Resumo: O artigo tem como objetivo contribuir para uma reflexão sobre o teatro proposto por Antonin Artaud e sua relação com a mitologia e a peste. Se, por um lado, a mitologia pode ser entendida como uma narrativa que explica como o mundo e a humanidade foram construídos para a forma que então conhecemos, convém analisar que em muitos de seus escritos Artaud se manifesta como um verdadeiro iconoclasta, que em sua origem grega eikon (ícone ou imagem) e klastein (quebrar) significa “quebrador de imagem”. Quanto à peste Artaud acredita na sua capacidade de instalar a desordem e provocar conflitos para, assim, permitir a revelação de verdades socialmente insuportáveis, como propunha em seu “teatro da crueldade”.

O TEATRO DE ARTAUD – ENTRE A MITOLOGIA E A PESTE

Wilson Coêlho

Se pensarmos a mitologia como uma narrativa que explica como o mundo e a humanidade foram construídos para a forma que então conhecemos, podemos também concordar com a ideia de que, na tentativa de entender o significado de sua existência, o ser humano sentiu a necessidade de projetar-se para fora de si mesmo. Assim, a origem do mito pode estar no desejo e na necessidade do ser humano de enfrentar o mundo, bem como, para fugir do medo e insegurança frente às forças da natureza que até hoje são assustadoras. De certa forma, a criação dos mitos também pode ser vista como a necessidade de inventar e depositar nos mesmos uma espécie de compensação para a fragilidade dos humanos, ao mesmo tempo que lhe dão a possibilidade de se acreditarem entendendo ao mundo e a si mesmos, como se fora a possibilidade de se acomodarem e se tranquilizarem perante os mistérios da vida. Nesse sentido, a mitologia se sustenta basicamente em dois pilares: a cosmogonia e a teogonia. E, entendendo a cosmogonia como uma tentativa de organização do caos a partir de alguns modelos relacionados à existência com origem no cosmos ou no universo. Trata-se de uma especulação sobre a formação do mundo. A teogonia, por sua vez, se dá na criação de divindades para a representação de fenômenos ou aspectos da natureza, de certa forma, humanizada, para expressar as ideias sobre a constituição de regentes para o universo. Havemos de também convir que tudo isso passa pela cultura, ou seja, que o universo não se trata de um absoluto, considerando que cada povo se organizou a partir da criação de seus próprios universos ou mundos. Assim, existem tantos universos ou mundos quanto existem culturas. Obviamente, muitas delas vem sendo assassinadas a mediante o projeto colonialista e hegemônico do mundo ocidental capitalista.

Depois, surge a filosofia como uma necessidade de superação dos mitos e rompimento com a teodiceia. Nessa tentativa de abandonar e superar a crença mítica, a filosofia busca a razão e a lógica como pressupostos básicos para o pensar. Muito embora não devamos nos esquecer que muitas das “civilizações” ou culturas em nosso planeta propõem alguns pensamentos filosóficos ainda ligados à tradição religiosa de seus povos.

Mas como situar Antonin Artaud nesse contexto? Primeiramente, acredito que o passo fundamental é desmitificar o próprio Artaud e trazê-lo para o plano humano, para que sua obra seja entendida nessa condição e não como mito que é o espaço do inalcançável. Não que sua obra seja de fácil apreensão, mas que é resultado de uma vivência e de experiências realizadas dentro de um contexto histórico e que se produziu a partir de uma busca e posicionamento contra a cultura e o pensamento de uma sociedade aprisionada e engessada em conceitos em que predomina um modelo escravagista e tirano em prol de um establishment que, para além do humano, têm as preocupações voltadas para uma ordem ideológica e  política que constitui uma elite tanto econômica quanto intelectual através do controle de um Estado.

Nesse sentido de desmitificar Artaud, podemos creditar à Florence de Méredieu um certo pioneirismo desta tarefa, considerando a grande e imprescindível obra C’était Antonin Artaud (publicada no Brasil pela Perspectiva sob o título Eis Antonin Artaud). Com essa edição, podemos dizer que a França resgata uma dívida com o escritor, dramaturgo, poeta, missivista, roteirista, encenador, ator de teatro e cinema, figurinista, cenógrafo, desenhista, pensador e criador do “Teatro da Crueldade”.

