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Arquivos Crítica - Teatro Hoje https://teatrohoje.com.br/secao/critica/ Revista digital de Artes Cênicas Sun, 29 Jan 2023 02:31:57 +0000 pt-BR hourly 1 A AFORISTA / Uma História Tragicamente Hilária https://teatrohoje.com.br/2023/01/26/a-aforista-uma-historia-tragicamente-hilaria/ Thu, 26 Jan 2023 13:01:47 +0000 https://teatrohoje.com.br/?p=105204 No centro do palco, uma senhora de cabelos brancos à la medusa conta uma história de quando ela e mais dois amigos do conservatório de música ainda engatinhavam em seus estudos.   Ladeada por dois pianos que se revezam [tocando acordes e trechos em tons aparentemente aleatórios], ela se descabela, embalada, por vezes ereta e retilínea, por vezes, meneando o corpo de acordo com os compassos rápidos que enaltecem o ritmo e a harmonia que acompanha a história, que jorra como sêmen em alucinados fluxos de consciência à la Beckett. Por cima, da esquerda até o centro, uma espécie de enorme cornucópia de pano negro dá a impressão de amplificar sua voz e, ao mesmo tempo, sugá-la para o interior do enredo que, desde o início, se dissolve no ar em debochadas gargalhadas ou pausas. A luz de Beto Bruel faz o diabo enrubescer de vergonha: capta fragmentos de fala, enlouquece ao sabor de instantes mágicos, dá zoons extraordinários & infernais no rosto da atriz Rosana Stavis que, desvairada em sua locução, emite informações de forma homeopática para dar sequência à trama, que não se deixa domar em momento algum. É volúvel e esbranquiçada como um verme no cio prestes a desovar filhotes dos mais variados tamanhos e formas. Com texto e direção de Marcos Damaceno, A Aforista é uma revolução ainda não completamente avaliada em toda sua incomensurável grandeza. Um espetáculo para ser degustado e digerido aos poucos, uma espécie de laboratório que se constrói na imaginação do espectador. As músicas, compostas exclusivamente para a peça por Gilson Fukushima, sublinham cada gesto, cada momice, cada meneio de cabeça e toda e qualquer movimentação da atriz, que se mantém dinanicamente estática [equilibrando-se num pedestal] durante a hora e meia que dura a peça. John Cage? Stockhausen? Varèse? Satie? Phillip Glass ou uma escala de Bach? Não importa. O fato é que um de seus amigos atinge o auge da carreira sem nunca ter tocado em público e o outro se ressente e míngua aos poucos, até tornar-se um pária do piano, pois a competição entre eles estava evidente desde o começo da amizade. Partindo do pressuposto de que as musas nunca foram democráticas, alguns são melhores que outros e ponto final. No meio disso tudo, a mulher com cabelos de medusa serve de anfitriã para apresentá-los, cada qual com suas características, cacoetes de personalidade e egos inflados ou feridos. Até certo ponto, ela se isenta numa imparcialidade mal disfarçada, mas mete-se na disputa quando percebe que o que está em jogo é a arte ou a morte. Stavis esparge aforismos a torto e a direito no sentido de dar um molho todo especial à história, rabiscando-os no ar como se estivesse escrevendo um diário íntimo. Quando se dá conta que alguns são apenas clichês e estereótipos que poderiam estar impressos em calendários, solta um Foda-se bem sonoro, pois ela tem certeza que eles são bons. Nem tão bons, afinal, nem com tanta certeza, mas continua mesmo assim, dando-se por satisfeita de ter desistido da música para tornar-se escritora de frases de efeito. O trio enfim se dissolve, cada qual vai para seu lado, pois são diferentes em gênero, número e grau. Não há uma solução satisfatória quando assimilam a ideia de que o próprio destino já estava escrito nas estrelas ou nas movimentações aleatórias das esferas cósmicas. A música enfurece, a iluminação descamba para uma fogueira de vaidades, a história entra por vielas e obscuros becos sem saída, mimetizando a tragédia hilária que vinha se compondo à revelia de seus desígnios. Segundo o autor e diretor Damaceno, o texto gira em torno da história do romance O Náufrago e outras argumentações e proposições esparsas na vasta obra do escritor austríaco Thomas Bernhard (1931-1989), um dos mais importante autores em língua alemã do século XX, mas há também resquícios e tangências com outros autores bem menos conhecidos do público, como Witold Gombrowicz e Stanislau Witkiewicz, ambos poloneses, ambos dramaturgos. Os dois pianos são pilotados por Sérgio Justen e Rodrigo Henrique, que se alternam nos teclados numa comunhão com o fluxo turbulento de pensamentos da protagonista enquanto ela segue para o funeral de um deles, mas não fica claro qual, pois um percebeu que já estava morto mesmo vivo [e se suicidou] e o outro teve um ataque cardíaco enquanto tocava alucinadamente durante cinco horas [e já estava com os dedos sangrando] quando a embolia sanguínea se deu, Portanto, mesmo morto, se mantém vivo na memória dos fãs. A Aforista é uma obra cruel que norteia a noção de como se deve entender as opções tomadas durante a vida, embora esta máxima [ou mínima, como diria Millôr Fernandes] pudesse fazer parte da antologia de frases alegóricas da atriz, que gargalharia muito se a ouvisse. Marcos Damaceno e Rosana Stavis são vencedores dos prêmios Shell (SP) e Gralha Azul (PR) por outros espetáculos e provavelmente não vão parar por aí, pois a peça se retroalimenta, alcançando dimensões jamais vistas no palco, como a interação ritualística entre os componentes, a atuação hilária da protagonista [semântica e léxica], a música desvairada dos pianistas e principalmente na potente emissão de voz de Stavis, possivelmente fruto de um processo técnico que andou aprimorando desde que resolveu ser atriz. Arte, morte, alma, espírito, essência e fatalidade. Um conjunto de elementos filosóficos e existenciais que dificilmente não daria vida a uma boa história. Com sangue, suor e jorros de fertilidade. A Aforista está em temporada no Teatro 1 do CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil até 5 de março de 2023. Informações, sinopse, endereço, horários e preço dos ingressos, veja em https://teatrohoje.com.br/2023/01/14/a-aforista/

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No centro do palco, uma senhora de cabelos brancos à la medusa conta uma história de quando ela e mais dois amigos do conservatório de música ainda engatinhavam em seus estudos.

 

Ladeada por dois pianos que se revezam [tocando acordes e trechos em tons aparentemente aleatórios], ela se descabela, embalada, por vezes ereta e retilínea, por vezes, meneando o corpo de acordo com os compassos rápidos que enaltecem o ritmo e a harmonia que acompanha a história, que jorra como sêmen em alucinados fluxos de consciência à la Beckett. Por cima, da esquerda até o centro, uma espécie de enorme cornucópia de pano negro dá a impressão de amplificar sua voz e, ao mesmo tempo, sugá-la para o interior do enredo que, desde o início, se dissolve no ar em debochadas gargalhadas ou pausas. A luz de Beto Bruel faz o diabo enrubescer de vergonha: capta
fragmentos de fala, enlouquece ao sabor de instantes mágicos, dá zoons extraordinários & infernais no rosto da atriz Rosana Stavis que, desvairada em sua locução, emite informações de forma homeopática para dar sequência à trama, que não se deixa domar em momento algum. É volúvel e esbranquiçada como um verme no cio prestes a desovar filhotes dos mais variados tamanhos e formas.
Com texto e direção de Marcos Damaceno, A Aforista é uma revolução ainda não completamente avaliada em toda sua incomensurável grandeza. Um espetáculo para ser degustado e digerido aos poucos, uma espécie de laboratório que se constrói na imaginação do espectador.
As músicas, compostas exclusivamente para a peça por Gilson Fukushima, sublinham cada gesto, cada momice, cada meneio de cabeça e toda e qualquer movimentação da atriz, que se mantém dinanicamente estática [equilibrando-se num pedestal] durante a hora e meia que dura a peça. John Cage? Stockhausen? Varèse? Satie? Phillip Glass ou uma escala de Bach? Não importa. O fato é que um de seus amigos atinge o auge da carreira sem nunca ter tocado em público e o outro se ressente e míngua aos poucos, até tornar-se um pária do piano, pois a competição entre eles estava evidente desde o começo da amizade. Partindo do pressuposto de que as musas nunca foram democráticas, alguns são melhores que outros e ponto final.
No meio disso tudo, a mulher com cabelos de medusa serve de anfitriã para apresentá-los, cada qual com suas características, cacoetes de personalidade e egos inflados ou feridos. Até certo ponto, ela se isenta numa imparcialidade mal disfarçada, mas mete-se na disputa quando percebe que o que está em jogo é a arte ou a morte.
Stavis esparge aforismos a torto e a direito no sentido de dar um molho todo especial à história, rabiscando-os no ar como se estivesse escrevendo um diário íntimo. Quando se dá conta que alguns são apenas clichês e estereótipos que poderiam estar impressos em calendários, solta um Foda-se bem sonoro, pois ela tem certeza que eles são bons. Nem tão bons, afinal, nem com tanta certeza, mas continua mesmo assim, dando-se por satisfeita de ter desistido da música para tornar-se escritora de frases de efeito.
O trio enfim se dissolve, cada qual vai para seu lado, pois são diferentes em gênero, número e grau. Não há uma solução satisfatória quando assimilam a ideia de que o próprio destino já estava escrito nas estrelas ou nas movimentações aleatórias das esferas cósmicas. A música enfurece, a iluminação descamba para uma fogueira de vaidades, a história entra por vielas e obscuros becos sem saída, mimetizando a tragédia hilária que vinha se compondo à revelia de seus desígnios.
Segundo o autor e diretor Damaceno, o texto gira em torno da história do romance O Náufrago e outras argumentações e proposições esparsas na vasta obra do escritor austríaco Thomas Bernhard (1931-1989), um dos mais importante autores em língua alemã do século XX, mas há também resquícios e tangências com outros autores bem menos conhecidos do público, como Witold Gombrowicz e Stanislau Witkiewicz, ambos poloneses, ambos dramaturgos.
Os dois pianos são pilotados por Sérgio Justen e Rodrigo Henrique, que se alternam nos teclados numa comunhão com o fluxo turbulento de pensamentos da protagonista enquanto ela segue para o funeral de um deles, mas não fica claro qual, pois um percebeu que já estava morto mesmo vivo [e se suicidou] e o outro teve um ataque cardíaco enquanto tocava alucinadamente durante cinco horas [e já estava com os dedos sangrando] quando a embolia sanguínea se deu, Portanto, mesmo morto, se mantém vivo na memória dos fãs.
A Aforista é uma obra cruel que norteia a noção de como se deve entender as opções tomadas durante a vida, embora esta máxima [ou mínima, como diria Millôr Fernandes] pudesse fazer parte da antologia de frases alegóricas da atriz, que gargalharia muito se a ouvisse.
Marcos Damaceno e Rosana Stavis são vencedores dos prêmios Shell (SP) e Gralha Azul (PR) por outros espetáculos e provavelmente não vão parar por aí, pois a peça se retroalimenta, alcançando dimensões jamais vistas no palco, como a interação ritualística entre os componentes, a atuação hilária da protagonista [semântica e léxica], a música desvairada dos pianistas e principalmente na potente emissão de voz de Stavis, possivelmente fruto de um processo técnico que andou aprimorando desde que resolveu ser atriz.
Arte, morte, alma, espírito, essência e fatalidade. Um conjunto de elementos filosóficos e existenciais que dificilmente não daria vida a uma boa história. Com sangue, suor e jorros de fertilidade.

