Depois de terminar a trilogia Teatro, Mito e Genealogia, que inclui “Para Acabar com o Julgamento de Artaud” (2001), “Édipo e seus Duplos” (2008) e “Cícero, A Anarquia de um Corpo Santo” (2019), Samir Murad mergulhou em sua ancestralidade para contar a fabulosa história de sua família em mais um solo de sua autoria.

 

Com toda a gana e ímpeto que normalmente antecedem a composição de um texto, acessou a memória, mas percebeu que havia alguns furos. No intuito de preencher essas lacunas, completou com a gravação de depoimentos de seus parentes ainda vivos, que o acompanham durante toda a trajetória da peça com suas vozes graves e sotaques, risadas, tosses & gritos angustiados. Essa verdadeira epopeia de um imigrante libanês que trabalhou no Brasil como caixeiro, onde formou a numerosa família e nunca mais conseguiu voltar à terra natal, é contada de forma coloquial por Samir com uma ponta de nostalgia escancarada, relembrando casos e episódios que fizeram estalar seu radar de emoções.
Avô, avó, pai, mãe e irmãos se alternam na narrativa, ora em áudio, ora em fotos em p&b que aparecem no telão ao fundo. O texto é tão bem elaborado que deixa a impressão de que ele já vinha sendo gestado antes mesmo que o ator se desse conta. Estava encalacrado em suas entranhas, submerso em sua alma provavelmente desde que resolveu trabalhar no teatro.
Cada fato é precedido ou sucedido por profundas reflexões filosóficas que pretendem analisar ou justificar por que a vida lhe doou esse destino. A ancestralidade se mistura com a cultura e o sangue libanês de maneira sofisticada, mas que ninguém se preocupe: Samir sublinha tudo isso através de uma sublime interpretação: seu corpo range, geme e dança ao som de músicas típicas, sempre quebrando qualquer vácuo que porventura venha a se imiscuir na narrativa. É uma história sem fim, tão comovente e surreal quanto o próprio título do monólogo, que poderia ter saído de um conto de García Márquez.
O Cachorro que se Recusou a Morrer é seu próprio pai, que nunca admitiu ser esquecido e morreu lutando contra a senilidade e seus decorrentes vacilos de memória. Num dos áudios mais dramáticos, ele diz: Eu não era tratado como um caixeiro, mas como um cachorro. A partir desse mote forte e pungente, o ator se deu conta que essa história deveria ser contada nos mínimos pormenores.
Dividindo a direção com Delson Antunes, Samir Murad não deixa nada de fora, imergindo num mundo e numa época em que tudo tinha valor, desde o brio e a altivez de seus conterrâneos até o gosto de frutas que o pai colhia do pé, os ventos, a chuva, as trovoadas e a angústia que sempre o acompanhou, mas não se esqueceu de dar uma panorâmica abrangente na política, na Guerra dos Seis Dias e na barbárie que acontece atualmente em relação aos muçulmanos e árabes sob o tacão dos países imperialistas, que os expulsam de suas próprias terras.
Samir Murad comove não apenas com a história que conta de forma admirável e assombrosa, mas também com sua própria figura terna: ele encanta o público mais desatento, cala os ainda reticentes, faz com que os indecisos reflitam sobre sua própria condição de seres humanos num mundo adverso. Diante de sua interpretação soberba, o silêncio na sala de espetáculo parece imitar a quietude de um ato litúrgico numa capela ou no interior sagrado de uma mesquita.
Mas essa serenidade (por vezes) se desdobra num desassossego que pulsa como um molusco no cio. Deus e a fé são colocados em xeque, tudo é questionado, nada passa em branco. As próprias raízes religiosas e culturais do autor são colocadas sob suspeita e contextualizadas de forma implacável, mesmo porque esses fenômenos ainda existem em muitos países: a supremacia do patriarcado, a submissão da figura feminina, a poligamia do homem e os conflitos provocados por uniões não pautadas pela escolha voluntária. Em outras palavras: a eterna briga entre os valores arcaicos e os contemporâneos no mundo muçulmano.
Resumindo: um espetáculo imperdível de um ator que sempre batalhou para manter a dignidade, mesmo com todas as forças contrárias, que privilegiam peças de teatro com financiamentos milionários em detrimento dos franco-atiradores que são obrigados a receber pautas miseráveis como se fossem esmola. Mesmo diante disso tudo, não há rancor, o que subsiste é uma espécie de complacência, um jogo franco de amizade regada com muito amor.

Furio Lonza é um escritor, dramaturgo e jornalista ítalo-brasileiro.