Depois do enorme sucesso obtido com Angels in America, a Armazém Companhia de Teatro resolveu diversificar novamente seu repertório ao comemorar seus 35 anos de existência. Com a montagem do texto de estreia do dramaturgo e roteirista de cinema chileno Guillermo Calderón, o diretor Paulo de Moraes tinha vários propósitos em mente:
(1) levantar uma bem bolada reflexão sobre a pertinência e importância da arte teatral; (2) abrir a polêmica entre a arte e a realidade; (3) brincar com o recurso da metalinguagem, colocando o teatro dentro do próprio teatro e confundir o espectador (no bom sentido) quanto ao que se vê e ouve dos personagens num intrincado mosaico que tende ao infinito e (4) incutir na plateia a necessidade da resistência política em tempos de crise institucional.
O texto de Calderón é forte & complexo. Como se sabe, o panfleto não passa de um reducionismo semântico. Existe o panfleto ideológico (que normalmente resvala em dogmas) e o político (que abre as comportas do humanismo social). No teatro, poucos conseguiram juntar essas duas vertentes com sucesso. Brecht é um e Calderón é outro.
Portanto, seu texto não é maniqueísta. Parte da arte para chegar ao engajamento político e vice-versa.
Neva tem um pouco de tudo: ao mesmo tempo que o elenco encena um texto de Tchekhov numa sala de espetáculo, lá fora, rola a maior carnificina. Não é um dia qualquer, mas 9 de janeiro de 1905, que ficou conhecido como Domingo Sangrento, quando manifestantes que marchavam para entregar uma petição ao Czar, pedindo melhores condições de trabalho nas fábricas, foram fuzilados pela Guarda Imperial.
É nessa atmosfera que os atores fictícios abrem o debate sobre montar ou não a peça, sob o argumento de que seria um escapismo: “Pra que perder tempo fazendo isso? O teatro é uma merda. Querem fazer algo que seja de verdade: saiam às ruas.” O texto também está centrado num dos temas mais caros a Tchekhov: a perda da capacidade de interpretar.
Uma das atrizes é a alemã Olga Knipper (Patrícia Selonk), primeira atriz do famoso Teatro de Arte de Moscou e que foi casada com o dramaturgo russo. Sentindo-se incapaz de representar depois da morte do marido por tuberculose há apenas seis meses, e na tentativa de seguir vivendo, ela instiga Masha (Isabel Pacheco) e Aleko (Felipe Bustamante) a encenarem repetidamente junto com ela a morte do marido, mergulhando numa linguagem poética e num humor extremamente ácido que encanta pela diversidade de conceitos e teses que vão sendo destiladas ao longo da peça.
Neva (rio que corta São Petersburgo) foi escrito em 2005 e estreou em 2006, mesmo ano em que morreu o ditador carniceiro Augusto Pinochet. Portanto, não é à toa que vive sendo montada em países onde as instituições democráticas estão em perigo, caso do Brasil.
A qualidade dramatúrgica do elenco não é uniforme, mas é inegável que a atuação de Isabel Pacheco se sobressai, principalmente no monólogo final onde sua personagem vomita diatribes dos mais variados graus & calibres, vociferando em altos brados sua inconformidade com os tempos atuais e o que deve ser feito para recuperar a dignidade perdida da arte e do povo sob o tacão de um irrecuperável demente.

O mais paradoxal de tudo é que Neva não conseguiu financiamento algum, valendo-se da colaboração fundamental de mais de 80 pessoas, além dos artistas e técnicos que criaram a montagem, que abriram mão de seus cachês, caso de Maneco Quinderé (iluminação), Ricco Viana (música), Carla Berri (maquete do Teatro de Moscou) e de Ney Motta (assessoria de imprensa).

Neva está em nova temporada de 20 de janeiro a 12 de fevereiro no Espaço do Armazém na Fundição Progresso. Maiores informações (ficha técnica, endereço, horários, ingressos etc.) veja em https://teatrohoje.com.br/2022/11/08/neva/

Furio Lonza é um escritor, dramaturgo e jornalista ítalo-brasileiro.