A Aforista está em temporada no Teatro 1 do CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil até 5 de março de 2023. Informações, sinopse, endereço, horários e preço dos ingressos, veja em https://teatrohoje.com.br/2023/01/14/a-aforista/

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NA MINHA ÉPOCA / Um Embate Amoroso https://teatrohoje.com.br/2023/01/22/na-minha-epoca-um-embate-amoroso/ Sun, 22 Jan 2023 14:26:18 +0000 https://teatrohoje.com.br/?p=105160 Disfarçada de Modernidade, a tecnologia nos trouxe demandas que não estavam no nosso cardápio. Os enormes computadores usados na Nasa, de uma hora para outra, viraram micros caseiros que vieram resolver problemas que não tínhamos.   Os anúncios de TV hoje são filminhos publicitários que vendem o que você não precisa; se precisa, já tem e, se já tem, não funciona. Os automóveis que antes duravam dez ou vinte anos, hoje precisam ser trocados a cada seis meses. Há sessenta anos, o Brasil era conhecido no exterior por Jorge Amado, Tom Jobim e Oscar Niemeyer; hoje, somos conhecidos por Paulo Coelho, Anitta e Romero Britto. O mundo mudou e, com ele, os rótulos, a escala de valores, os pressupostos, os conceitos, os novos paradigmas e até a semântica foram reciclados e passaram a ter novos pontos de vista. Piadas ingênuas de antigamente hoje podem te julgar e te colocar na cadeia por injúria e até crime. Com texto e direção de Gustavo Kaz e interpretada por Sávio Moll e Pedro Motta, a peça Na Minha Época aborda justamente essas questões através de um diálogo franco & aberto entre um avô que viveu a revolucionária década de 60 e seu neto que se beneficia da juventude para colocar em xeque praticamente tudo que é dito, pensado e feito pelo ancião, mas que ninguém se preocupe: o texto lança mão de tiradas bem-humoradas, entremeadas por preocupações sérias e reflexões profundas sobre essas mudanças que viraram o mundo de ponta cabeça. O neto tenta por todos os meios influenciar o avô das benesses que a realidade trouxe às pessoas e, por sua vez, o avô teima em se manter fiel à ideologia e aos parâmetros de qualidade que pautaram sua vida. É uma briga de igual para igual, mas que guarda uma boa dose amor e afeto entre os dois. Na Minha Época é uma discussão necessária que enfatiza a transição entre duas gerações que ora tangenciam pontos em comum, ora se afastam gradativamente pelo simples fato de que a passagem do tempo não tem volta,  parafraseando as palavras de Heráclito, que um dia disse: Nós nunca podemos entrar no mesmo rio pois, como as águas, nós mesmos já somos outros. Nem todos, contudo, têm a capacidade de acompanhar essa metamorfose sem espernear, pois se apegam ao passado como uma tábua de salvação. A juventude, pelo contrário, já nasceu sob o signo da renovação e não entende direito a nostalgia que os anciãos têm de outros tempos que hipoteticamente foram melhores. A verdade é que não foram nem melhores nem piores, simplesmente serviram para configurar uma época que se distancia cada vez mais e, um dia [feliz ou infelizmente], não sobrará muito para ser recordado, pois o mundo sempre foi, é e será isso mesmo, uma eterna discussão entre o arcaico e o moderno, entre a manutenção do status quo e o progresso. Por incrível que pareça, o texto foi escrito por um dramaturgo de 21 anos. Com todo ímpeto de um escritor praticamente estreante, Gustavo Kaz se equilibra na corda bamba, dando uma no cravo, outra na ferradura. Que os espectadores resolvam se o confronto tem um vencedor. Que os críticos analisem com isenção de espírito se as questões oscilam entre a mutação prevista pelos oráculos atuais ou se a transgressão atropela a realidade rumo a uma ficção distópica e até certo ponto frívola. Mesmo que o ator Pedro Motta ainda tenha muito a aprender quanto à melhor maneira de atuar ou saber respeitar o espaço cênico do outro ou mesmo moderar os rompantes juvenis, isso pouco importa, pois o que vale nesta montagem gira em torno do ineditismo do tema, que raramente foi explicitado com tanta coragem e criatividade no palco. Já a experiência de Sávio Moll é soberana, consegue passar uma sobriedade e discrição de um veterano da ribalta. É austero e criterioso, humilde, sensato e prudente, sabe dosar os instantes de fúria e comedimento, comporta-se de maneira exata na medida em que participa do jogo com maturidade: concorda, discorda, aceita, volta atrás e, por fim, ambos chegam a um denominador comum. Fazer o bem à Humanidade sem exigir algo em troca é um pressuposto digno de um homem (independente da idade ou ideais) que pretende espargir amor e afeto, pois, do contrário, seria um relacionamento fadado ao fracasso. Na Minha Época é uma espécie de acerto de contas intergeracional, onde emergem a controvérsia e o antagonismo de forma lúdica, mas sem se furtar em verticalizar assuntos dos mais polêmicos, como o assédio à mulher, a discussão de gênero, a semântica obtusa empregada por uma geração patriarcal que usava o vocabulário de maneira desleixada e principalmente o respeito ao outro no que concerne à individualidade e à diversidade. Apesar disso, é um embate amoroso, fraternal e condescendente, cordial e generoso.   Na Minha Época está terminando sua temporada no Teatro Cândido Mendes domingo, 22 de janeiro, às 18 horas. Sinopse, ficha técnica, endereço, horário e ingressos em https://teatrohoje.com.br/2023/01/04/na-minha-epoca/ A produção tem previsão da volta da peça em cartaz no segundo semestre de 2023.

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Disfarçada de Modernidade, a tecnologia nos trouxe demandas que não estavam no nosso cardápio. Os enormes computadores usados na Nasa, de uma hora para outra, viraram micros caseiros que vieram resolver problemas que não tínhamos.

 

Os anúncios de TV hoje são filminhos publicitários que vendem o que você não precisa; se precisa, já tem e, se já tem, não funciona. Os automóveis que antes duravam dez ou vinte anos, hoje precisam ser trocados a cada seis meses. Há sessenta anos, o Brasil era conhecido no exterior por Jorge Amado, Tom Jobim e Oscar Niemeyer; hoje, somos conhecidos por Paulo Coelho, Anitta e Romero Britto.
O mundo mudou e, com ele, os rótulos, a escala de valores, os pressupostos, os conceitos, os novos paradigmas e até a semântica foram reciclados e passaram a ter novos pontos de vista. Piadas ingênuas de antigamente hoje podem te julgar e te colocar na cadeia por injúria e até crime.
Com texto e direção de Gustavo Kaz e interpretada por Sávio Moll e Pedro Motta, a peça Na Minha Época aborda justamente essas questões através de um diálogo franco & aberto entre um avô que viveu a revolucionária década de 60 e seu neto que se beneficia da juventude para colocar em xeque praticamente tudo que é dito, pensado e feito pelo ancião, mas que ninguém se preocupe: o texto lança mão de tiradas bem-humoradas, entremeadas por preocupações sérias e reflexões profundas sobre essas mudanças que viraram o mundo de ponta cabeça.
O neto tenta por todos os meios influenciar o avô das benesses que a realidade trouxe às pessoas e, por sua vez, o avô teima em se manter fiel à ideologia e aos parâmetros de qualidade que pautaram sua vida. É uma briga de igual para igual, mas que guarda uma boa dose amor e afeto entre os dois.
Na Minha Época é uma discussão necessária que enfatiza a transição entre duas gerações que ora tangenciam pontos em comum, ora se afastam gradativamente pelo simples fato de que a passagem do tempo não tem volta,  parafraseando as palavras de Heráclito, que um dia disse: Nós nunca podemos entrar no mesmo rio pois, como as águas, nós mesmos já somos outros.
Nem todos, contudo, têm a capacidade de acompanhar essa metamorfose sem espernear, pois se apegam ao passado como uma tábua de salvação. A juventude, pelo contrário, já nasceu sob o signo da renovação e não entende direito a nostalgia que os anciãos têm de outros tempos que hipoteticamente foram melhores.
A verdade é que não foram nem melhores nem piores, simplesmente serviram para configurar uma época que se distancia cada vez mais e, um dia [feliz ou infelizmente], não sobrará muito para ser recordado, pois o mundo sempre foi, é e será isso mesmo, uma eterna discussão entre o arcaico e o moderno, entre a manutenção do status quo e o progresso.
Por incrível que pareça, o texto foi escrito por um dramaturgo de 21 anos. Com todo ímpeto de um escritor praticamente estreante, Gustavo Kaz se equilibra na corda bamba, dando uma no cravo, outra na ferradura. Que os espectadores resolvam se o confronto tem um vencedor. Que os críticos analisem com isenção de espírito se as questões oscilam entre a mutação prevista pelos oráculos atuais ou se a transgressão atropela a realidade rumo a uma ficção distópica e até certo ponto frívola.
Mesmo que o ator Pedro Motta ainda tenha muito a aprender quanto à melhor maneira de atuar ou saber respeitar o espaço cênico do outro ou mesmo moderar os rompantes juvenis, isso pouco importa, pois o que vale nesta montagem gira em torno do ineditismo do tema, que raramente foi explicitado com tanta coragem e criatividade no palco.
Já a experiência de Sávio Moll é soberana, consegue passar uma sobriedade e discrição de um veterano da ribalta. É austero e criterioso, humilde, sensato e prudente, sabe dosar os instantes de fúria e comedimento, comporta-se de maneira exata na medida em que participa do jogo com maturidade: concorda, discorda, aceita, volta atrás e, por fim, ambos chegam a um denominador comum. Fazer o bem à Humanidade sem exigir algo em troca é um pressuposto digno de um homem (independente da idade ou ideais) que pretende espargir amor e afeto, pois, do contrário, seria um relacionamento fadado ao fracasso.
Na Minha Época é uma espécie de acerto de contas intergeracional, onde emergem a controvérsia e o antagonismo de forma lúdica, mas sem se furtar em verticalizar assuntos dos mais polêmicos, como o assédio à mulher, a discussão de gênero, a semântica obtusa empregada por uma geração patriarcal que usava o vocabulário de maneira desleixada e principalmente o respeito ao outro no que concerne à individualidade e à diversidade.
Apesar disso, é um embate amoroso, fraternal e condescendente, cordial e generoso.

 

Na Minha Época está terminando sua temporada no Teatro Cândido Mendes domingo, 22 de janeiro, às 18 horas. Sinopse, ficha técnica, endereço, horário e ingressos em https://teatrohoje.com.br/2023/01/04/na-minha-epoca/

A produção tem previsão da volta da peça em cartaz no segundo semestre de 2023.