E, voltando a Artaud, a partir dele mesmo, podemos citar a sua conhecida Carta aos Reitores das Universidades Europeias, onde começa dizendo:

“Na estreita cisterna que os Senhores chamam de “Pensamento”, os raios espirituais apodrecem como a palha.

Chega de jogos de linguagem, de artifícios da sintaxe, de prestidigitações com fórmulas, agora é preciso encontrar a grande Lei do coração, a Lei que não seja uma lei, uma prisão, mas um guia para o Espírito perdido no seu próprio labirinto. Além daquilo que a ciência jamais conseguirá alcançar, lá onde os feixes da razão se partem contra as nuvens, existe esse labirinto, núcleo central para o qual convergem todas as forças do ser, as nervuras últimas do Espírito. Nesse dédalo de muralhas móveis e sempre removidas, fora de todas as formas conhecidas do pensamento, nosso Espírito se agita, espreitando seus movimentos mais secretos e espontâneos, aqueles com um caráter de revelação, essa ária vinda de longe, caída do céu”.

Numa outra de suas cartas, consideradas com uma de suas marcas, Artaud escreve Aos Diretores de Asilos de Loucos, e começa afirmando que:

“As leis e os costumes, concedem-lhes o direito de medir o espírito. Esta jurisdição soberana e terrível, vocês a exercem segundo vossos próprios padrões de entendimento. Não nos façam rir. A credulidade dos povos civilizados, dos especialistas, dos governantes, enfeita a psiquiatria de inexplicáveis luzes sobrenaturais. A profissão que vocês exercem está julgada de antemão. Não pensamos em discutir aqui o valor dessa ciência, nem a duvidosa existência das doenças mentais. Porém para cada cem pretendidas patogenias, onde se desencadeia a confusão da matéria e do espírito, para cada cem classificações, onde as mais vagas são também as únicas utilizáveis, quantas tentativas nobres se contam para conseguir melhor compreensão do mundo irreal onde vivem aqueles que vocês encarceraram? Quantos de vocês, por exemplo, consideram que o sonho do demente precoce ou as imagens que o perseguem são algo mais que uma salada de palavras? Não nos surpreende ver até que ponto vocês estão empenhados numa tarefa para a qual só existem alguns poucos predestinados. Porém nos rebelamos contra o direito concedido a certos homens – capazes ou não – de dar por terminadas suas investigações no campo do espírito com um veredito de encarceramento perpétuo.

E termina dizendo:

“Esperamos que amanhã de manhã, na hora da visita médica, recordem isto, quando tratarem de conversar sem dicionário com esses homens sobre os quais – reconheçam – os senhores só têm a superioridade da força”.

Ainda em relação ao seu desafio sobre a ideia de sanidade e loucura, Artaud faz o seu desafio:

“Senhores! E o que é um autêntico louco?

É um homem que preferiu enlouquecer

no sentido em que a sociedade entende a palavra

em vez de trair uma determinada idéia

superior de honra humana.

Assim, a sociedade mandou estrangular

nos seus manicômios

todos aqueles dos quais queria

se desembaraçar ou se defender

porque eles se recusavam a ser cúmplices

em certos atos de suprema sujeira.

Pois o louco é também o homem

que a sociedade não quis ouvir

e que é impedido de enunciar

certas verdades insuportáveis”.

Na obra Para acabar com o julgamento de deus (que, inclusive, faz questão de escrever deus com letra minúscula), Artaud se insere contra a mitologia cristã via colonização europeia. Num dos trechos dessa obra radiofônica ele diz que:

“E de onde vem essa objeção à imundície? Do fato de que o mundo não é ainda constituído, ou de que o homem não tem mais que uma pequena idéia do mundo e que ele quer eternamente guardar? Isso vem do que um homem, um belo dia, tem concluído a ideia de mundo.

Duas rotas se oferecem a ele

essa do infinito exterior

essa do ínfimo interior.

E ele tem preferido o ínfimo interior. Lá onde ele não tem que comprimir…

o rato

a língua

o ânus

ou a glande.

E deus,

ele mesmo

apressou o movimento.

Deus é um ser?

Se ele é, é merda.

Se ele não é

ele não é.

