Com direção do ator e diretor Diogo Camargos, esta é uma peça que transcende as limitações do monólogo, pois viaja por territórios ainda não completamente explorados no teatro com essa envergadura, agregando à famosa personagem de Shakespeare uma multiplicidade de signos, metáforas & símbolos que se entremeiam como num autêntico quebra-cabeça de infinitas possibilidades.

Por incrível que pareça, este é o primeiro texto da atriz e produtora Cristina Mayrink, idealizadora e intérprete de uma saga planetária que cria sua própria cosmogonia e que poderia ser assinada por um alucinado Oswald de Andrade em pleno surto de genialidade. Ao misturar a fúria de Zé Celso & Antônio Abujamra com as aspirações anarquistas de Antonin Artaud e pigmentos de Tom Stoppard, a autora se alça ao restrito patamar de uma das melhores dramaturgas da atualidade.

Não à toa uma das maiores qualidades do texto está sedimentada na ambiguidade de vocábulos e termos evocados, ampliando consideravelmente seus significados, contrapondo-os às falas de Lady Macbeth, a protagonista que se confunde deliberadamente com a própria atriz ao pretender ser reverenciada e paparicada por seus comparsas de jornada numa retomada de sua carreira através de um ritual pagão.

A paródica metalinguagem usada por Cristina não é gratuita: as referências ao original de Shakespeare compõem uma quizumba malemolente de brasilidade afrodescendente, mas com citações embutidas que vão desde a música Psycho Killer, do Talking Heads, até as cenas mais sanguinolentas de Tarantino, resvalando por conceituações pertinentes sobre o Bem & o Mal, o Belo & o Feio, a Ficção & a Realidade, o Sublime & o Ignóbil, que podem tanto partir do microcosmo para chegar ao universal, quanto vice-versa.

Em cena, Cristina encarna uma personagem dramaticamente hilária que teima em colocar os pingos nos iis de um país que chafurda na lama da sandice; que é lindo e miserável, ao mesmo tempo cândido e sórdido, inocente e bandalho. Seus movimentos tangenciam a cadência de uma concubina celestial & lasciva. Seu corpo incendeia a degeneração que grassa nas entranhas de uma sociedade corrupta e cínica.

O sarcasmo está presente em cada fala, em cada nuance, em toda e qualquer manifestação da lógica teatral, até o momento em que se funde num algoritmo ensandecido disperso no intestino de uma gárgula anfíbia & dissoluta que nos espreita do alto das torres de vigia. Ou seja: Cristina parte de Shakespeare para chegar a Shakespeare, num passeio onírico pelas veredas e becos de um país que tenta se reinventar.

A iluminação, a cenografia e a trilha sonora estão numa confluência quase litúrgica, configurando uma espécie de prece aos deuses mais desatentos, desses que insistem em tocar seu alaúde nas nuvens, enquanto o mundo se esboroa no abismo da caricatura de si mesmo.

Uma obra-prima, sem dúvida, um espetáculo de sombras & luzes para todos os públicos que amam o teatro. O experimentalismo entra apenas como a cereja do bolo. A alternância de humor e drama nasce naturalmente, o texto jamais força a barra, e se desenvolve espontaneamente como se dois filhotes de diferentes cascavéis mamassem nas mesmas tetas. Esse líquido precioso é a enzima que viabiliza a reação química ao agrupar átomos e moléculas de diversos matizes e formar uma ameba até certo ponto inusitada.

A longeva participação de Cristina Mayrink no grupo Os Fodidos Privilegiados legitima sua trajetória como atriz e lhe dá autonomia para alçar este voo solo da mesma forma que George Harrison, depois que os Beatles acabaram, lançou um disco triplo, até hoje a maior ousadia no mundo do rock.

Nesse sentido, Cristina é o Harrison dos Fodidos, provavelmente porque seu talento ficou represado durante tanto tempo e que agora consegue emergir com tanta força, magia e qualidade.

Muita gente participou deste projeto, mas é sem dúvida a mão delicada e competente do diretor Diogo Camargos que deu o acabamento estético, fechando o circuito com tanta lucidez e maestria ao proporcionar a possibilidade de Cristina tecer essa teia de aranha que estava incubada há décadas e que só agora pôde vir a lume, embalada pela ideia premonitória de All Things Must Pass.

O som e a fúria de Lady Macbeth fez uma temporada em novembro de 2022 no Teatro Gláucio Gill e volta em janeiro de 2023 para sua segunda temporada. Horário, endereço, ficha técnica e outras informações, veja em https://teatrohoje.com.br/2022/10/28/o-som-e-a-furia-de-lady-macbeth/

Furio Lonza é um escritor, dramaturgo e jornalista ítalo-brasileiro.