Um homem está sentado numa cadeira com os braços e pernas atados a ela. Ele tenta de libertar das cordas, faz força, puxa daqui, puxa de lá, mas não consegue se livrar. Lentamente, aproxima-se o vilão com uma arma em punho.

Vilão – Você achou que ia se safar dessa, né?

Homem – Podemos conversar, pelo menos?

V – Pra quê? Você pretende me contar a tua versão dos fatos?

H (suplicante) – Você pode me ouvir?

V (grita, puto) – Pára com essa merda! É humilhante. Mesmo um cara com a cabeça a prêmio, tem de ter dignidade.

H – Olha só: tem coisas que você não sabe.

V – Entendi. O senhor tem uma fé inabalável na tua lábia.

H – Inabalável, inabalável, não é o termo correto, mas a vida é cheia de surpresas.

V – Que bonito! Agora, você vai me contar uma historinha edificante da tua infância onde teu pai te deu lições de vida. Estou certo?

H – Historinha?

V (surpreso) – É, uma história caseira que emociona, dessas que trazem uma mensagem de superação.

H – Não me ocorre nada.

V (perde a paciência) – Tua mãe não fazia panquecas?

H – Panquecas?

V (desesperado) – É, panquecas ou um risoto maravilhoso de atum.

H – Minha mãe? Risoto? (Ri.) Minha mãe não fritava nem ovo.

V (enfático, bem bruto) – Mas é obrigatório! Sempre que alguém está num cativeiro, pinta um climão, rola uma trilha sonora de violinos no fundo e ele começa a falar de quando era criança, de quando o seu cachorrinho foi atropelado ou sua irmã quase se afogou no lago.

H – Odeio cachorros.

V (sugere) – Nem um poodle, um bassê, um vira-lata?

H (tímido) – Eu tinha uma tartaruga.

V – Que seja, uma tartaruga.

H – Mas minha tartaruga nunca se afogou no lago.

V (puto) – Putaquemepariu, você está dificultando as coisas.

H – Mas pra que isso?

V – Me dá a impressão que você nunca foi ao cinema. (Imita, jocoso) Pra que a historinha? Ora, pra humanizar o personagem, torná-lo mais razoável. Todo enredo que se preza tem que ter protagonista e antagonista. E os dois devem ter razão, senão o interesse do público vaza pro ralo.

H – Que público?

V – O pessoal que tá vendo o filme, porra!

H – Que interesse poderia ter essa plateia numa historinha minha?

V – Faz parte do enredo. Não discuta comigo.

Pausa.

V – Vou te dar um exemplo pra ficar mais claro. Você vai assistir a uma luta de boxe. O público ficaria satisfeito se a luta terminasse no primeiro round com o fortão nocauteando o pequenino?

H – Não. Sairia frustrado, ainda mais com os preços dos ingressos que estão cobrando.

V – Você entendeu.

H – Nós dois temos razão?

V – Não sei, mas se não houver equilíbrio na discussão, a plateia dispersa, levanta e sai do cinema.

H – Ou da luta de boxe.

V – Ou da luta de boxe.

H – Mas, no caso, quem tem que contar essa historinha é você.

V – Por quê?

H – Quem tem que se humanizar é quem vai disparar a arma e não eu.

V – Por quê?

H – Porra, eu sou a vítima e você, o assassino.

V (pensa) – De certa maneira, isso te dá uma vantagem, sabia?

H – Vantagem? Amarrado, humilhado e com uma arma apontada pra cabeça?

V – Você é burro ou o quê? A vítima recebe sempre maior simpatia do público.

H – Mesmo sabendo de antemão o que ela aprontou?

V – Mas não ficou claro, percebe? Geralmente, esses roteiros de filmes de suspense são tão complicados que ninguém sabe realmente o que aconteceu. Nem os atores. Ou você vai me dizer que entendeu tudinho do filme Chinatown?

É um pressuposto básico: se o cara vai assassinar um sujeito que todo mundo acha que merece morrer, cadê o suspense?