Ora, ele não é, mas como o vazio que avança com todas as suas formas”.

Uma das questões mais interessantes que podemos notar nessa obra Para acabar com o julgamento de deus, é sua preocupação com uma cultura que, de alguma forma, ele acreditava estar livre do pensamento ocidental, em especial, o europeu. Trata-se do seu encontro com os Tarahumaras no México, quando os visitou em 1936. Obviamente, ele se decepcionou em algum sentido, considerando que os mesmos já estavam afetados pelos invasores europeus. E, baseado nisso, regata o Ritual do Tutuguri ou o Rito do Sol Negro, onde coloca em questão o encontro das culturas. E nessa obra ele cria a sentença do Corpo Sem Órgãos que muita gente tem se debruçado em explicar, infelizmente aos olhos da psicanálise ou da sociologia, perdendo assim a possibilidade de compreender o grito de seu espírito em busca de uma poética originária. Para Artaud, o Corpo Sem Órgãos significa submeter o homem a uma cirurgia. Mas não se trata de uma cirurgia medicinal e – sim – de uma operação ontológica, onde o homem deveria raspar toda a sua carne e recriar-se a partir do seu osso. Limpar-se de todos os desejos construídos pelos psicologismos e pelo mito da chamada civilização. Uma abolição dos desejos em prol da vontade, daquilo que está em potência nesses seres originários. De fato, a verdadeira obsessão de Artaud é a pureza. E, para alcançar essa pureza ele necessita destruir a imundície, mas para destruí-la ele precisa fazer com que ela apareça ao dia em toda a sua imensa sujeira, tirá-la do estado enrustido ou recalcado como instrumento de defesa e trazê-la à tona para despedaçá-la. Por isso, muitas vezes, o exercício da obscenidade, da porcaria, espalhando a fecalidade em abundância. A vontade de Artaud era fazer voar em explosão a antiga ordem criada por “deus”, para reedificar um corpo novo, como assim ele disse em alto e bom som: – “eu reconstruirei o homem que sou” – e enfim puro.

Mas ele também acredita que essa reconstrução do corpo passa por uma reinvenção da linguagem. As palavras estão gastas e organizadas em silogismos de uma lógica formal. E nesse sentido ele acredita que o sentido de palavra se dá na não-palavra, ou seja, para que a palavra exista, faz-se necessário que a mesma se despoje de sê-la enquanto tal. Em certo sentido, dá-se como um existencialismo, considerando que, ao se fazer palavra, a palavra não se sustenta de uma função ou um significado a priori. A palavra é uma pá que lavra, é uma pá diante do terreno baldio e desconhecido da existência, onde se cria sulcos para uma tentativa de conhecimento e apreensão disso que
não sabemos o que é, desse vir a ser do espírito que se manifesta, mesmo através de recursos da glossolalia, como, por exemplo, ainda em Pour en finir avec le jugement de dieu (Para acabar com o julgamento de deus):

O reche modo
to edire
di za
tan dari
do padera coco.

 

 

Para Artaud, essas glossolalias, ou seja, essas palavras-gritos são os gritos-sopros que certamente surpreenderão, não como mero espanto, mas como possibilidade de se perceber a potência dos ritmos e a fabulosa riqueza da invenção silábica, da liberdade do espírito para criar e colocar-se no mundo.

Mas para se ter essas experiências, principalmente, no que se diz respeito ao teatro, Artaud acreditava que seria preciso Acabar com as obras primas, um dos capítulos de O Teatro e seu Duplo, pois – para ele – de alguma maneira nós somos culpados por acreditarmos que o que está escrito ou pintado ou formulado já fosse uma questão esgotada e que não fosse necessário romper com elas e começar de novo. Nesse capítulo, Acabar com as obras primas, ele diz que:

“É preciso acabar com a ideia das obras-primas reservadas a uma assim chamada elite e que a massa não entende; e admitir que não existe, no espírito, uma zona reservada, como para as ligações sexuais clandestinas.

As obras-primas do passado são boas para o passado, não para nós. Temos o direito de dizer o que foi dito e mesmo o que não foi dito de um modo que seja nosso, imediato, direto, que responda aos modos de sentir atuais e que todo o mundo compreenda.”

