Especial/Dramaturgias

Willy Loman reside no nosso medo mais profundo

Avelino Alves

 

Num dia qualquer, um simples e anônimo caixeiro-viajante chega em casa, em Nova York (EUA). Cansado, os ombros curvados, carrega duas malas, dessas de vendedores que passam de cidade em cidade como representantes comerciais.

A mulher o recebe com euforia e carinho. Ele está esgotado e inseguro. Diz a ela que não consegue mais viajar pelas cidades da Nova Inglaterra, exercendo uma atividade que já dura mais de três décadas e o sugou até o talo.

Motivo: não conhece mais ninguém na estrada, seu carro às vezes sai da pista tamanha é a sua desatenção. E as praças, que antes o recebiam com respeito e consideração, deixaram os rapapés de lado. Isso quando se dignam a atendê-lo.

Consequentemente, sua comissão está à beira de minguar. Ele teme perder emprego e ver os boletos da família se acumularem.

A mulher contemporiza. Talvez o marido precise de férias, uns dias de descanso pelo menos, a fim de repor as energias. Ele sabe que não. E sintetiza sua dor na frase inicial da peça: “(…) Você imagina, eu olhando a paisagem, na estrada toda a semana a minha vida inteira. E de repente estava saindo da estrada! Imagina você, eu esqueci completamente que estava dirigindo. Então dei partida outra vez… e cinco minutos depois estava sonhando de novo e quase… Eu penso cada coisa, cada coisa estranha.”

É desta forma poética e amarga que começa a saga de Willy Loman, personagem principal da peça A morte do caixeiro-viajante. Casado com a compreensiva Linda e pai de dois filhos sonhadores e fracassados como ele – Biff e Happy – durante dois atos e um réquiem, o dramaturgo norte-americano Arthur Asher Miller (1915-2005) dissecará o medo embutido na classe média norte-americana, qual seja o de não conseguir honrar a hipoteca da casa própria, acreditar como uma criança no sonho americano e ver seus devaneios de uma sociedade justa irem por terra por conta da indiferença das grandes corporações que costumam dar uma grande banana quando a pessoa começa a envelhecer.

Willy sabe que seus dias de glória vã estão contados. Ancorado no próprio sonho de encaminhar os filhos para o futuro, dar conforto doméstico à mulher e ser amado por outros caixeiros-viajantes, granjeando respeito e dinheiro, o personagem percorre a peça expondo as vísceras da desilusão de um homem comum, um simples vendedor tragado pelo fracasso, que queria ser parecido com os caixeiros-viajantes que fizeram história antes dele. Contudo, tem que dar mão à palmatória. Ele morrerá na praia afogado em suas próprias fantasias.

Motivos para a derrocada se acumulam. Não tem respeito dos dois rebentos, que o acusam de ter mania de grandeza, é tratado com piedade pela esposa, as praças de venda por onde passa não o reconhecem mais e vive seu cotidiano silencioso e amargo de um sucesso que foi esperado, mas simplesmente insistiu em não acontecer.

Willy foi moído pela maquinaria perversa das empresas que investem em jovens-laranja, chupam seu sumo até o limite e depois os abandonam ressecados à margem da vida quando começam a ficar improdutivos. A peça é quase um longo poema sobre a frustração da vida e o balanço nem sempre generoso que fazemos de nossa trajetória quando estamos em vias de nos aposentar.

O caixeiro-viajante sempre temeu perder a casa, não honrar seus compromissos estava entre seus piores pesadelos e sua existência foi marcada pelo medo de se olhar no espelho e perceber, enfim, que foi enganado e não era tão autoconfiante como sempre apregoava. Quem não conhece uma história assim? Willy Loman reside em todos nós.

Identificou-se? Provavelmente. Essa peça poderia ter sido escrita por um brasileiro já que dentre os nossos sonhos – e que em geral se tornam pesadelos – ter a casa própria nos envelhece e muitas vezes nos leva antes do tempo à cidade dos pés juntos.

É, amigos, muitas vezes passamos uma vida inteira pagando as paredes de uma casa que, no sentido figurado, acaba sendo o túmulo dos nossos desejos e o pódio para nossas derrotas. Não falamos isso, tampouco defendemos essa tese.