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O CACHORRO QUE SE RECUSOU A MORRER / Samir Murad comove https://teatrohoje.com.br/2023/01/15/o-cachorro-que-se-recusou-a-morrer-samir-murad-comove/ Mon, 16 Jan 2023 02:35:25 +0000 https://teatrohoje.com.br/?p=105084 Depois de terminar a trilogia Teatro, Mito e Genealogia, que inclui “Para Acabar com o Julgamento de Artaud” (2001), “Édipo e seus Duplos” (2008) e “Cícero, A Anarquia de um Corpo Santo” (2019), Samir Murad mergulhou em sua ancestralidade para contar a fabulosa história de sua família em mais um solo de sua autoria.   Com toda a gana e ímpeto que normalmente antecedem a composição de um texto, acessou a memória, mas percebeu que havia alguns furos. No intuito de preencher essas lacunas, completou com a gravação de depoimentos de seus parentes ainda vivos, que o acompanham durante toda a trajetória da peça com suas vozes graves e sotaques, risadas, tosses & gritos angustiados. Essa verdadeira epopeia de um imigrante libanês que trabalhou no Brasil como caixeiro, onde formou a numerosa família e nunca mais conseguiu voltar à terra natal, é contada de forma coloquial por Samir com uma ponta de nostalgia escancarada, relembrando casos e episódios que fizeram estalar seu radar de emoções. Avô, avó, pai, mãe e irmãos se alternam na narrativa, ora em áudio, ora em fotos em p&b que aparecem no telão ao fundo. O texto é tão bem elaborado que deixa a impressão de que ele já vinha sendo gestado antes mesmo que o ator se desse conta. Estava encalacrado em suas entranhas, submerso em sua alma provavelmente desde que resolveu trabalhar no teatro. Cada fato é precedido ou sucedido por profundas reflexões filosóficas que pretendem analisar ou justificar por que a vida lhe doou esse destino. A ancestralidade se mistura com a cultura e o sangue libanês de maneira sofisticada, mas que ninguém se preocupe: Samir sublinha tudo isso através de uma sublime interpretação: seu corpo range, geme e dança ao som de músicas típicas, sempre quebrando qualquer vácuo que porventura venha a se imiscuir na narrativa. É uma história sem fim, tão comovente e surreal quanto o próprio título do monólogo, que poderia ter saído de um conto de García Márquez. O Cachorro que se Recusou a Morrer é seu próprio pai, que nunca admitiu ser esquecido e morreu lutando contra a senilidade e seus decorrentes vacilos de memória. Num dos áudios mais dramáticos, ele diz: Eu não era tratado como um caixeiro, mas como um cachorro. A partir desse mote forte e pungente, o ator se deu conta que essa história deveria ser contada nos mínimos pormenores. Dividindo a direção com Delson Antunes, Samir Murad não deixa nada de fora, imergindo num mundo e numa época em que tudo tinha valor, desde o brio e a altivez de seus conterrâneos até o gosto de frutas que o pai colhia do pé, os ventos, a chuva, as trovoadas e a angústia que sempre o acompanhou, mas não se esqueceu de dar uma panorâmica abrangente na política, na Guerra dos Seis Dias e na barbárie que acontece atualmente em relação aos muçulmanos e árabes sob o tacão dos países imperialistas, que os expulsam de suas próprias terras. Samir Murad comove não apenas com a história que conta de forma admirável e assombrosa, mas também com sua própria figura terna: ele encanta o público mais desatento, cala os ainda reticentes, faz com que os indecisos reflitam sobre sua própria condição de seres humanos num mundo adverso. Diante de sua interpretação soberba, o silêncio na sala de espetáculo parece imitar a quietude de um ato litúrgico numa capela ou no interior sagrado de uma mesquita. Mas essa serenidade (por vezes) se desdobra num desassossego que pulsa como um molusco no cio. Deus e a fé são colocados em xeque, tudo é questionado, nada passa em branco. As próprias raízes religiosas e culturais do autor são colocadas sob suspeita e contextualizadas de forma implacável, mesmo porque esses fenômenos ainda existem em muitos países: a supremacia do patriarcado, a submissão da figura feminina, a poligamia do homem e os conflitos provocados por uniões não pautadas pela escolha voluntária. Em outras palavras: a eterna briga entre os valores arcaicos e os contemporâneos no mundo muçulmano. Resumindo: um espetáculo imperdível de um ator que sempre batalhou para manter a dignidade, mesmo com todas as forças contrárias, que privilegiam peças de teatro com financiamentos milionários em detrimento dos franco-atiradores que são obrigados a receber pautas miseráveis como se fossem esmola. Mesmo diante disso tudo, não há rancor, o que subsiste é uma espécie de complacência, um jogo franco de amizade regada com muito amor.

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Depois de terminar a trilogia Teatro, Mito e Genealogia, que inclui “Para Acabar com o Julgamento de Artaud” (2001), “Édipo e seus Duplos” (2008) e “Cícero, A Anarquia de um Corpo Santo” (2019), Samir Murad mergulhou em sua ancestralidade para contar a fabulosa história de sua família em mais um solo de sua autoria.

 

Com toda a gana e ímpeto que normalmente antecedem a composição de um texto, acessou a memória, mas percebeu que havia alguns furos. No intuito de preencher essas lacunas, completou com a gravação de depoimentos de seus parentes ainda vivos, que o acompanham durante toda a trajetória da peça com suas vozes graves e sotaques, risadas, tosses & gritos angustiados. Essa verdadeira epopeia de um imigrante libanês que trabalhou no Brasil como caixeiro, onde formou a numerosa família e nunca mais conseguiu voltar à terra natal, é contada de forma coloquial por Samir com uma ponta de nostalgia escancarada, relembrando casos e episódios que fizeram estalar seu radar de emoções.
Avô, avó, pai, mãe e irmãos se alternam na narrativa, ora em áudio, ora em fotos em p&b que aparecem no telão ao fundo. O texto é tão bem elaborado que deixa a impressão de que ele já vinha sendo gestado antes mesmo que o ator se desse conta. Estava encalacrado em suas entranhas, submerso em sua alma provavelmente desde que resolveu trabalhar no teatro.
Cada fato é precedido ou sucedido por profundas reflexões filosóficas que pretendem analisar ou justificar por que a vida lhe doou esse destino. A ancestralidade se mistura com a cultura e o sangue libanês de maneira sofisticada, mas que ninguém se preocupe: Samir sublinha tudo isso através de uma sublime interpretação: seu corpo range, geme e dança ao som de músicas típicas, sempre quebrando qualquer vácuo que porventura venha a se imiscuir na narrativa. É uma história sem fim, tão comovente e surreal quanto o próprio título do monólogo, que poderia ter saído de um conto de García Márquez.
O Cachorro que se Recusou a Morrer é seu próprio pai, que nunca admitiu ser esquecido e morreu lutando contra a senilidade e seus decorrentes vacilos de memória. Num dos áudios mais dramáticos, ele diz: Eu não era tratado como um caixeiro, mas como um cachorro. A partir desse mote forte e pungente, o ator se deu conta que essa história deveria ser contada nos mínimos pormenores.
Dividindo a direção com Delson Antunes, Samir Murad não deixa nada de fora, imergindo num mundo e numa época em que tudo tinha valor, desde o brio e a altivez de seus conterrâneos até o gosto de frutas que o pai colhia do pé, os ventos, a chuva, as trovoadas e a angústia que sempre o acompanhou, mas não se esqueceu de dar uma panorâmica abrangente na política, na Guerra dos Seis Dias e na barbárie que acontece atualmente em relação aos muçulmanos e árabes sob o tacão dos países imperialistas, que os expulsam de suas próprias terras.
Samir Murad comove não apenas com a história que conta de forma admirável e assombrosa, mas também com sua própria figura terna: ele encanta o público mais desatento, cala os ainda reticentes, faz com que os indecisos reflitam sobre sua própria condição de seres humanos num mundo adverso. Diante de sua interpretação soberba, o silêncio na sala de espetáculo parece imitar a quietude de um ato litúrgico numa capela ou no interior sagrado de uma mesquita.
Mas essa serenidade (por vezes) se desdobra num desassossego que pulsa como um molusco no cio. Deus e a fé são colocados em xeque, tudo é questionado, nada passa em branco. As próprias raízes religiosas e culturais do autor são colocadas sob suspeita e contextualizadas de forma implacável, mesmo porque esses fenômenos ainda existem em muitos países: a supremacia do patriarcado, a submissão da figura feminina, a poligamia do homem e os conflitos provocados por uniões não pautadas pela escolha voluntária. Em outras palavras: a eterna briga entre os valores arcaicos e os contemporâneos no mundo muçulmano.
Resumindo: um espetáculo imperdível de um ator que sempre batalhou para manter a dignidade, mesmo com todas as forças contrárias, que privilegiam peças de teatro com financiamentos milionários em detrimento dos franco-atiradores que são obrigados a receber pautas miseráveis como se fossem esmola. Mesmo diante disso tudo, não há rancor, o que subsiste é uma espécie de complacência, um jogo franco de amizade regada com muito amor.

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BAIXA TERAPIA / Algum humor sem reflexão alguma https://teatrohoje.com.br/2023/01/13/baixa-terapia-algum-humor-sem-reflexao-alguma/ Fri, 13 Jan 2023 19:20:59 +0000 https://teatrohoje.com.br/?p=105074 A peça Baixa Terapia, do dramaturgo argentino Matias Del Federico, vem envolta em inúmeros mistérios. O que teria motivado 350 mil espectadores a assistirem sua montagem (tanto em São Paulo, quanto em Portugal e EUA), que ficou em cartaz durante 3 anos e agora estreia no Rio de Janeiro? Como ela era no início da primeira temporada? O que foi modificado ao longo de seu processo? Houve alterações significativas na adaptação de Daniel Veronese?   Com direção de Marco Antônio Pâmio e elenco formado por Antônio Fagundes, Mara Carvalho, Alexandra Martins, Ilana Kaplan, Fábio Espósito e Bruno Fagundes, Baixa Terapia não emplaca. O que se vê no palco é uma quizumba mal orquestrada de clichês e chavões da famosa DR (discussão de relacionamento) a partir de três casais que se encontram (teoricamente) por acaso no consultório da terapeuta que está ausente, numa armação (aparentemente) consciente no intuito de que eles próprios resolvam seus problemas, que vão do ciúme, sexo, adultério, machismo e demais temas pertinentes ao casamento. É sabido que o tempo de exposição de um texto produz inadvertidamente cacos que vão sendo adicionados pelos atores ao original com o objetivo de ver o que funciona e o que não funciona no palco. As extraordinárias atrizes Ilana Kaplan e Mara Carvalho, por exemplo, desvirtuam suas personagens ao ponto de virarem caricaturas de si mesmas, com cacoetes e exagerações de interpretação que poderiam ser evitadas através do bom senso ou talvez da discrição. O que acontece é exatamente o contrário: ou o timing de comédia se perdeu ou houve um desencontro de ações, gerando um descompasso evidente entre os eventuais propósitos iniciais e o resultado final da trama. Muito se comentou sobre a atuação de Antônio Fagundes: disseram que está solto no palco como há muito não se via, o que é um exagero, ele também avança o sinal e compromete seu currículo. Chega a ser constrangedor vê-lo dando passinhos clownescos e estilizados que são imitados sem muita convicção por Mara Carvalho, que faz o que pode, mas não consegue salvar o espetáculo, que claudica desde os primeiros minutos. O segredo que aparece ao final da peça com a finalidade explícita de dar um sentido dramático à trama não convence nem comove, pelo contrário, deixa um sabor amargo no espectador, que afinal entende que foi ludibriado durante 80 minutos com uma farsa que pretende tocar num tema candente e atual, mas que se perde ao longo da sucessão avassaladora de lugares-comuns. Não é difícil dizer o que deu realmente errado em Baixa Terapia. A direção de Pâmio hesita e não consegue manter o ritmo, abrindo vácuos enormes entre uma cena e outra ou mesmo quando todos resolvem falar ao mesmo tempo; os atores se dividem em dois grupos: uns são francamente ruins e o outro precipita-se em agradar a plateia a qualquer custo com improvisações forçadas. A verdade é que não há interação. Faltou equilíbrio, ponderação e critério, não houve prudência e sensatez no conjunto e, finalmente (o mais cruel de tudo), a reflexão não deu as caras, os problemas são arremessados aleatoriamente sem um método consciente e não são verticalizados como deveriam. Mesmo partindo da ideia de que é uma comédia ligeira sem maiores pretensões de análise das situações, seria salutar uma argumentação mais sólida para cada tema.

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A peça Baixa Terapia, do dramaturgo argentino Matias Del Federico, vem envolta em inúmeros mistérios. O que teria motivado 350 mil espectadores a assistirem sua montagem (tanto em São Paulo, quanto em Portugal e EUA), que ficou em cartaz durante 3 anos e agora estreia no Rio de Janeiro? Como ela era no início da primeira temporada? O que foi modificado ao longo de seu processo? Houve alterações significativas na adaptação de Daniel Veronese?