Artaud acredita que se o povo se desacostumou e não lhe interessa ir ao teatro e considerá-lo como uma arte inferior e usado meramente como uma saída para nossos maus instintos, é porque fomos habituados desde a Renascença a pensar no teatro como puramente descritivo, como uma mentira e uma ilusão que não faz outra coisa senão tentar narrar a psicologia do nosso tempo. E, da psicologia, ele acredita que ela cumpre o vergonhoso papel de reduzir o desconhecido ao conhecido. Da mesma forma como o teatro vem cumprindo essa tarefa de fazer viver em cena seres plausíveis, com o espetáculo de um lado e a plateia do outro, sem o ritual onde todos estão incluídos. E novamente ele se manifesta iconoclasta, primeiro, com Sófocles:

“É idiotice censurar a massa por não ter o senso do sublime, quando se confunde o sublime com uma de suas manifestações formais que são, aliás, e sempre, manifestações mortas. E se, por exemplo, a massa de hoje já não compreende Édipo rei, ouso dizer que a culpa é de Édipo rei e não da massa.

Em Édipo rei há o tema do Incesto e a ideia de que a natureza zomba da moral; e que em algum lugar há forças errantes com as quais seria bom tomar cuidado; que se dê a essas forças o nome de destino ou outro qualquer.

Além disso, há a presença de uma epidemia de peste que é uma encarnação física dessas forças. Mas tudo isso sob disfarces e numa linguagem que perderam qualquer contato com o ritmo epiléptico e grosseiro deste tempo. Sófocles talvez fale alto, mas com modos que já não são desta época. Ele fala fino demais para esta época, e parece que ele fala de lado”.

E, depois, com o famoso bardo inglês:

“O próprio Shakespeare é responsável por esta aberração e degradação, por essa ideia desinteressada do teatro que quer que uma representação teatral deixe o público intacto, sem que uma imagem lançada provoque qualquer abalo no organismo, imprimindo nele uma marca que não mais se apagará.

Se em Shakespeare o homem às vezes se preocupa com aquilo que o ultrapassa, trata-se sempre, definitivamente, das consequências dessa preocupação no homem, isto é, a psicologia.

(…)

Se Shakespeare e seus imitadores nos insinuaram através dos tempos uma ideia da arte pela arte, com a arte de um lado e a vida do outro, podíamos ficar tranquilos com a ideia ineficaz e preguiçosa enquanto a vida lá fora se mantinha. Mas agora vemos muito bem os sinais indicadores de que o que nos mantinha vivos já não se mantém, de que estamos todos loucos, desesperados e doentes. E eu nos convido a reagir”.

No que diz respeito à filosofia, também parece importante localizar Artaud neste suposto “amor à sabedoria”. De imediato, podemos afirmar que – apesar de demonstrar ter lido obras de Platão, Aristóteles, Sören Kierkegaard e alguns outros – suas grandes influências ou talvez coincidência, considerando sua postura de rebeldia contra o instituído – dois filósofos que marcadamente estão presente em sua obra são Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietsche.

De Schopenhauer podemos nos ater em As dores do mundo, quando o filósofo nos apresenta uma série de reflexões sobre a existência, propondo uma nova forma de se pensar a dor e a felicidade, embora essa última não seja um tema muito comum ao discurso de Artaud. Mas coincidindo com Artaud, os dois defendem a ideia de que ao contrário do bem, o mal é que deve ser considerado positivo, uma vez que somente ele se faz, de fato, sentir. A outra obra de Schopenhauer que também nos aproxima de uma análise sobre Artaud, está em O mundo como vontade e representação, quando o filósofo afirma a superioridade da vontade em detrimento da razão, inclusive, pela ideia de que toda a vida é vontade e que razão serve somente para justificá-la ou reprimi-la, considerando que toda essa substância primordial chamada Vontade se estende a todos os demais seres, concebendo-a, assim, como essência não só do homem, mas do mundo.