A razão é simples, quase prosaica. O show não pode parar e, de certa forma, mesmo anônimos, fazemos parte dele. O medo que ronda os norte-americanos e é sussurrado entre os lençóis dos casais atende por ‘hipoteca’. Aqui, o pesadelo muda de nome, entope as artérias e treslouca o cotidiano. Contudo, a navalhada na carne, e que também atinge o osso, é a mesma. Chama-se ‘financiamento da casa própria’.

Em 1956, o dramaturgo e novelista brasileiro Jorge Andrade (1922-1984) desembarcou nos EUA e se encontrou com seu colega de ofício. Recebeu do dramaturgo norte-americano um conselho curto e grosso: “Volte para seu país e procure descobrir por que os homens são o que são e não o que gostariam de ser, e escreva sobre a diferença”.

Miller sabia muito bem o que estava dizendo. Tinha escrito A morte do caixeiro-viajante em 1949, em um mês e meio, com apenas 33 anos, e papado os principais prêmios oferecidos ao gênero: o Pulitzer, o dos Críticos de Teatro de Nova York e o Tony, uma espécie de Oscar do meio teatral. A estreia na Broadway, sob a batuta do lendário cineasta Elia Kazan, eletrizou crítica e público.

Confesso que conselho desse quilate acerca da complexidade do ser humano e o que deve ser explorado no fazer teatral só vi recentemente – e, claro, em outro contexto – em uma série mexicana na Netflix, Narcos, onde um velho traficante ensina a um jovem aspirante ao mundo do crime a receita infalível para subjugar: quando quiser dominar um homem, não considere o que ele quer, mas sim o que necessita.

Digo, sem medo, que esses dois conselhos aí em cima são certamente a chave para entender a alma do personagem principal de Miller, o atormentado Willy, que entregou 34 anos de sua vida a uma empresa, acreditou no american way of life e vê sua vida desmoronar quando perde o emprego, assiste pasmado o fracasso sentimental e profissional dos filhos e agarra-se à esposa sonhadora para não desmoronar de vez.

O medo humano rende uma matéria-prima e tanto quando os dramaturgos suspendem suas pseudo-experiências estéticas e optam por colocar o homem comum no palco. É por essa razão que o teatro norte-americano e, de quebra, o brasileiro, dos anos 1950 continua insuperável.

De lá para cá, na minha modesta opinião, tivemos coisas muito boas como experimentação teatral. Todavia, lidar com o ofício desta forma serviu mal e mal para azeitar o ego de diretores e atores. O que fica na arte, sempre, é uma história contada com começo, meio e fim. Isso porque essa é a história de todo homem sobre a face da Terra. Pense aí com seus botões por que se foge do teatro feito no Brasil como o diabo da cruz e por que formação de público, nessa área, é um sonho quase impossível.

A saga de Miller

Isadore, o pai do dramaturgo, confeccionava casacos e era um empresário de sucesso. A mãe, Augusta, lecionava. A vida da família, em Nova York, era confortável.

Enfrentaram, porém, o estouro da Bolsa, em 1929, o que fez a fortuna da família virar pó. Miller ficou sem dinheiro para pagar a universidade e, por isso, trabalhou em diversos empregos – motorista de caminhão, garçom, marinheiro e empacotador em uma empresa de autopeças – até conseguir entrar na Universidade de Michigan. Nela, venceu alguns concursos de dramaturgia.

E foi um desses que, ao premiar uma peça sua, levou o jovem dramaturgo à Broadway, em 1944. A peça se chamava O homem que teve toda a sorte. A crítica ignorou, o público fugiu e a peça naufragou.

Arthur Miller, no entanto, não desistiu. Três anos depois embolsaria seu primeiro Tony de melhor autor com Todos os meus filhos.

A consagração mesmo viria em 1949. Crítica e público se renderiam em uníssono à história trágica do caixeiro-viajante Willy Loman, seus devaneios (a peça é um emaranhado genial de flashbacks muito bem amarrados), sua solidão e, claro, a decisão pela morte planejada com o único objetivo de permitir à família embolsar a grana do seguro e, com parte do dinheiro, quitar a hipoteca.