 

Com direção de Marco Antônio Pâmio e elenco formado por Antônio Fagundes, Mara Carvalho, Alexandra Martins, Ilana Kaplan, Fábio Espósito e Bruno Fagundes, Baixa Terapia não emplaca. O que se vê no palco é uma quizumba mal orquestrada de clichês e chavões da famosa DR (discussão de relacionamento) a partir de três casais que se encontram (teoricamente) por acaso no consultório da terapeuta que está ausente, numa armação (aparentemente) consciente no intuito de que eles próprios resolvam seus problemas, que vão do ciúme, sexo, adultério, machismo e demais temas pertinentes ao casamento.

É sabido que o tempo de exposição de um texto produz inadvertidamente cacos que vão sendo adicionados pelos atores ao original com o objetivo de ver o que funciona e o que não funciona no palco. As extraordinárias atrizes Ilana Kaplan e Mara Carvalho, por exemplo, desvirtuam suas personagens ao ponto de virarem caricaturas de si mesmas, com cacoetes e exagerações de interpretação que poderiam ser evitadas através do bom senso ou talvez da discrição. O que acontece é exatamente o contrário: ou o timing de comédia se perdeu ou houve um desencontro de ações, gerando um descompasso evidente entre os eventuais propósitos iniciais e o resultado final da trama.

Muito se comentou sobre a atuação de Antônio Fagundes: disseram que está solto no palco como há muito não se via, o que é um exagero, ele também avança o sinal e compromete seu currículo. Chega a ser constrangedor vê-lo dando passinhos clownescos e estilizados que são imitados sem muita convicção por Mara Carvalho, que faz o que pode, mas não consegue salvar o espetáculo, que claudica desde os primeiros minutos.

O segredo que aparece ao final da peça com a finalidade explícita de dar um sentido dramático à trama não convence nem comove, pelo contrário, deixa um sabor amargo no espectador, que afinal entende que foi ludibriado durante 80 minutos com uma farsa que pretende tocar num tema candente e atual, mas que se perde ao longo da sucessão avassaladora de lugares-comuns.

Não é difícil dizer o que deu realmente errado em Baixa Terapia. A direção de Pâmio hesita e não consegue manter o ritmo, abrindo vácuos enormes entre uma cena e outra ou mesmo quando todos resolvem falar ao mesmo tempo; os atores se dividem em dois grupos: uns são francamente ruins e o outro precipita-se em agradar a plateia a qualquer custo com improvisações forçadas.

A verdade é que não há interação. Faltou equilíbrio, ponderação e critério, não houve prudência e sensatez no conjunto e, finalmente (o mais cruel de tudo), a reflexão não deu as caras, os problemas são arremessados aleatoriamente sem um método consciente e não são verticalizados como deveriam. Mesmo partindo da ideia de que é uma comédia ligeira sem maiores pretensões de análise das situações, seria salutar uma argumentação mais sólida para cada tema.

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NEVA / COMO MONTAR UM TEATRO POLÍTICO SEM PERDER A TERNURA https://teatrohoje.com.br/2022/11/13/neva-como-montar-um-teatro-politico-sem-perder-a-ternura/ Sun, 13 Nov 2022 14:56:33 +0000 https://teatrohoje.com.br/?p=104473 Depois do enorme sucesso obtido com Angels in America, a Armazém Companhia de Teatro resolveu diversificar novamente seu repertório ao comemorar seus 35 anos de existência. Com a montagem do texto de estreia do dramaturgo e roteirista de cinema chileno Guillermo Calderón, o diretor Paulo de Moraes tinha vários propósitos em mente: (1) levantar uma bem bolada reflexão sobre a pertinência e importância da arte teatral; (2) abrir a polêmica entre a arte e a realidade; (3) brincar com o recurso da metalinguagem, colocando o teatro dentro do próprio teatro e confundir o espectador (no bom sentido) quanto ao que se vê e ouve dos personagens num intrincado mosaico que tende ao infinito e (4) incutir na plateia a necessidade da resistência política em tempos de crise institucional. O texto de Calderón é forte & complexo. Como se sabe, o panfleto não passa de um reducionismo semântico. Existe o panfleto ideológico (que normalmente resvala em dogmas) e o político (que abre as comportas do humanismo social). No teatro, poucos conseguiram juntar essas duas vertentes com sucesso. Brecht é um e Calderón é outro. Portanto, seu texto não é maniqueísta. Parte da arte para chegar ao engajamento político e vice-versa. Neva tem um pouco de tudo: ao mesmo tempo que o elenco encena um texto de Tchekhov numa sala de espetáculo, lá fora, rola a maior carnificina. Não é um dia qualquer, mas 9 de janeiro de 1905, que ficou conhecido como Domingo Sangrento, quando manifestantes que marchavam para entregar uma petição ao Czar, pedindo melhores condições de trabalho nas fábricas, foram fuzilados pela Guarda Imperial. É nessa atmosfera que os atores fictícios abrem o debate sobre montar ou não a peça, sob o argumento de que seria um escapismo: “Pra que perder tempo fazendo isso? O teatro é uma merda. Querem fazer algo que seja de verdade: saiam às ruas.” O texto também está centrado num dos temas mais caros a Tchekhov: a perda da capacidade de interpretar. Uma das atrizes é a alemã Olga Knipper (Patrícia Selonk), primeira atriz do famoso Teatro de Arte de Moscou e que foi casada com o dramaturgo russo. Sentindo-se incapaz de representar depois da morte do marido por tuberculose há apenas seis meses, e na tentativa de seguir vivendo, ela instiga Masha (Isabel Pacheco) e Aleko (Felipe Bustamante) a encenarem repetidamente junto com ela a morte do marido, mergulhando numa linguagem poética e num humor extremamente ácido que encanta pela diversidade de conceitos e teses que vão sendo destiladas ao longo da peça. Neva (rio que corta São Petersburgo) foi escrito em 2005 e estreou em 2006, mesmo ano em que morreu o ditador carniceiro Augusto Pinochet. Portanto, não é à toa que vive sendo montada em países onde as instituições democráticas estão em perigo, caso do Brasil. A qualidade dramatúrgica do elenco não é uniforme, mas é inegável que a atuação de Isabel Pacheco se sobressai, principalmente no monólogo final onde sua personagem vomita diatribes dos mais variados graus & calibres, vociferando em altos brados sua inconformidade com os tempos atuais e o que deve ser feito para recuperar a dignidade perdida da arte e do povo sob o tacão de um irrecuperável demente. O mais paradoxal de tudo é que Neva não conseguiu financiamento algum, valendo-se da colaboração fundamental de mais de 80 pessoas, além dos artistas e técnicos que criaram a montagem, que abriram mão de seus cachês, caso de Maneco Quinderé (iluminação), Ricco Viana (música), Carla Berri (maquete do Teatro de Moscou) e de Ney Motta (assessoria de imprensa). Neva está em nova temporada de 20 de janeiro a 12 de fevereiro no Espaço do Armazém na Fundição Progresso. Maiores informações (ficha técnica, endereço, horários, ingressos etc.) veja em https://teatrohoje.com.br/2022/11/08/neva/

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Depois do enorme sucesso obtido com Angels in America, a Armazém Companhia de Teatro resolveu diversificar novamente seu repertório ao comemorar seus 35 anos de existência. Com a montagem do texto de estreia do dramaturgo e roteirista de cinema chileno Guillermo Calderón, o diretor Paulo de Moraes tinha vários propósitos em mente:
(1) levantar uma bem bolada reflexão sobre a pertinência e importância da arte teatral; (2) abrir a polêmica entre a arte e a realidade; (3) brincar com o recurso da metalinguagem, colocando o teatro dentro do próprio teatro e confundir o espectador (no bom sentido) quanto ao que se vê e ouve dos personagens num intrincado mosaico que tende ao infinito e (4) incutir na plateia a necessidade da resistência política em tempos de crise institucional.
O texto de Calderón é forte & complexo. Como se sabe, o panfleto não passa de um reducionismo semântico. Existe o panfleto ideológico (que normalmente resvala em dogmas) e o político (que abre as comportas do humanismo social). No teatro, poucos conseguiram juntar essas duas vertentes com sucesso. Brecht é um e Calderón é outro.
Portanto, seu texto não é maniqueísta. Parte da arte para chegar ao engajamento político e vice-versa.
Neva tem um pouco de tudo: ao mesmo tempo que o elenco encena um texto de Tchekhov numa sala de espetáculo, lá fora, rola a maior carnificina. Não é um dia qualquer, mas 9 de janeiro de 1905, que ficou conhecido como Domingo Sangrento, quando manifestantes que marchavam para entregar uma petição ao Czar, pedindo melhores condições de trabalho nas fábricas, foram fuzilados pela Guarda Imperial.
É nessa atmosfera que os atores fictícios abrem o debate sobre montar ou não a peça, sob o argumento de que seria um escapismo: “Pra que perder tempo fazendo isso? O teatro é uma merda. Querem fazer algo que seja de verdade: saiam às ruas.” O texto também está centrado num dos temas mais caros a Tchekhov: a perda da capacidade de interpretar.
Uma das atrizes é a alemã Olga Knipper (Patrícia Selonk), primeira atriz do famoso Teatro de Arte de Moscou e que foi casada com o dramaturgo russo. Sentindo-se incapaz de representar depois da morte do marido por tuberculose há apenas seis meses, e na tentativa de seguir vivendo, ela instiga Masha (Isabel Pacheco) e Aleko (Felipe Bustamante) a encenarem repetidamente junto com ela a morte do marido, mergulhando numa linguagem poética e num humor extremamente ácido que encanta pela diversidade de conceitos e teses que vão sendo destiladas ao longo da peça.
Neva (rio que corta São Petersburgo) foi escrito em 2005 e estreou em 2006, mesmo ano em que morreu o ditador carniceiro Augusto Pinochet. Portanto, não é à toa que vive sendo montada em países onde as instituições democráticas estão em perigo, caso do Brasil.
A qualidade dramatúrgica do elenco não é uniforme, mas é inegável que a atuação de Isabel Pacheco se sobressai, principalmente no monólogo final onde sua personagem vomita diatribes dos mais variados graus & calibres, vociferando em altos brados sua inconformidade com os tempos atuais e o que deve ser feito para recuperar a dignidade perdida da arte e do povo sob o tacão de um irrecuperável demente.

O mais paradoxal de tudo é que Neva não conseguiu financiamento algum, valendo-se da colaboração fundamental de mais de 80 pessoas, além dos artistas e técnicos que criaram a montagem, que abriram mão de seus cachês, caso de Maneco Quinderé (iluminação), Ricco Viana (música), Carla Berri (maquete do Teatro de Moscou) e de Ney Motta (assessoria de imprensa).

