Já virou lugar-comum dizer que um texto clássico é atemporal pois contempla situações que podem ocorrer em qualquer século, em qualquer país ou cidade nas mais diferentes latitudes e longitudes do globo terrestre, mas o Auto da Compadecida é impressionante.
Senão, vejamos: há uma promíscua cumplicidade entre uma igreja mercenária e o poder local, ambos se alimentando continuamente um ao outro através de propinas retóricas; há uma ampla difusão de mentiras sendo espalhadas por espertalhões e aceitas pela população sem maiores estranhamentos; há covardes que se escondem atrás de inversões de narrativas de acordo com seus interesses, ao mesmo tempo em que ignorantes lançam mão da brutalidade para vencer na vida e, por fim, há até uma fakeada.
Um Suassuna de vez em quando é sempre bom, mas se a peça estiver a cargo de uma direção criativa e um elenco excepcional, fica melhor ainda. É o caso desta montagem de Auto da Compadecida, que comemora seus dez anos em cartaz pilotada pela Cia Limite 151, uma companhia de teatro que sempre primou pelo bom gosto ao escolher seus textos.
Com direção do experiente & descolado Sidnei Cruz, a comédia [picaresca por natureza] garante boas risadas durante toda a encenação. De cabo a rabo, o público se esbalda diante das hilariantes esquetes que se sucedem no sentido de montar um multifacetado mosaico de tudo que existe de bom e de ruim no gênero humano circunstancialmente estabelecido na pequena [e mítica] cidade de Taperoá, um local onde as pessoas se esgarçam para conseguir o pão. Para isso, no entanto, são obrigadas a deixar de lado parâmetros de conduta moral.
Ninguém é totalmente bom ou completamente ruim na localidade: não há maniqueísmo, é a realidade paupérrima que conduz suas atitudes. Portanto, a igreja se mancomuna com o poder do coronel, mudando de lado a cada investida de João Grilo, um herói sem nenhum caráter que segue estritamente a filosofia das ruas, valendo-se de suas artimanhas para poder sobreviver.
O texto de Suassuna é um belíssimo exemplo de sua arte armorial [uma espécie de Commedia dell`arte à la espanhola] que foi resgatada pelo autor de acordo com suas pesquisas literárias e dramatúrgicas para compor seus romances e peças de teatro.
Embora todo o elenco seja de primeira qualidade, é inegável que a composição do personagem João Grilo encarnado pela atriz Gláucia Rodrigues se sobressai com suas momices clownescas que encantam pela variedade de artifícios que empresta ao famoso personagem. Seu rosto e seu corpo são de borracha, quase um mamulengo. Não há um instante sequer durante todo o espetáculo em que ela não acrescente variantes e disfarces num contínuo e brilhante conjunto de reflexões, sem perder a pegada irônica.
O ritmo alucinante é regido por Sidnei Cruz, que não deixa a peteca cair em momento algum: tudo se encaixa como num quebra-cabeça demencial, abrindo e seguindo constantemente atalhos dramatúrgicos de perder o fôlego.
O elenco é completado de maneira simbiótica e conivente por Rafael Canedo, Edmundo Lippi, Robson Santos, Flávia Fafiães, Isabella Dionísio, Kakau Barredo, Bruno Ganem, Marcio Ricciardi, Paulo Japyassú, Luiz Machado e Ricardo Knupp.
Além do exuberante cenário de José Dias, os figurinos de Samuel Abrantes, a iluminação mediúnica de Aurélio De Simoni e músicas e direção musical de Wagner Campos, ainda temos, na cena final, a aparição bombástica de Flávia Fafiães, que interpreta a Virgem Maria de forma propositadamente ambígua, alternando seu rosto angelical com uma malemolência safada de arrepiar qualquer católico que se preze.
Resumindo: esta nova montagem da comédia de Suassuna, além de recriar o clima sarcástico do autor, acrescenta algumas nuances que o torna único no gênero, com especial atenção na cadência e pulsação: os arranjos são submetidos à velocidade das execuções; a regularidade de movimentos e performances dos atores é anfíbia, batendo uma no cravo, outra na ferradura; não há um padrão, mas nada sai dos eixos e o tempo pode ficar tanto em suspenso quando seguir a cronologia factual dos acontecimentos.
Depois de dez anos encenando o mesmo texto, a Cia Limite 151 poderia muito bem se dar ao luxo de exercer a improvisação e inventar cacos para agradar as plateias mais desatentas, mas não é isso que acontece: o elenco se mantém coeso e coerente de acordo com as marcações originais do autor. A aproximação latente com a realidade de hoje se deve apenas e tão somente por ser um clássico e o diretor sabe disso, o elenco sabe disso, a produção sabe disso e a plateia entende perfeitamente o que é mostrado, sem a necessidade [na maioria das vezes desastrada] de uma redundante atualização.
Auto da Compadecida é um espetáculo imperdível para o público de todas as idades, credos, etnias e esta nova montagem é um marco da dramaturgia contemporânea.

Auto da Compadecida está em temporada no Teatro Dulcina até 29 de outubro. Informações sobre a peça, sinopse, ficha técnica, horários, endereço, ingressos etc. veja em https://teatrohoje.com.br/2022/07/18/auto-da-compadecida/

Furio Lonza é um escritor, dramaturgo e jornalista ítalo-brasileiro.