No caso de Nietsche, independente de outras obras que Artaud tenha lido desse filósofo, podemos nos amparar, levando em conta o tema do teatro, em O Nascimento da Tragédia. Mas apesar de supostamente a crueldade de Artaud parecer uma derivação da crueldade dionisíaca de Nietsche, em muito eles se diferem. Se, para Nietsche, em O Nascimento da Tragédia, os gregos conheceram e sentiram a angústia e os horrores da existência a partir de uma perturbação do homem perante os poderes titânicos da natureza, representados por Moira, Prometeu, Édipo e tantos outros fazendo aparecer o espírito apolíneo como uma possibilidade de reagir em prol da vida, projetando as imagens luminosas sobre essa “parede obscura” que representa “uma visão profunda do horrível da natureza”, Artaud as renega para reencontrar o trágico na sua pureza, ou seja, entender a violência como algo que é natural. De certa forma, Nietsche diante de Artaud parece apenas ser dialético. Mas o que é a dialética senão a busca de uma síntese da contradição de dois lados de uma mesma moeda? Se a dialética é a arte do diálogo, esse somente se realiza dentro de um mesmo plano, ou seja, só consegue entender a diferença entre os iguais.

Em termos de filosofia, assim como dizia Karl Marx, que “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo”, poderíamos dizer que Artaud propõe colocar em xeque a própria ideia de interpretação do mundo, considerando que, para ele, o verdadeiro pensamento é aquele que não se reduz à reiteração das categorias pré-existentes, tendo em vista que acredita que o pensamento criador nasce nos vácuos e nos novos espaços e a própria inquietude humana inaugura na tentativa de compreender a existência. Podemos dizer que Artaud se dissocia dessa herança da filosofia de um pensamento que pensa somente em torno de si mesmo, na medida em que ele propõe a uma espécie de não-pensar. Mas esse não-pensar é não pensar sobre o pensado e, sim, pensar o não pensado, ou seja, dar voz à própria existência ao espírito do ser que não se sente contemplado diante da racionalidade de um mundo conceitual e impostor.

Finalmente, levando em conta o momento atual e a pandemia, soa plausível pensar em O Teatro e a Peste, um capítulo do livro O Teatro e seu Duplo, de Antonin Artaud. Neste texto, Artaud se refere à peste de 1947, em Florença, e a de 1720, em Marselha. Apesar de acontecimentos de uma certa forma datados, para Artaud, os acontecimentos em si mesmos não são o mais importante. Conforme sua proposta na formação do Teatro Alfred Jarry, ele diz:

“Mas diriam, um teatro tão afastado da vida e dos fatos

das preocupações atuais

das preocupações e dos acontecimentos

no que elas encerram de mais protundo

e que é o atributo de alguns.

Porei em cena acontecimentos e não homens.

E será o assunto escolhido devido à sua atualidade

e por todas as alusões que ele comporta.

O que interessa nos acontecimentos atuais

não são os acontecimentos em si mesmos,

mas o estado de ebulição moral

no qual eles mergulham o espírito dos homens.

O grau de tensão extrema

é o estado de caos consciente

no qual não cessam de nos envolver.

Pois bem, é dessa atualidade patética e mítica

que o teatro se desviou

e é com justa razão que o público se desinteressa

de um teatro que ignora a realidade a esse ponto.”

Por isso, faz uma ácida crítica ao teatro convencional, do qual não comunga e até combate e, com Robert Aron e Roger Vitrac, depois de ter rompido com o movimento surrealista de André Breton, pronuncia:

“O teatro convencional serve aos idiotas

loucos

invertidos

indivíduos com instrução primária

e antipoetas positivistas ocidentais,

pois este teatro fede e, inacreditalvemente,

ao homem provisório

material

eu diria até que fede

a carne putrefata e homem.

O teatro tradicional está num adiantado estado

de decadência.

Imita uma sinistra realidade e ao realizar peças

estórias de interesse humano

cenas íntimas das vidas de alguns títeres converte

o público em fantoches e bisbilhoteiros.”

Nesse sentido, para Artaud, a peste parece um mal necessário, considerando que para ele, o teatro, assim como a peste, é uma condição decisiva, ou seja, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura. Ele acredita que sob a ação do flagelo os princípios que norteiam a sociedade se desfazem e a ordem até então acreditada como o melhor dos mundos possíveis se desmoronam. Como ele afirma em O teatro e a Peste:

“Mesmo destruído, mesmo aniquilado e pulverizado organicamente, e queimado em suas entranhas, ele sabe que não se morre nos sonhos, que neles a vontade atua até o absurdo, até a negação do possível, até uma espécie de transmutação da mentira com a qual se refaz a verdade”.