Neva está em nova temporada de 20 de janeiro a 12 de fevereiro no Espaço do Armazém na Fundição Progresso. Maiores informações (ficha técnica, endereço, horários, ingressos etc.) veja em https://teatrohoje.com.br/2022/11/08/neva/

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O som e a fúria de Lady Macbeth / A obra-prima de Cristina Mayrink https://teatrohoje.com.br/2022/11/08/o-som-e-a-furia-de-lady-macbeth-a-obra-prima-de-cristina-mayrink/ Tue, 08 Nov 2022 13:48:32 +0000 https://teatrohoje.com.br/?p=104403 Com direção do ator e diretor Diogo Camargos, esta é uma peça que transcende as limitações do monólogo, pois viaja por territórios ainda não completamente explorados no teatro com essa envergadura, agregando à famosa personagem de Shakespeare uma multiplicidade de signos, metáforas & símbolos que se entremeiam como num autêntico quebra-cabeça de infinitas possibilidades. Por incrível que pareça, este é o primeiro texto da atriz e produtora Cristina Mayrink, idealizadora e intérprete de uma saga planetária que cria sua própria cosmogonia e que poderia ser assinada por um alucinado Oswald de Andrade em pleno surto de genialidade. Ao misturar a fúria de Zé Celso & Antônio Abujamra com as aspirações anarquistas de Antonin Artaud e pigmentos de Tom Stoppard, a autora se alça ao restrito patamar de uma das melhores dramaturgas da atualidade. Não à toa uma das maiores qualidades do texto está sedimentada na ambiguidade de vocábulos e termos evocados, ampliando consideravelmente seus significados, contrapondo-os às falas de Lady Macbeth, a protagonista que se confunde deliberadamente com a própria atriz ao pretender ser reverenciada e paparicada por seus comparsas de jornada numa retomada de sua carreira através de um ritual pagão. A paródica metalinguagem usada por Cristina não é gratuita: as referências ao original de Shakespeare compõem uma quizumba malemolente de brasilidade afrodescendente, mas com citações embutidas que vão desde a música Psycho Killer, do Talking Heads, até as cenas mais sanguinolentas de Tarantino, resvalando por conceituações pertinentes sobre o Bem & o Mal, o Belo & o Feio, a Ficção & a Realidade, o Sublime & o Ignóbil, que podem tanto partir do microcosmo para chegar ao universal, quanto vice-versa. Em cena, Cristina encarna uma personagem dramaticamente hilária que teima em colocar os pingos nos iis de um país que chafurda na lama da sandice; que é lindo e miserável, ao mesmo tempo cândido e sórdido, inocente e bandalho. Seus movimentos tangenciam a cadência de uma concubina celestial & lasciva. Seu corpo incendeia a degeneração que grassa nas entranhas de uma sociedade corrupta e cínica. O sarcasmo está presente em cada fala, em cada nuance, em toda e qualquer manifestação da lógica teatral, até o momento em que se funde num algoritmo ensandecido disperso no intestino de uma gárgula anfíbia & dissoluta que nos espreita do alto das torres de vigia. Ou seja: Cristina parte de Shakespeare para chegar a Shakespeare, num passeio onírico pelas veredas e becos de um país que tenta se reinventar. A iluminação, a cenografia e a trilha sonora estão numa confluência quase litúrgica, configurando uma espécie de prece aos deuses mais desatentos, desses que insistem em tocar seu alaúde nas nuvens, enquanto o mundo se esboroa no abismo da caricatura de si mesmo. Uma obra-prima, sem dúvida, um espetáculo de sombras & luzes para todos os públicos que amam o teatro. O experimentalismo entra apenas como a cereja do bolo. A alternância de humor e drama nasce naturalmente, o texto jamais força a barra, e se desenvolve espontaneamente como se dois filhotes de diferentes cascavéis mamassem nas mesmas tetas. Esse líquido precioso é a enzima que viabiliza a reação química ao agrupar átomos e moléculas de diversos matizes e formar uma ameba até certo ponto inusitada. A longeva participação de Cristina Mayrink no grupo Os Fodidos Privilegiados legitima sua trajetória como atriz e lhe dá autonomia para alçar este voo solo da mesma forma que George Harrison, depois que os Beatles acabaram, lançou um disco triplo, até hoje a maior ousadia no mundo do rock. Nesse sentido, Cristina é o Harrison dos Fodidos, provavelmente porque seu talento ficou represado durante tanto tempo e que agora consegue emergir com tanta força, magia e qualidade. Muita gente participou deste projeto, mas é sem dúvida a mão delicada e competente do diretor Diogo Camargos que deu o acabamento estético, fechando o circuito com tanta lucidez e maestria ao proporcionar a possibilidade de Cristina tecer essa teia de aranha que estava incubada há décadas e que só agora pôde vir a lume, embalada pela ideia premonitória de All Things Must Pass. O som e a fúria de Lady Macbeth está em temporada nas segundas-feiras de novembro no Teatro Gláucio Gill. Horário, endereço, ficha técnica e outras informações, veja em https://teatrohoje.com.br/2022/10/28/o-som-e-a-furia-de-lady-macbeth/

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Com direção do ator e diretor Diogo Camargos, esta é uma peça que transcende as limitações do monólogo, pois viaja por territórios ainda não completamente explorados no teatro com essa envergadura, agregando à famosa personagem de Shakespeare uma multiplicidade de signos, metáforas & símbolos que se entremeiam como num autêntico quebra-cabeça de infinitas possibilidades.

Por incrível que pareça, este é o primeiro texto da atriz e produtora Cristina Mayrink, idealizadora e intérprete de uma saga planetária que cria sua própria cosmogonia e que poderia ser assinada por um alucinado Oswald de Andrade em pleno surto de genialidade. Ao misturar a fúria de Zé Celso & Antônio Abujamra com as aspirações anarquistas de Antonin Artaud e pigmentos de Tom Stoppard, a autora se alça ao restrito patamar de uma das melhores dramaturgas da atualidade.

Não à toa uma das maiores qualidades do texto está sedimentada na ambiguidade de vocábulos e termos evocados, ampliando consideravelmente seus significados, contrapondo-os às falas de Lady Macbeth, a protagonista que se confunde deliberadamente com a própria atriz ao pretender ser reverenciada e paparicada por seus comparsas de jornada numa retomada de sua carreira através de um ritual pagão.

A paródica metalinguagem usada por Cristina não é gratuita: as referências ao original de Shakespeare compõem uma quizumba malemolente de brasilidade afrodescendente, mas com citações embutidas que vão desde a música Psycho Killer, do Talking Heads, até as cenas mais sanguinolentas de Tarantino, resvalando por conceituações pertinentes sobre o Bem & o Mal, o Belo & o Feio, a Ficção & a Realidade, o Sublime & o Ignóbil, que podem tanto partir do microcosmo para chegar ao universal, quanto vice-versa.

Em cena, Cristina encarna uma personagem dramaticamente hilária que teima em colocar os pingos nos iis de um país que chafurda na lama da sandice; que é lindo e miserável, ao mesmo tempo cândido e sórdido, inocente e bandalho. Seus movimentos tangenciam a cadência de uma concubina celestial & lasciva. Seu corpo incendeia a degeneração que grassa nas entranhas de uma sociedade corrupta e cínica.

O sarcasmo está presente em cada fala, em cada nuance, em toda e qualquer manifestação da lógica teatral, até o momento em que se funde num algoritmo ensandecido disperso no intestino de uma gárgula anfíbia & dissoluta que nos espreita do alto das torres de vigia. Ou seja: Cristina parte de Shakespeare para chegar a Shakespeare, num passeio onírico pelas veredas e becos de um país que tenta se reinventar.

A iluminação, a cenografia e a trilha sonora estão numa confluência quase litúrgica, configurando uma espécie de prece aos deuses mais desatentos, desses que insistem em tocar seu alaúde nas nuvens, enquanto o mundo se esboroa no abismo da caricatura de si mesmo.

Uma obra-prima, sem dúvida, um espetáculo de sombras & luzes para todos os públicos que amam o teatro. O experimentalismo entra apenas como a cereja do bolo. A alternância de humor e drama nasce naturalmente, o texto jamais força a barra, e se desenvolve espontaneamente como se dois filhotes de diferentes cascavéis mamassem nas mesmas tetas. Esse líquido precioso é a enzima que viabiliza a reação química ao agrupar átomos e moléculas de diversos matizes e formar uma ameba até certo ponto inusitada.

A longeva participação de Cristina Mayrink no grupo Os Fodidos Privilegiados legitima sua trajetória como atriz e lhe dá autonomia para alçar este voo solo da mesma forma que George Harrison, depois que os Beatles acabaram, lançou um disco triplo, até hoje a maior ousadia no mundo do rock.

Nesse sentido, Cristina é o Harrison dos Fodidos, provavelmente porque seu talento ficou represado durante tanto tempo e que agora consegue emergir com tanta força, magia e qualidade.

Muita gente participou deste projeto, mas é sem dúvida a mão delicada e competente do diretor Diogo Camargos que deu o acabamento estético, fechando o circuito com tanta lucidez e maestria ao proporcionar a possibilidade de Cristina tecer essa teia de aranha que estava incubada há décadas e que só agora pôde vir a lume, embalada pela ideia premonitória de All Things Must Pass.

O som e a fúria de Lady Macbeth está em temporada nas segundas-feiras de novembro no Teatro Gláucio Gill. Horário, endereço, ficha técnica e outras informações, veja em https://teatrohoje.com.br/2022/10/28/o-som-e-a-furia-de-lady-macbeth/

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A ÚLTIMA ATA / Uma Farsa Desmascarada https://teatrohoje.com.br/2022/10/11/a-ultima-ata-uma-farsa-desmascarada/ Tue, 11 Oct 2022 23:13:41 +0000 https://teatrohoje.com.br/?p=104128 O dramaturgo e roteirista americano Tracy Letts é um velho conhecido das plateias brasileiras, tanto no teatro quanto no cinema, tanto como escritor quanto como ator. Agosto foi sucesso de crítica e público no mundo inteiro, colecionando inúmeros prêmios e indicações, tanto lá quanto cá. A Última Ata promete repetir esse êxito, pois o texto foca dois temas bem atuais: a História sendo deturpada por conveniências políticas e sociais e o extermínio de populações indígenas. Com direção do argentino Victor Garcia Peralta e tradução e adaptação de José Pedro Peter, o elenco de The Minutes (título original) é composto por nada menos que Alexandre Dantas, Alexandre Varella, Analu Prestes, Ary Coslov, Débora Figueiredo, Dedina Bernardelli, Leonardo Netto, Marcelo Aquino, Mário Borges, Roberto Frota e Thiago Justino. Nunca se viu no teatro tanto talento junto. A rigor, a reunião de vereadores corruptos & gananciosos numa cidadezinha nos cafundós do Brasil não mereceria maiores curiosidades, mas o enredo é instigante principalmente pela atualidade e ficamos à espera do seu desenvolvimento com os dedos cruzados. No entanto, o roteiro prende o espectador mais pela atuação dos atores e atrizes do que pelo texto em si, que possui alguns equívocos e redundâncias. Por ser um roteiro nitidamente norte-americano, existe a inconveniência de uma adaptação que seja minimamente verossímil, mas essa é uma pedreira que resvala no subjetivismo. Tem quem embarca, tem quem tolera e há também quem faça caretas. A história gira em torno da construção de um chafariz na praça principal, encimada por um homem a cavalo, estátua que representaria um herói local responsável pela defesa da cidade na hipotética invasão de indígenas selvagens lá pelo ano de 1864. Nesse embate pelos votos a favor e contra, ficamos sabendo que um dos vereadores [Ary Coslov] sumiu ou abriu mão do mandato por estar indignado ou pode até ter sido assassinado. Portanto, seu incerto destino fica em suspenso. A peça abre justamente com esse mote, levantado com elegância e insistência pelo personagem interpretado por Alexandre Varella, que exige saber o que aconteceu e por que não teve acesso à última ata da reunião anterior, na qual esteve ausente em virtude da morte de sua mãe. Há um silêncio suspeito de todos os outros vereadores, cada qual mentindo ou se omitindo de abrir a caixa-preta que envolve o evento. Contudo, essa aparente simplicidade dá ao autor plena liberdade de construir um mosaico de informações que se entrecruzam e completam o enigma. Num flach-back oportuno, o vereador aparece na reunião anterior contando uma história completamente diferente em relação ao suposto herói, que na verdade seria um genocida e nunca um libertador. A reconstituição das cenas do fato histórico fictício são impagáveis, onde os atores imitam canastrões de quinta categoria numa amadora & vulgar pantomima de boulevard, auxiliada pela brilhante iluminação onírica de Ana Luzia Molinari de Simoni. Como disse um dia Tolstoi, descreva tua aldeia que estarás descrevendo mundo. É justamente nesse microcosmo que está escondida a verdade, que, ao final, surge espremida entre o mito e a realidade. Ao final da peça, há uma espécie de ritual onde os 11 atores metem a mão numa cumbuca com um líquido vermelho, representando inequivocamente sangue, o que é uma redundância, pois todo mundo já tinha entendido que os vereadores tinham as mãos (e a consciência) sujas. O que dizer dos atores? É um show de talento e competência: como sempre, Analu Prestes é uma festa em cena. Exercendo com inteligência e mestria a ambiguidade de sua personagem, evolui em cena como uma autêntica maga safada; Marcelo Aquino interpreta um pastor com astúcia e perspicácia; coube a Leonardo Netto o papel mais difícil: ao mesmo tempo que sua timidez o impede de recuar de suas convicções, não abre mão da ousadia; Mario Borges, Ary Coslov e Dedina Bernardelli seguem o mesmo diapasão de sagacidade e lucidez; Roberto Frota, Alexandre Dantas e Thiago Justino têm o privilégio de figurarem como autênticos mestres na habilidade de confundir e atrapalhar o veredicto, ao mesmo tempo que elucidam a questão mesmo que inconscientemente; Débora Figueiredo [outro exemplo marcante] soube administrar as poucas falas que o texto lhe dá com a intuição de uma veterana: suas pontuações são cirúrgicas e apropriadas, inclusive quando está fora do foco: seus exercícios de meditação [provavelmente seguindo os ensinamentos de um monastério budista] são hilários. E mudos. Mas é o personagem de Alexandre Varella que se sobressai, com sua capacidade obsessiva de desvirtuar os rumos dos diálogos, fazendo perguntas inconvenientes e encurralando a turma dos panos quentes num beco sem saída. Ele não deixa pra lá, vai fundo. Bate e rebate, espreme, insiste tanto que consegue, por fim, seu intento de desmascarar a farsa. Desde o começo, ele é o pivô da discórdia. Através de sua falsa polidez & nobreza, com gestos calmos e metódicos, chega ao âmago da trapaça. É uma peça que merece ser vista e revista por todos os que se sentem ludibriados pelas mentiras que estamos ouvindo desde o colégio. Afinal, o mundo é amaldiçoado justamente por ter sido construído em cima de um cemitério indígena. A última ata está em temporada no Teatro das Artes

