, inclusive quando está fora do foco: seus exercícios de meditação [provavelmente seguindo os ensinamentos de um monastério budista] são hilários. E mudos.

Mas é o personagem de Alexandre Varella que se sobressai, com sua capacidade obsessiva de desvirtuar os rumos dos diálogos, fazendo perguntas inconvenientes e encurralando a turma dos panos quentes num beco sem saída. Ele não deixa pra lá, vai fundo. Bate e rebate, espreme, insiste tanto que consegue, por fim, seu intento de desmascarar a farsa. Desde o começo, ele é o pivô da discórdia. Através de sua falsa polidez & nobreza, com gestos calmos e metódicos, chega ao âmago da trapaça.

É uma peça que merece ser vista e revista por todos os que se sentem ludibriados pelas mentiras que estamos ouvindo desde o colégio. Afinal, o mundo é amaldiçoado justamente por ter sido construído em cima de um cemitério indígena.

A última ata está em temporada no Teatro das Artes

Furio Lonza é um escritor, dramaturgo e jornalista ítalo-brasileiro.