É necessária muita ginga dramatúrgica para contar a vida de um escritor tão multifacetado como Jorge Amado. São muitos estágios que se entrecruzam, onde sua militância política se funde com o candomblé, a sensualidade baiana, as músicas de Dorival Caymmi e as reviravoltas de temas e estilo, mas é provavelmente a convivência amorosa de 56 anos com Zélia Gattai que consegue articular esse mosaico com tanta delicadeza, brandura e suavidade.

Não é segredo para ninguém que Jorge Amado era comunista de coração, atuou tanto na literatura quanto na política com esse direcionamento ideológico, mas não se fixou em dogmas. O contato e amizade com figuras do porte de Caribé, Pablo Neruda, Nicolás Guillén, Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Harry Belafonte não foram em vão. Seus romances e sua fama internacional eram como um ímã: todos queriam conhecê-lo e vinham ao Brasil para trocar ideias e amabilidades e se encantavam com sua inteligência, meiguice e carisma.

Ninguém melhor que sua mulher Zélia para contar essa história, desde o começo do namoro (ainda na década de 40) até sua morte em 2001, passando pelo pedido de casamento, sua estada no Rio de Janeiro (onde conheceu Tom Jobim e Vinícius de Moraes), o exílio em Paris e Tchecoslováquia e os últimos anos na casa do Rio Vermelho, o sítio baiano onde ele pôde finalmente descansar, escrever seus derradeiros livros e instigar Zélia a dar início a uma copiosa fase de romancista, com um pé na ficção e outro na memorialística.

Com texto e direção de Renato Santos, a atriz Luciana Borghi e o músico Pedro Miranda formam no palco uma dupla irresistível em todos os sentidos. Enquanto ela é terna e afetuosa em suas lembranças, ele pontua cada passo e cada frase dedilhando o violão, cantando e pilotando atabaques, levando o público a viajar por regiões tanto familiares quanto desconhecidas. É um autêntico romance musical, num andamento extremamente cadenciado.

Luciana Borghi é uma atriz excepcional, sabe tudo, desde o miolo da atuação até as fronteiras mais perigosas de pausas e silêncios. Sua interpretação é uterina e lunar. Se prestarmos bem atenção, veremos sua aura resplandecendo a seu redor ao incorporar Zélia em todos seus momentos de lucidez & doçura. É uma atuação quase mediúnica. Ela envolve o espectador com uma flexibilidade de dar inveja aos mais experientes atores do teatro brasileiro. Sua postura no palco é robusta e malemolente ao mesmo tempo, consegue atingir o público mais desatento, despertando sentimentos de vários graus & calibres.

O texto de Renato Santos é perfeito. A sacada de que Jorge Amado era um materialista espiritual resume o perfil do escritor de maneira absoluta e definitiva, uma metáfora aforística que ninguém até hoje tinha conseguido. Sim, Jorge era de esquerda, mas uma esquerda temperada com um cativante axé.

Na Casa do Rio Vermelho é uma espécie de cafuné dramatúrgico, uma homenagem ao homem e ao artista mais humanista que as letras nacionais tiveram e, ao que parece, não terão nunca mais.

Em 1958, publicou o romance Gabriela, Cravo e Canela, que lhe deu a oportunidade de adentrar outras searas ficcionais, com mais atenção à sensualidade do que à política, mas que também lhe trouxe críticas das patrulhas ideológicas: disseram que ele tinha traído Stálin. Pois foi justamente o contrário: Stálin é que traiu a revolução, as obras de Marx e os ideais de Lênin ao instalar um regime de truculência sanguinária no país. Ser de esquerda é uma coisa. Ser burro é outra.

O texto não se aprofunda nesse tema (mesmo porque não era essa a intenção), mas é possível supor que essa derrapada não tenha passado despercebida a Jorge Amado. Jean Paul Sartre, por exemplo, não deixou de ser de esquerda ao sair do Partido Comunista francês em 1956, quando a União Soviética invadiu a Hungria.

Portanto, Na Casa do Rio Vermelho tem várias entradas e múltiplas facetas. Traz o homem, traz o amante, o literato, o sedutor, o militante, o ideólogo, o filho de Oxóssi, o humanista e o político que instalou definitivamente na Constituição brasileira a liberdade das crenças religiosas, particularmente as de raízes africanas.

Um espetáculo completo. Que mais se pode querer?

Na Casa do Rio Vermelho está em temporada na Sala Baden Powell. Mais informações, endereço, horários, preços, ingressos, ficha técnica veja em

https://teatrohoje.com.br/2022/09/07/na-casa-do-rio-vermelho-o-amor-de-zelia-gattai-e-jorge-amado/

Furio Lonza é um escritor, dramaturgo e jornalista ítalo-brasileiro.