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O dramaturgo e roteirista americano Tracy Letts é um velho conhecido das plateias brasileiras, tanto no teatro quanto no cinema, tanto como escritor quanto como ator. Agosto foi sucesso de crítica e público no mundo inteiro, colecionando inúmeros prêmios e indicações, tanto lá quanto cá.

A Última Ata promete repetir esse êxito, pois o texto foca dois temas bem atuais: a História sendo deturpada por conveniências políticas e sociais e o extermínio de populações indígenas.

Com direção do argentino Victor Garcia Peralta e tradução e adaptação de José Pedro Peter, o elenco de The Minutes (título original) é composto por nada menos que Alexandre Dantas, Alexandre Varella, Analu Prestes, Ary Coslov, Débora Figueiredo, Dedina Bernardelli, Leonardo Netto, Marcelo Aquino, Mário Borges, Roberto Frota e Thiago Justino. Nunca se viu no teatro tanto talento junto.

A rigor, a reunião de vereadores corruptos & gananciosos numa cidadezinha nos cafundós do Brasil não mereceria maiores curiosidades, mas o enredo é instigante principalmente pela atualidade e ficamos à espera do seu desenvolvimento com os dedos cruzados.

No entanto, o roteiro prende o espectador mais pela atuação dos atores e atrizes do que pelo texto em si, que possui alguns equívocos e redundâncias.

Por ser um roteiro nitidamente norte-americano, existe a inconveniência de uma adaptação que seja minimamente verossímil, mas essa é uma pedreira que resvala no subjetivismo.

Tem quem embarca, tem quem tolera e há também quem faça caretas.

A história gira em torno da construção de um chafariz na praça principal, encimada por um homem a cavalo, estátua que representaria um herói local responsável pela defesa da cidade na hipotética invasão de indígenas selvagens lá pelo ano de 1864.

Nesse embate pelos votos a favor e contra, ficamos sabendo que um dos vereadores [Ary Coslov] sumiu ou abriu mão do mandato por estar indignado ou pode até ter sido assassinado. Portanto, seu incerto destino fica em suspenso.
A peça abre justamente com esse mote, levantado com elegância e insistência pelo personagem interpretado por Alexandre Varella, que exige saber o que aconteceu e por que não teve acesso à última ata da reunião anterior, na qual esteve ausente em virtude da morte de sua mãe. Há um silêncio suspeito de todos os outros vereadores, cada qual mentindo ou se omitindo de abrir a caixa-preta que envolve o evento.

Contudo, essa aparente simplicidade dá ao autor plena liberdade de construir um mosaico de informações que se entrecruzam e completam o enigma. Num flach-back oportuno, o vereador aparece na reunião anterior contando uma história completamente diferente em relação ao suposto herói, que na verdade seria um genocida e nunca um libertador. A reconstituição das cenas do fato histórico fictício são impagáveis, onde os atores imitam canastrões de quinta categoria numa amadora & vulgar pantomima de boulevard, auxiliada pela brilhante iluminação onírica de Ana Luzia Molinari de Simoni.

Como disse um dia Tolstoi, descreva tua aldeia que estarás descrevendo mundo. É justamente nesse microcosmo que está escondida a verdade, que, ao final, surge espremida entre o mito e a realidade.

Ao final da peça, há uma espécie de ritual onde os 11 atores metem a mão numa cumbuca com um líquido vermelho, representando inequivocamente sangue, o que é uma redundância, pois todo mundo já tinha entendido que os vereadores tinham as mãos (e a consciência) sujas.

O que dizer dos atores? É um show de talento e competência: como sempre, Analu Prestes é uma festa em cena. Exercendo com inteligência e mestria a ambiguidade de sua personagem, evolui em cena como uma autêntica maga safada; Marcelo Aquino interpreta um pastor com astúcia e perspicácia; coube a Leonardo Netto o papel mais difícil: ao mesmo tempo que sua timidez o impede de recuar de suas convicções, não abre mão da ousadia; Mario Borges, Ary Coslov e Dedina Bernardelli seguem o mesmo diapasão de sagacidade e lucidez; Roberto Frota, Alexandre Dantas e Thiago Justino têm o privilégio de figurarem como autênticos mestres na habilidade de confundir e atrapalhar o veredicto, ao mesmo tempo que elucidam a questão mesmo que inconscientemente; Débora Figueiredo [outro exemplo marcante] soube administrar as poucas falas que o texto lhe dá com a intuição de uma veterana: suas pontuações são cirúrgicas e apropriadas, inclusive quando está fora do foco: seus exercícios de meditação [provavelmente seguindo os ensinamentos de um monastério budista] são hilários. E mudos.

Mas é o personagem de Alexandre Varella que se sobressai, com sua capacidade obsessiva de desvirtuar os rumos dos diálogos, fazendo perguntas inconvenientes e encurralando a turma dos panos quentes num beco sem saída. Ele não deixa pra lá, vai fundo. Bate e rebate, espreme, insiste tanto que consegue, por fim, seu intento de desmascarar a farsa. Desde o começo, ele é o pivô da discórdia. Através de sua falsa polidez & nobreza, com gestos calmos e metódicos, chega ao âmago da trapaça.

É uma peça que merece ser vista e revista por todos os que se sentem ludibriados pelas mentiras que estamos ouvindo desde o colégio. Afinal, o mundo é amaldiçoado justamente por ter sido construído em cima de um cemitério indígena.

A última ata está em temporada no Teatro das Artes

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Do outro lado do mar / Uma delicada reflexão sobre a existência https://teatrohoje.com.br/2022/10/09/do-outro-lado-do-mar-uma-delicada-reflexao-sobre-a-existencia/ Sun, 09 Oct 2022 13:15:20 +0000 https://teatrohoje.com.br/?p=104079 Só por curiosidade: você sabe onde fica El Salvador, qual sua capital, quantos habitantes tem e como anda a vida cultural por lá? Pois é. Não é apenas porque o Brasil fala português e o resto da América Latina, espanhol, que existe essa ignorância abismal: é falta de interesse mesmo, o brasileiro não tem a mínima curiosidade em saber o que rola no resto do continente, tanto em termos políticos, quanto sociais e artísticos. Com texto da salvadorenha Jorgelina Cerritos, encenação de Márcio Meirelles e interpretação dos baianos Andrea Elia e Edu Coutinho, com trilha sonora ao vivo de Ramon Gonçalves, Do Outro Lado do Mar pode preencher essa lacuna vergonhosa pelo menos em relação ao teatro. Num embate cerrado entre Dorotea, uma funcionária burocrática de um cartório, e um homem que desconhece tudo sobre si mesmo é o start de uma das peças mais instigantes desta temporada no Rio de Janeiro. Com extrema delicadeza e elegância, o enredo desenvolve o tema da identidade do ser humano, abrindo a vertente para a discussão tanto em termos íntimos quanto sociais. Ele tem um objetivo: resgatar seu passado através de uma certidão de nascimento exigida por um canil para que consiga adotar um cachorro, mas a mulher é firme em suas convicções, pois segue as regras: sem esses dados, ela nega o papel. Quando a funcionária lhe pergunta coisas básicas no sentido de dar andamento ao processo, se depara com o impasse: o homem não pode satisfazer a burocracia, pois não tem ideia sobre sua origem: não sabe seu nome nem o sobrenome, nem o da mãe nem o do pai e nem seu domicílio, pois mora num barco ancorado perto do cartório. Tentando resolver a questão através de uma mitologia caseira, arrisca: chama-se Pescador do Mar. Poderá a identidade do ser humano ser resumida através de um papel timbrado? Não bastaria apenas a vontade de ser? É realmente necessário ter um nome para ser identificado e assumido na sociedade? Essas e outras perguntas [sempre com muita ternura e lirismo] compõem um mosaico de reflexões sobre o paradoxo da existência. Uma questão shakespeariana dessa natureza em pleno século XXI beira o absurdo, mas que se há de fazer? O mundo não é mais do que isso: uma sucessão de desatinos e disparates sem a menor lógica ou razão. No entanto, Jorgelina Cerritos não para por aí, ela vai além. As demandas de cada um se interpõem de forma simbiótica, cada qual defendendo suas posições. Para isso, há uma troca de confidências: a infelicidade da mulher tangencia a solidão de uma funcionária à beira da aposentadoria: ninguém a espera em casa, não teve filhos e sua vida teria que reciclar o termo marasmo em todas as suas configurações menos nobres. Por sua vez, o Pescador do Mar lhe conta que se batizou daquela maneira porque vive das águas, ouve suas vozes, conversa com elas, é íntimo do mar, de sua natureza e destino, sabe do que é feito, de onde ele vem e pra onde vai, trocam informações. São unha e carne. Completam-se. E, para ele, isso configura a felicidade. Há um instante, milésimos de segundo, em que ambos se entreolham e pensam sobre o que ouviram um do outro; frente a frente, a mulher coloca em xeque sua posição. Ao final [que poderia ser classificada desde já como uma das cenas mais pungentes da dramaturgia mundial], ela lhe estende a certidão, protocolada e carimbada com seu nome, Pescador do Mar, nascido naquele exato momento e certificando que ele finalmente existe, reservando-se a posição de sua real progenitora. Montada pela Companhia Teatro dos Novos junto ao Toró Teatro, Do Outro Lado do Mar é a primeira versão no país de uma obra de Jorgelina Cerritos que, em 2010, conquistou o importante prêmio Casa de las Américas pela dramaturgia deste texto, que foi encenado em países como Cuba, Guatemala, Costa Rica e Estados Unidos. Pra fechar, outra reflexão não menos importante: enquanto a elite do teatro brasileiro se banqueteia com textos europeus e americanos, a América Latina continua ficando para trás, o que é um equívoco, pois é aqui que ainda existe vida e esperança. O que estará acontecendo no Peru, no Equador, na Colômbia, na Bolívia, no Uruguai e no resto do Caribe? Até quando ficaremos nesta eterna condição de colonizados culturais, negligenciando autores do nosso próprio continente? Do outro lado do mar está em temporada no Teatro Poeirinha até 30 de outubro. Informações como ficha técnica, endereço, horários, ingressos, teaser do espetáculo etc., veja em https://teatrohoje.com.br/2022/10/02/do-outro-lado-do-mar-2/.