A vida pessoal do dramaturgo também foi um carrossel de emoções. Casou-se três vezes. Primeiro com Mary Slattery, depois com nada menos que Marilyn Monroe, a diva trágica de Hollywood. E, por fim, com a fotógrafa Inge Morath. A primeira e última mulher deram a Miller, cada uma, dois filhos.

Dizem as más-línguas que a peça Depois da Queda era uma alusão às carências afetivas da belíssima Marilyn. Ele foi acusado de se aproveitar da tragédia da ex-mulher e trabalhar sua autopromoção, faturando em cima de um cadáver. Miller passou a vida negando, mas a crítica foi impiedosa e cravou a narrativa como verdadeira. Não sem deixar de mencionar, justiça seja feita, que os cinco anos passados ao lado de Marilyn foram improfícuos e atormentados.

Verdade ou não, resumindo, a peça conta a história de um advogado famoso chamado Quentin que se relaciona com uma jovem cantora de nome Maggie, carente à medula e propensa à destruição.

Todo o trabalho de Miller foi uma feroz crítica à sociedade, falta de liberdade e denúncia de perseguição aos comunistas.

Em 1956 foi dedurado por Kazan de ser simpático aos comunistas e participar de suas reuniões. Por isso, teve que se apresentar no tenebroso e irascível Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara (HUAC) presidido por Joseph McCarthy (1908-1957), senador pelo Estado de Wisconsin.

Miller teve que engolir um duro processo por se recusar a responder às perguntas sobre quem em Hollywood era ou não de esquerda e participava de reuniões clandestinas com os comunistas. Para se ter ideia do quanto Miller flertava com tendências esquerdistas, suas peças eram proibidas na finada União Soviética.

Por essa teimosia, vista pelos políticos como um desrespeito e uma afronta ao comitê, o dramaturgo foi sentenciado a 30 dias de xilindró. Cumpriu a condenação em meio aos holofotes e barulho da imprensa, certamente cheio de orgulho pela própria conduta. Depois, entrou com um processo e lutou até o fim para que sua inocência fosse provada. A papelada, claro, foi arquivada e ele saiu absolvido do imbróglio.

Três anos antes tinha escrito As bruxas de Salém, sobre a caça às bruxas nos EUA. O establishment havia captado a mensagem subliminar deste e de seus textos anteriores, onde dissecava as ilusões e o autoritarismo, os pilares da sociedade americana, e ficou de olho no dramaturgo.

Para quem não sabe, ou nunca ouviu falar, os julgamentos contra as bruxas de Salém ocorreram em Massachusetts (EUA). Todo o espetáculo dantesco durou um ano (1693-1694) e envolveu 200 acusados. Destes, 30 foram culpados e 19 conheceram a forca. Para bom entendedor, a escolha de um tema por um escritor já serve como meia palavra.

Quem na minha opinião melhor definiu a genialidade do dramaturgo norte-americano foi o crítico Sábato Magaldi (1927-2016) que, na valiosíssima coleção Teatro Vivo, da Abril Cultural, foi lapidar ao falar d’A morte do caixeiro-viajante: “Desde o destemor com que explora o noticiário jornalístico até o aproveitamento da crônica histórica, Arthur Miller revela suas raízes fincadas no realismo. Um realismo moderno e saudável, que não esquece ser o homem o instrumento do teatro, e um homem tanto mais completo quanto melhor testemunha a epopeia terrena.”

O dramaturgo morreu em 10 de fevereiro de 2005 de câncer e problemas cardíacos, com belos e bem vividos 89 anos, em sua fazenda em Roxbury (Connecticut/EUA).

Dentre as muitas frases lapidares que criou, a que mais me fascina é a que diz que o teatro não pode desaparecer porque é a única arte que permite à Humanidade enfrentar-se a si mesma. Willy Loman que o diga. Miller o colocou no palco para que, à nossa maneira, despertássemos das nossas ilusões pueris.

Avelino Alves é dramaturgo.

Dramaturgo