Disfarçada de Modernidade, a tecnologia nos trouxe demandas que não estavam no nosso cardápio. Os enormes computadores usados na Nasa, de uma hora para outra, viraram micros caseiros que vieram resolver problemas que não tínhamos.

 

Os anúncios de TV hoje são filminhos publicitários que vendem o que você não precisa; se precisa, já tem e, se já tem, não funciona. Os automóveis que antes duravam dez ou vinte anos, hoje precisam ser trocados a cada seis meses. Há sessenta anos, o Brasil era conhecido no exterior por Jorge Amado, Tom Jobim e Oscar Niemeyer; hoje, somos conhecidos por Paulo Coelho, Anitta e Romero Britto.
O mundo mudou e, com ele, os rótulos, a escala de valores, os pressupostos, os conceitos, os novos paradigmas e até a semântica foram reciclados e passaram a ter novos pontos de vista. Piadas ingênuas de antigamente hoje podem te julgar e te colocar na cadeia por injúria e até crime.
Com texto e direção de Gustavo Kaz e interpretada por Sávio Moll e Pedro Motta, a peça Na Minha Época aborda justamente essas questões através de um diálogo franco & aberto entre um avô que viveu a revolucionária década de 60 e seu neto que se beneficia da juventude para colocar em xeque praticamente tudo que é dito, pensado e feito pelo ancião, mas que ninguém se preocupe: o texto lança mão de tiradas bem-humoradas, entremeadas por preocupações sérias e reflexões profundas sobre essas mudanças que viraram o mundo de ponta cabeça.
O neto tenta por todos os meios influenciar o avô das benesses que a realidade trouxe às pessoas e, por sua vez, o avô teima em se manter fiel à ideologia e aos parâmetros de qualidade que pautaram sua vida. É uma briga de igual para igual, mas que guarda uma boa dose amor e afeto entre os dois.
Na Minha Época é uma discussão necessária que enfatiza a transição entre duas gerações que ora tangenciam pontos em comum, ora se afastam gradativamente pelo simples fato de que a passagem do tempo não tem volta,  parafraseando as palavras de Heráclito, que um dia disse: Nós nunca podemos entrar no mesmo rio pois, como as águas, nós mesmos já somos outros.
Nem todos, contudo, têm a capacidade de acompanhar essa metamorfose sem espernear, pois se apegam ao passado como uma tábua de salvação. A juventude, pelo contrário, já nasceu sob o signo da renovação e não entende direito a nostalgia que os anciãos têm de outros tempos que hipoteticamente foram melhores.
A verdade é que não foram nem melhores nem piores, simplesmente serviram para configurar uma época que se distancia cada vez mais e, um dia [feliz ou infelizmente], não sobrará muito para ser recordado, pois o mundo sempre foi, é e será isso mesmo, uma eterna discussão entre o arcaico e o moderno, entre a manutenção do status quo e o progresso.
Por incrível que pareça, o texto foi escrito por um dramaturgo de 21 anos. Com todo ímpeto de um escritor praticamente estreante, Gustavo Kaz se equilibra na corda bamba, dando uma no cravo, outra na ferradura. Que os espectadores resolvam se o confronto tem um vencedor. Que os críticos analisem com isenção de espírito se as questões oscilam entre a mutação prevista pelos oráculos atuais ou se a transgressão atropela a realidade rumo a uma ficção distópica e até certo ponto frívola.
Mesmo que o ator Pedro Motta ainda tenha muito a aprender quanto à melhor maneira de atuar ou saber respeitar o espaço cênico do outro ou mesmo moderar os rompantes juvenis, isso pouco importa, pois o que vale nesta montagem gira em torno do ineditismo do tema, que raramente foi explicitado com tanta coragem e criatividade no palco.
Já a experiência de Sávio Moll é soberana, consegue passar uma sobriedade e discrição de um veterano da ribalta. É austero e criterioso, humilde, sensato e prudente, sabe dosar os instantes de fúria e comedimento, comporta-se de maneira exata na medida em que participa do jogo com maturidade: concorda, discorda, aceita, volta atrás e, por fim, ambos chegam a um denominador comum. Fazer o bem à Humanidade sem exigir algo em troca é um pressuposto digno de um homem (independente da idade ou ideais) que pretende espargir amor e afeto, pois, do contrário, seria um relacionamento fadado ao fracasso.
Na Minha Época é uma espécie de acerto de contas intergeracional, onde emergem a controvérsia e o antagonismo de forma lúdica, mas sem se furtar em verticalizar assuntos dos mais polêmicos, como o assédio à mulher, a discussão de gênero, a semântica obtusa empregada por uma geração patriarcal que usava o vocabulário de maneira desleixada e principalmente o respeito ao outro no que concerne à individualidade e à diversidade.
Apesar disso, é um embate amoroso, fraternal e condescendente, cordial e generoso.

 

Na Minha Época está terminando sua temporada no Teatro Cândido Mendes domingo, 22 de janeiro, às 18 horas. Sinopse, ficha técnica, endereço, horário e ingressos em https://teatrohoje.com.br/2023/01/04/na-minha-epoca/

A produção tem previsão da volta da peça em cartaz no segundo semestre de 2023.

Furio Lonza é um escritor, dramaturgo e jornalista ítalo-brasileiro.