De algum modo, nesse texto, Artaud referenda o teatro para além de uma mera representação platônica do mundo, dividido entre o mundo das ideias e o mundo dos sentidos, assim como refuta o maniqueísmo que separa o mundo do bem do mundo do mal. Artaud descontrói essas fronteiras, assim como, também desafaz os discursos apolíneos da arte como a beleza que não passa de um acordo estético. Para ele, o teatro não só é uma possibilidade de destruição desse mundo conformado com as tragédias como se fora meramente um desígnio dos deuses, mas também propõe a construção de uma nova forma de nos organizarmos a partir do caos que é muito mais verdadeiro e honesto com a vida do que os tempos de bonança. Daí, tira proveito da peste:

“A peste toma imagens adormecidas, uma desordem latente e as leva de repente aos gestos mais extremos; o teatro também toma gestos e os esgota: assim como a peste, o teatro refaz o elo entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o que existe na natureza materializada. O teatro reencontra a noção das figuras e dos símbolos-tipos, que agem como se fossem pausas, sinais de suspensão, paradas cardíacas, acessos de humor, acessos inflamatórios de imagens em nossas cabeças bruscamente despertadas; o teatro nos restitui todos os conflitos em nós adormecidos com todas as suas forças, e ele dá a essas forças nomes que saudamos como se fossem símbolos: e diante de nós trava-se então uma batalha de símbolos, lançados uns contra os outros num pisoteamento impossível; pois só pode haver teatro a partir do momento em que realmente começa o impossível e em que a poesia que acontece em cena alimenta e aquece símbolos realizados.

Esses símbolos que são signos de forças maduras, mas até então subjugadas e sem uso na realidade, explodem sob o aspecto de imagens incríveis que dão direito de cidadania e de existência a atos hostis por natureza à vida das sociedades.

Uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido, leva a uma espécie de revolta virtual e que aliás só poderá assumir todo o seu valor se permanecer virtual, impõe às coletividades reunidas uma atitude heroica e difícil”.

Concluindo, considerando a proposta de falar sobre O Teatro de Artaud – Entre a Mitologia e a Peste, cabe ressaltar Artaud como um iconoclasta e adepto de um sentido de vida que ainda está para ser conhecido, inclusive, para livrá-lo da mitologia entendida como a construção de um mundo cujos mitos exercem o papel de superação das fraquezas humanas, creio que para situá-lo no tempo e no espaço, está mais para a utopia como o “ου” (não) e “τοπος” (lugar), na etimologia grega, o não-lugar, ou seja, um lugar que não existe na realidade. Mas para Artaud a utopia é o não-lugar que precisa ser construído pelo teatro. Não é por acaso que ele afirma num de seus textos:

“É preciso acreditar num sentido renovado

pelo teatro

onde o homem impavidamente torna-se senhor daquilo

que ainda não existe

e o faz nascer

e tudo que ainda não nasceu vir a nascer

contanto que não nos contentamos com ser

simples órgãos de registro.

 

Wilson Coêlho é poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo e escritor com 23 livros publicados, licenciado e bacharel em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo, Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense e Auditor Real do Collège de Pataphysique de Paris, do qual recebeu, em 2013 o diploma de “Commandeur Exquis”.  Assina a direção de 26 espetáculos montados com o Grupo Tarahumaras de Teatro, com participação em festivais e seminários de teatro no país e no exterior, como Espanha, Chile, Argentina, França e Cuba, ministrando palestras e oficinas. Ao longo deste trabalho de pesquisa, o Grupo tornou-se objeto de estudo da francesa Catherine Faudry em sua tese, na Université Stendhal, Grenoble-France, intitulada “Théâtre au Brésil: Explotation des Tendances Actueles dans la Recherche d’une Communication avec le Public”. Também tem participado como jurado em concursos literários e festivais de música. Além de lançamentos e palestras, ministrou oficinas de dramaturgia em 18 estados brasileiros. Participa de diversos movimentos e eventos de teatro na América Latina, em especial, Cuba, Argentina e Chile.