No centro do palco, uma senhora de cabelos brancos à la medusa conta uma história de quando ela e mais dois amigos do conservatório de música ainda engatinhavam em seus estudos.

 

Ladeada por dois pianos que se revezam [tocando acordes e trechos em tons aparentemente aleatórios], ela se descabela, embalada, por vezes ereta e retilínea, por vezes, meneando o corpo de acordo com os compassos rápidos que enaltecem o ritmo e a harmonia que acompanha a história, que jorra como sêmen em alucinados fluxos de consciência à la Beckett. Por cima, da esquerda até o centro, uma espécie de enorme cornucópia de pano negro dá a impressão de amplificar sua voz e, ao mesmo tempo, sugá-la para o interior do enredo que, desde o início, se dissolve no ar em debochadas gargalhadas ou pausas. A luz de Beto Bruel faz o diabo enrubescer de vergonha: capta
fragmentos de fala, enlouquece ao sabor de instantes mágicos, dá zoons extraordinários & infernais no rosto da atriz Rosana Stavis que, desvairada em sua locução, emite informações de forma homeopática para dar sequência à trama, que não se deixa domar em momento algum. É volúvel e esbranquiçada como um verme no cio prestes a desovar filhotes dos mais variados tamanhos e formas.
Com texto e direção de Marcos Damaceno, A Aforista é uma revolução ainda não completamente avaliada em toda sua incomensurável grandeza. Um espetáculo para ser degustado e digerido aos poucos, uma espécie de laboratório que se constrói na imaginação do espectador.
As músicas, compostas exclusivamente para a peça por Gilson Fukushima, sublinham cada gesto, cada momice, cada meneio de cabeça e toda e qualquer movimentação da atriz, que se mantém dinanicamente estática [equilibrando-se num pedestal] durante a hora e meia que dura a peça. John Cage? Stockhausen? Varèse? Satie? Phillip Glass ou uma escala de Bach? Não importa. O fato é que um de seus amigos atinge o auge da carreira sem nunca ter tocado em público e o outro se ressente e míngua aos poucos, até tornar-se um pária do piano, pois a competição entre eles estava evidente desde o começo da amizade. Partindo do pressuposto de que as musas nunca foram democráticas, alguns são melhores que outros e ponto final.
No meio disso tudo, a mulher com cabelos de medusa serve de anfitriã para apresentá-los, cada qual com suas características, cacoetes de personalidade e egos inflados ou feridos. Até certo ponto, ela se isenta numa imparcialidade mal disfarçada, mas mete-se na disputa quando percebe que o que está em jogo é a arte ou a morte.
Stavis esparge aforismos a torto e a direito no sentido de dar um molho todo especial à história, rabiscando-os no ar como se estivesse escrevendo um diário íntimo. Quando se dá conta que alguns são apenas clichês e estereótipos que poderiam estar impressos em calendários, solta um Foda-se bem sonoro, pois ela tem certeza que eles são bons. Nem tão bons, afinal, nem com tanta certeza, mas continua mesmo assim, dando-se por satisfeita de ter desistido da música para tornar-se escritora de frases de efeito.
O trio enfim se dissolve, cada qual vai para seu lado, pois são diferentes em gênero, número e grau. Não há uma solução satisfatória quando assimilam a ideia de que o próprio destino já estava escrito nas estrelas ou nas movimentações aleatórias das esferas cósmicas. A música enfurece, a iluminação descamba para uma fogueira de vaidades, a história entra por vielas e obscuros becos sem saída, mimetizando a tragédia hilária que vinha se compondo à revelia de seus desígnios.
Segundo o autor e diretor Damaceno, o texto gira em torno da história do romance O Náufrago e outras argumentações e proposições esparsas na vasta obra do escritor austríaco Thomas Bernhard (1931-1989), um dos mais importante autores em língua alemã do século XX, mas há também resquícios e tangências com outros autores bem menos conhecidos do público, como Witold Gombrowicz e Stanislau Witkiewicz, ambos poloneses, ambos dramaturgos.
Os dois pianos são pilotados por Sérgio Justen e Rodrigo Henrique, que se alternam nos teclados numa comunhão com o fluxo turbulento de pensamentos da protagonista enquanto ela segue para o funeral de um deles, mas não fica claro qual, pois um percebeu que já estava morto mesmo vivo [e se suicidou] e o outro teve um ataque cardíaco enquanto tocava alucinadamente durante cinco horas [e já estava com os dedos sangrando] quando a embolia sanguínea se deu, Portanto, mesmo morto, se mantém vivo na memória dos fãs.
A Aforista é uma obra cruel que norteia a noção de como se deve entender as opções tomadas durante a vida, embora esta máxima [ou mínima, como diria Millôr Fernandes] pudesse fazer parte da antologia de frases alegóricas da atriz, que gargalharia muito se a ouvisse.
Marcos Damaceno e Rosana Stavis são vencedores dos prêmios Shell (SP) e Gralha Azul (PR) por outros espetáculos e provavelmente não vão parar por aí, pois a peça se retroalimenta, alcançando dimensões jamais vistas no palco, como a interação ritualística entre os componentes, a atuação hilária da protagonista [semântica e léxica], a música desvairada dos pianistas e principalmente na potente emissão de voz de Stavis, possivelmente fruto de um processo técnico que andou aprimorando desde que resolveu ser atriz.
Arte, morte, alma, espírito, essência e fatalidade. Um conjunto de elementos filosóficos e existenciais que dificilmente não daria vida a uma boa história. Com sangue, suor e jorros de fertilidade.

A Aforista está em temporada no Teatro 1 do CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil até 5 de março de 2023. Informações, sinopse, endereço, horários e preço dos ingressos, veja em https://teatrohoje.com.br/2023/01/14/a-aforista/

Furio Lonza é um escritor, dramaturgo e jornalista ítalo-brasileiro.