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Só por curiosidade: você sabe onde fica El Salvador, qual sua capital, quantos habitantes tem e como anda a vida cultural por lá? Pois é. Não é apenas porque o Brasil fala português e o resto da América Latina, espanhol, que existe essa ignorância abismal: é falta de interesse mesmo, o brasileiro não tem a mínima curiosidade em saber o que rola no resto do continente, tanto em termos políticos, quanto sociais e artísticos.
Com texto da salvadorenha Jorgelina Cerritos, encenação de Márcio Meirelles e interpretação dos baianos Andrea Elia e Edu Coutinho, com trilha sonora ao vivo de Ramon Gonçalves, Do Outro Lado do Mar pode preencher essa lacuna vergonhosa pelo menos em relação ao teatro.
Num embate cerrado entre Dorotea, uma funcionária burocrática de um cartório, e um homem que desconhece tudo sobre si mesmo é o start de uma das peças mais instigantes desta temporada no Rio de Janeiro. Com extrema delicadeza e elegância, o enredo desenvolve o tema da identidade do ser humano, abrindo a vertente para a discussão tanto em termos íntimos quanto sociais.
Ele tem um objetivo: resgatar seu passado através de uma certidão de nascimento exigida por um canil para que consiga adotar um cachorro, mas a mulher é firme em suas convicções, pois segue as regras: sem esses dados, ela nega o papel. Quando a funcionária lhe pergunta coisas básicas no sentido de dar andamento ao processo, se depara com o impasse: o homem não pode satisfazer a burocracia, pois não tem ideia sobre sua origem: não sabe seu nome nem o sobrenome, nem o da mãe nem o do pai e nem seu domicílio, pois mora num barco ancorado perto do cartório. Tentando resolver a questão através de uma mitologia caseira, arrisca: chama-se Pescador do Mar.
Poderá a identidade do ser humano ser resumida através de um papel timbrado? Não bastaria apenas a vontade de ser? É realmente necessário ter um nome para ser identificado e assumido na sociedade? Essas e outras perguntas [sempre com muita ternura e lirismo] compõem um mosaico de reflexões sobre o paradoxo da existência. Uma questão shakespeariana dessa natureza em pleno século XXI beira o absurdo, mas que se há de fazer? O mundo não é mais do que isso: uma sucessão de desatinos e disparates sem a menor lógica ou razão.
No entanto, Jorgelina Cerritos não para por aí, ela vai além. As demandas de cada um se interpõem de forma simbiótica, cada qual defendendo suas posições. Para isso, há uma troca de confidências: a infelicidade da mulher tangencia a solidão de uma funcionária à beira da aposentadoria: ninguém a espera em casa, não teve filhos e sua vida teria que reciclar o termo marasmo em todas as suas configurações menos nobres. Por sua vez, o Pescador do Mar lhe conta que se batizou daquela maneira porque vive das águas, ouve suas vozes, conversa com elas, é íntimo do mar, de sua natureza e destino, sabe do que é feito, de onde ele vem e pra onde vai, trocam informações. São unha e carne. Completam-se. E, para ele, isso configura a felicidade.

Há um instante, milésimos de segundo, em que ambos se entreolham e pensam sobre o que ouviram um do outro; frente a frente, a mulher coloca em xeque sua posição. Ao final [que poderia ser classificada desde já como uma das cenas mais pungentes da dramaturgia mundial], ela lhe estende a certidão, protocolada e carimbada com seu nome, Pescador do Mar, nascido naquele exato momento e certificando que ele finalmente existe, reservando-se a posição de sua real progenitora.

Montada pela Companhia Teatro dos Novos junto ao Toró Teatro, Do Outro Lado do Mar é a primeira versão no país de uma obra de Jorgelina Cerritos que, em 2010, conquistou o importante prêmio Casa de las Américas pela dramaturgia deste texto, que foi encenado em países como Cuba, Guatemala, Costa Rica e Estados Unidos.
Pra fechar, outra reflexão não menos importante: enquanto a elite do teatro brasileiro se banqueteia com textos europeus e americanos, a América Latina continua ficando para trás, o que é um equívoco, pois é aqui que ainda existe vida e esperança. O que estará acontecendo no Peru, no Equador, na Colômbia, na Bolívia, no Uruguai e no resto do Caribe? Até quando ficaremos nesta eterna condição de colonizados culturais, negligenciando autores do nosso próprio continente?

Do outro lado do mar está em temporada no Teatro Poeirinha até 30 de outubro. Informações como ficha técnica, endereço, horários, ingressos, teaser do espetáculo etc., veja em https://teatrohoje.com.br/2022/10/02/do-outro-lado-do-mar-2/.

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O AUTO DA COMPADECIDA / UM MARCO NA DRAMATURGIA CONTEMPORÂNEA https://teatrohoje.com.br/2022/10/07/o-auto-da-compadecida-um-marco-na-dramaturgia-contemporanea/ Fri, 07 Oct 2022 11:52:39 +0000 https://teatrohoje.com.br/?p=104069 Já virou lugar-comum dizer que um texto clássico é atemporal pois contempla situações que podem ocorrer em qualquer século, em qualquer país ou cidade nas mais diferentes latitudes e longitudes do globo terrestre, mas o Auto da Compadecida é impressionante. Senão, vejamos: há uma promíscua cumplicidade entre uma igreja mercenária e o poder local, ambos se alimentando continuamente um ao outro através de propinas retóricas; há uma ampla difusão de mentiras sendo espalhadas por espertalhões e aceitas pela população sem maiores estranhamentos; há covardes que se escondem atrás de inversões de narrativas de acordo com seus interesses, ao mesmo tempo em que ignorantes lançam mão da brutalidade para vencer na vida e, por fim, há até uma fakeada. Um Suassuna de vez em quando é sempre bom, mas se a peça estiver a cargo de uma direção criativa e um elenco excepcional, fica melhor ainda. É o caso desta montagem de Auto da Compadecida, que comemora seus dez anos em cartaz pilotada pela Cia Limite 151, uma companhia de teatro que sempre primou pelo bom gosto ao escolher seus textos. Com direção do experiente & descolado Sidnei Cruz, a comédia [picaresca por natureza] garante boas risadas durante toda a encenação. De cabo a rabo, o público se esbalda diante das hilariantes esquetes que se sucedem no sentido de montar um multifacetado mosaico de tudo que existe de bom e de ruim no gênero humano circunstancialmente estabelecido na pequena [e mítica] cidade de Taperoá, um local onde as pessoas se esgarçam para conseguir o pão. Para isso, no entanto, são obrigadas a deixar de lado parâmetros de conduta moral. Ninguém é totalmente bom ou completamente ruim na localidade: não há maniqueísmo, é a realidade paupérrima que conduz suas atitudes. Portanto, a igreja se mancomuna com o poder do coronel, mudando de lado a cada investida de João Grilo, um herói sem nenhum caráter que segue estritamente a filosofia das ruas, valendo-se de suas artimanhas para poder sobreviver. O texto de Suassuna é um belíssimo exemplo de sua arte armorial [uma espécie de Commedia dell`arte à la espanhola] que foi resgatada pelo autor de acordo com suas pesquisas literárias e dramatúrgicas para compor seus romances e peças de teatro. Embora todo o elenco seja de primeira qualidade, é inegável que a composição do personagem João Grilo encarnado pela atriz Gláucia Rodrigues se sobressai com suas momices clownescas que encantam pela variedade de artifícios que empresta ao famoso personagem. Seu rosto e seu corpo são de borracha, quase um mamulengo. Não há um instante sequer durante todo o espetáculo em que ela não acrescente variantes e disfarces num contínuo e brilhante conjunto de reflexões, sem perder a pegada irônica. O ritmo alucinante é regido por Sidnei Cruz, que não deixa a peteca cair em momento algum: tudo se encaixa como num quebra-cabeça demencial, abrindo e seguindo constantemente atalhos dramatúrgicos de perder o fôlego. O elenco é completado de maneira simbiótica e conivente por Rafael Canedo, Edmundo Lippi, Robson Santos, Flávia Fafiães, Isabella Dionísio, Kakau Barredo, Bruno Ganem, Marcio Ricciardi, Paulo Japyassú, Luiz Machado e Ricardo Knupp. Além do exuberante cenário de José Dias, os figurinos de Samuel Abrantes, a iluminação mediúnica de Aurélio De Simoni e músicas e direção musical de Wagner Campos, ainda temos, na cena final, a aparição bombástica de Flávia Fafiães, que interpreta a Virgem Maria de forma propositadamente ambígua, alternando seu rosto angelical com uma malemolência safada de arrepiar qualquer católico que se preze. Resumindo: esta nova montagem da comédia de Suassuna, além de recriar o clima sarcástico do autor, acrescenta algumas nuances que o torna único no gênero, com especial atenção na cadência e pulsação: os arranjos são submetidos à velocidade das execuções; a regularidade de movimentos e performances dos atores é anfíbia, batendo uma no cravo, outra na ferradura; não há um padrão, mas nada sai dos eixos e o tempo pode ficar tanto em suspenso quando seguir a cronologia factual dos acontecimentos. Depois de dez anos encenando o mesmo texto, a Cia Limite 151 poderia muito bem se dar ao luxo de exercer a improvisação e inventar cacos para agradar as plateias mais desatentas, mas não é isso que acontece: o elenco se mantém coeso e coerente de acordo com as marcações originais do autor. A aproximação latente com a realidade de hoje se deve apenas e tão somente por ser um clássico e o diretor sabe disso, o elenco sabe disso, a produção sabe disso e a plateia entende perfeitamente o que é mostrado, sem a necessidade [na maioria das vezes desastrada] de uma redundante atualização. Auto da Compadecida é um espetáculo imperdível para o público de todas as idades, credos, etnias e esta nova montagem é um marco da dramaturgia contemporânea. Auto da Compadecida está em temporada no Teatro Dulcina até 29 de outubro. Informações sobre a peça, sinopse, ficha técnica, horários, endereço, ingressos etc. veja em https://teatrohoje.com.br/2022/07/18/auto-da-compadecida/

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Já virou lugar-comum dizer que um texto clássico é atemporal pois contempla situações que podem ocorrer em qualquer século, em qualquer país ou cidade nas mais diferentes latitudes e longitudes do globo terrestre, mas o Auto da Compadecida é impressionante.
Senão, vejamos: há uma promíscua cumplicidade entre uma igreja mercenária e o poder local, ambos se alimentando continuamente um ao outro através de propinas retóricas; há uma ampla difusão de mentiras sendo espalhadas por espertalhões e aceitas pela população sem maiores estranhamentos; há covardes que se escondem atrás de inversões de narrativas de acordo com seus interesses, ao mesmo tempo em que ignorantes lançam mão da brutalidade para vencer na vida e, por fim, há até uma fakeada.
Um Suassuna de vez em quando é sempre bom, mas se a peça estiver a cargo de uma direção criativa e um elenco excepcional, fica melhor ainda. É o caso desta montagem de Auto da Compadecida, que comemora seus dez anos em cartaz pilotada pela Cia Limite 151, uma companhia de teatro que sempre primou pelo bom gosto ao escolher seus textos.
Com direção do experiente & descolado Sidnei Cruz, a comédia [picaresca por natureza] garante boas risadas durante toda a encenação. De cabo a rabo, o público se esbalda diante das hilariantes esquetes que se sucedem no sentido de montar um multifacetado mosaico de tudo que existe de bom e de ruim no gênero humano circunstancialmente estabelecido na pequena [e mítica] cidade de Taperoá, um local onde as pessoas se esgarçam para conseguir o pão. Para isso, no entanto, são obrigadas a deixar de lado parâmetros de conduta moral.
Ninguém é totalmente bom ou completamente ruim na localidade: não há maniqueísmo, é a realidade paupérrima que conduz suas atitudes. Portanto, a igreja se mancomuna com o poder do coronel, mudando de lado a cada investida de João Grilo, um herói sem nenhum caráter que segue estritamente a filosofia das ruas, valendo-se de suas artimanhas para poder sobreviver.
O texto de Suassuna é um belíssimo exemplo de sua arte armorial [uma espécie de Commedia dell`arte à la espanhola] que foi resgatada pelo autor de acordo com suas pesquisas literárias e dramatúrgicas para compor seus romances e peças de teatro.
Embora todo o elenco seja de primeira qualidade, é inegável que a composição do personagem João Grilo encarnado pela atriz Gláucia Rodrigues se sobressai com suas momices clownescas que encantam pela variedade de artifícios que empresta ao famoso personagem. Seu rosto e seu corpo são de borracha, quase um mamulengo. Não há um instante sequer durante todo o espetáculo em que ela não acrescente variantes e disfarces num contínuo e brilhante conjunto de reflexões, sem perder a pegada irônica.
O ritmo alucinante é regido por Sidnei Cruz, que não deixa a peteca cair em momento algum: tudo se encaixa como num quebra-cabeça demencial, abrindo e seguindo constantemente atalhos dramatúrgicos de perder o fôlego.
O elenco é completado de maneira simbiótica e conivente por Rafael Canedo, Edmundo Lippi, Robson Santos, Flávia Fafiães, Isabella Dionísio, Kakau Barredo, Bruno Ganem, Marcio Ricciardi, Paulo Japyassú, Luiz Machado e Ricardo Knupp.
Além do exuberante cenário de José Dias, os figurinos de Samuel Abrantes, a iluminação mediúnica de Aurélio De Simoni e músicas e direção musical de Wagner Campos, ainda temos, na cena final, a aparição bombástica de Flávia Fafiães, que interpreta a Virgem Maria de forma propositadamente ambígua, alternando seu rosto angelical com uma malemolência safada de arrepiar qualquer católico que se preze.
Resumindo: esta nova montagem da comédia de Suassuna, além de recriar o clima sarcástico do autor, acrescenta algumas nuances que o torna único no gênero, com especial atenção na cadência e pulsação: os arranjos são submetidos à velocidade das execuções; a regularidade de movimentos e performances dos atores é anfíbia, batendo uma no cravo, outra na ferradura; não há um padrão, mas nada sai dos eixos e o tempo pode ficar tanto em suspenso quando seguir a cronologia factual dos acontecimentos.
Depois de dez anos encenando o mesmo texto, a Cia Limite 151 poderia muito bem se dar ao luxo de exercer a improvisação e inventar cacos para agradar as plateias mais desatentas, mas não é isso que acontece: o elenco se mantém coeso e coerente de acordo com as marcações originais do autor. A aproximação latente com a realidade de hoje se deve apenas e tão somente por ser um clássico e o diretor sabe disso, o elenco sabe disso, a produção sabe disso e a plateia entende perfeitamente o que é mostrado, sem a necessidade [na maioria das vezes desastrada] de uma redundante atualização.
Auto da Compadecida é um espetáculo imperdível para o público de todas as idades, credos, etnias e esta nova montagem é um marco da dramaturgia contemporânea.

Auto da Compadecida está em temporada no Teatro Dulcina até 29 de outubro. Informações sobre a peça, sinopse, ficha técnica, horários, endereço, ingressos etc. veja em https://teatrohoje.com.br/2022/07/18/auto-da-compadecida/

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INTIMIDADE INDECENTE / Um clássico que agrada a gregos e troianos https://teatrohoje.com.br/2022/09/11/intimidade-indecente-um-classico-que-agrada-a-gregos-e-troianos/ Sun, 11 Sep 2022 13:38:56 +0000 https://teatrohoje.com.br/?p=103728 Poderia ser mais uma discussão de relacionamento se o texto não fosse escrito por Leilah Assumpção que, segundo Renata Palottini, é uma dramaturga que inventou uma nova forma de colocar na cena teatral suas intuições, descobertas e experiências, inovando de tal maneira a dramaturgia em sua geração que se tornou a introdutora de um diálogo inusitado e de personagens inéditos. Teve atuação decisiva nas décadas de 60 e 70 com peças clássicas como Fala Baixo, se Não Eu Grito (1969), Roda Cor de Roda (1975),Vejo um Vulto na Janela, Me Acudam que Eu Sou Donzela, escrita em 1964, mas que só estreou em 1979, Boca Molhada de Paixão Calada (1984), entre outras, todas libertárias e divertidas, com um pé no feminismo e no retrato realista de uma nova mulher que surgia. Portanto, Intimidade Indecente vai muito além do trivial variado que normalmente se vê no palco com essa temática. Estreou em 2001 com Irene Ravache e Marcos Caruso e volta 21 anos depois, com Eliane Giardini, mantendo o mesmo par masculino. A sinopse é simples: um casal sessentão resolve se separar em virtude do desgaste da rotina do casamento: o sexo é apenas uma vaga lembrança, os ressentimentos incubados e a implicância mútua se repetem à exaustão. Não há motivo para ficarem juntos. Mas o diferencial vem em seguida: Leilah Assumpção não é uma autora qualquer, ela vai fundo, desdobra-se para não cair em estereótipos. Com o desenrolar das cenas que se sucedem a intervalos de dez anos ou mais entre uma e outra, o público percebe que o tema não é a separação em si, mas a aproximação da velhice, com todas suas sequelas inerentes: o esquecimento, dores nas juntas, dificuldades de locomoção e principalmente as experiências de cada um diante das vicissitudes da vida. O efeito bumerangue se dá da seguinte maneira: o casal se reencontra várias vezes em circunstâncias diferentes que modificam vertiginosamente o cerne da questão, acrescentando novas perspectivas e nuances ou mesmo suprimindo outras possibilidades. Nesse jogo de adição e subtração é que está o êxito maior do texto. O grande trunfo da peça é a incorporação dessas mudanças estruturais e inclusive na postura dos personagens sem lançar mão de nenhum artifício de maquiagem ou vestuário, pois, do meio da peça para frente, passam-se vinte e cinco anos ou mais. Tanto Eliane Giardini quanto Marcos Caruso interpretam esse avanço da velhice à sua maneira. Enquanto a atriz se atém com brilho ao que estava na intenção da autora, o ator cede ao mais fácil: a caricatura. Às vezes, dá a impressão que está nesses programas pueris de TV, o que é uma pena diante da enormidade de seu talento. Intimidade Indecente tem duas partes: na primeira (provavelmente numa tentativa desastrada de atualizar as cenas cômicas), o texto apela para algumas grosserias que possivelmente não estavam no script original e que foram adicionadas para esquentar o público. Na segunda, vem o drama propriamente dito: uma tragicomédia séria e profunda onde o ser humano se desdobra para enfrentar as arapucas do destino. Uma reflexão, contudo, se faz necessária: até que ponto as grandes produções devem se submeter a esse fenômeno absurdo e bizarro de agradar o público que pretende rir de tudo a qualquer preço? Acaso acham que o texto de Leilah Assumpção não é o suficiente? Serão os repetecos, cacos e simulações realmente necessários para lotar uma casa de espetáculo? É difícil dizer se o diretor Guilherme Leme Garcia atuou de forma conivente ou atenuante nesse processo, mas a verdade é que tudo funciona de forma eficiente, principalmente na lírica cena final. Aos puristas, resta apenas a possibilidade de aceitar o riso histérico das plateias sem espernear muito, caso contrário serão tachados de tiozinhos rabugentos. Intimidade indecente está em temporada no Teatro Clara Nunes. Ver sinopse, ficha técnica, endereço, horários, preços, ingressos etc. em  https://teatrohoje.com.br/2022/03/31/intimidade-indecente/

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Poderia ser mais uma discussão de relacionamento se o texto não fosse escrito por Leilah Assumpção que, segundo Renata Palottini, é uma dramaturga que inventou uma nova forma de colocar na cena teatral suas intuições, descobertas e experiências, inovando de tal maneira a dramaturgia em sua geração que se tornou a introdutora de um diálogo inusitado e de personagens inéditos.

Teve atuação decisiva nas décadas de 60 e 70 com peças clássicas como Fala Baixo, se Não Eu Grito (1969), Roda Cor de Roda (1975),Vejo um Vulto na Janela, Me Acudam que Eu Sou Donzela, escrita em 1964, mas que só estreou em 1979, Boca Molhada de Paixão Calada (1984), entre outras, todas libertárias e divertidas, com um pé no feminismo e no retrato realista de uma nova mulher que surgia.

Portanto, Intimidade Indecente vai muito além do trivial variado que normalmente se vê no palco com essa temática. Estreou em 2001 com Irene Ravache e Marcos Caruso e volta 21 anos depois, com Eliane Giardini, mantendo o mesmo par masculino.

A sinopse é simples: um casal sessentão resolve se separar em virtude do desgaste da rotina do casamento: o sexo é apenas uma vaga lembrança, os ressentimentos incubados e a implicância mútua se repetem à exaustão. Não há motivo para ficarem juntos. Mas o diferencial vem em seguida: Leilah Assumpção não é uma autora qualquer, ela vai fundo, desdobra-se para não cair em estereótipos.

Com o desenrolar das cenas que se sucedem a intervalos de dez anos ou mais entre uma e outra, o público percebe que o tema não é a separação em si, mas a aproximação da velhice, com todas suas sequelas inerentes: o esquecimento, dores nas juntas, dificuldades de locomoção e principalmente as experiências de cada um diante das vicissitudes da vida. O efeito bumerangue se dá da seguinte maneira: o casal se reencontra várias vezes em circunstâncias diferentes que modificam vertiginosamente o cerne da questão, acrescentando novas perspectivas e nuances ou mesmo suprimindo outras possibilidades. Nesse jogo de adição e subtração é que está o êxito maior do texto.

O grande trunfo da peça é a incorporação dessas mudanças estruturais e inclusive na postura dos personagens sem lançar mão de nenhum artifício de maquiagem ou vestuário, pois, do meio da peça para frente, passam-se vinte e cinco anos ou mais.

Tanto Eliane Giardini quanto Marcos Caruso interpretam esse avanço da velhice à sua maneira. Enquanto a atriz se atém com brilho ao que estava na intenção da autora, o ator cede ao mais fácil: a caricatura. Às vezes, dá a impressão que está nesses programas pueris de TV, o que é uma pena diante da enormidade de seu talento.

Intimidade Indecente tem duas partes: na primeira (provavelmente numa tentativa desastrada de atualizar as cenas cômicas), o texto apela para algumas grosserias que possivelmente não estavam no script original e que foram adicionadas para esquentar o público. Na segunda, vem o drama propriamente dito: uma tragicomédia séria e profunda onde o ser humano se desdobra para enfrentar as arapucas do destino.

Uma reflexão, contudo, se faz necessária: até que ponto as grandes produções devem se submeter a esse fenômeno absurdo e bizarro de agradar o público que pretende rir de tudo a qualquer preço? Acaso acham que o texto de Leilah Assumpção não é o suficiente? Serão os repetecos, cacos e simulações realmente necessários para lotar uma casa de espetáculo?

É difícil dizer se o diretor Guilherme Leme Garcia atuou de forma conivente ou atenuante nesse processo, mas a verdade é que tudo funciona de forma eficiente, principalmente na lírica cena final. Aos puristas, resta apenas a possibilidade de aceitar o riso histérico das plateias sem espernear muito, caso contrário serão tachados de tiozinhos rabugentos.

Intimidade indecente está em temporada no Teatro Clara Nunes. Ver sinopse, ficha técnica, endereço, horários, preços, ingressos etc. em  https://teatrohoje.com.br/2022/03/31/intimidade-indecente/

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