H – E o que eu faço com essa simpatia toda?

V – Pode utilizá-la a seu favor.

H – Como?

V – É simples. Presta bem atenção: nessa condição de imobilidade, o senhor pode se defender inclusive usando argumentos pouco confiáveis que ninguém vai prestar muita atenção. O público feminino, por exemplo, que é mais sensível, estará sempre do teu lado, nem vai ouvir o que você diz. Eu, pelo contrário, tenho que ser convincente, meu discurso tem de ser direto, duro, não posso usar palavras complicadas, pois todo mundo quer saber se minhas razões pra te matar são realmente válidas. Não posso vacilar.

H – Eu transformo a desvantagem em vantagem.

V – Em poucas palavras, é isso.

H – Não me venha com pegadinhas. De quem eu vou angariar simpatia? Estamos só nós dois aqui.

V – É maneira de dizer. Afinal, utilizar um pouco a imaginação não faz mal a ninguém.

H – Deixa ver se entendi: você quer que eu minta só pra ter um argumento que convença?

V – Eu não disse isso.

H – Disse o que, então?

V – Vou ser mais claro. Você assistiu Janela Indiscreta, do Hitchcock?

H – Assisti.

V – E você acha que o James Stewart é fotógrafo?

H – Não. Ele é ator.

V – Ele te convenceu como fotógrafo?

H – Convenceu.

V – Você achou que ele estava mentindo?

H – Não, ele estava atuando.

V – Pois é isso. O ator interpreta um papel, mas não está necessariamente enganando a plateia.

H – De qualquer forma, a gente não pode ficar só no blá-blá-blá, tem que ter ação.

V – Exato. Você está começando a compreender onde se meteu.

H – Mas isto é um filme?

V (sorri, malicioso) – Não. Isto é real. O senhor está vendo alguma câmera?

H – Foi o que desconfiei desde o começo.

V – Então, faça o que tem de fazer e não me encha o saco!

H – Vou tentar.

V (dá um tapinha no rosto de H) – Bom menino!

H – Essa conversa toda faz parte do plano?

V – São as preliminares. Um filme de suspense é como sexo: tem que lubrificar primeiro pra só depois entrar no clima.

H (apavorado) – Preliminares, lubrificar, entrar no clima? O que o senhor tem em mente?

V – Calma! É força de expressão. Não é o que você está pensando.

H – O senhor está me apavorando.

V – Engraçado! As palavras te deixam com mais medo do que meu revólver.

Pausa curta.

V – Agora, vou te contar porque você vai morrer.

H – Com qual finalidade?

V (pego de surpresa) – Porque sim. É um clássico.

H – Entendo, mas o que eu quero dizer é o seguinte: a troco de que você vai me contar tudo isso se vai me matar?

V – Não se faça de engraçadinho! Você precisa saber.

H – Mas eu já sei.

V – Não interessa!

H – E, em seguida, você me mata.

V – Pode apostar.

H – E o que eu vou fazer depois de morto com essas informações?

V (titubeia, está confuso) – Você nunca assistiu a filmes de suspense?

H – Já. Mas você há de convir comigo que essa é a parte mais inverossímil.

V – Por que inverossímil?

H – Porque é muito chata, dá a impressão de que o assassino estica o assunto para não fazer logo o serviço.

V – Não seja estúpido. Se ele matasse a vítima logo de cara, o filme acabaria em vinte minutos.

H – Mas isso sempre acontece nesse tipo de filme. Ninguém mais aguenta essas explicações. Não é suspense, é enrolação pura.

V – Exemplo.

H – Você viu Psicose?

V – Vi.

H – Então! Depois de assistir toda aquela puta trama, um médico fica explicando durante um tempão pra um bando de babacas que o Bates tinha um transtorno psicótico, que botava peruca, se vestia com as roupas da mãe e esfaqueava a mulher que ele queria comer. É um anticlímax do caralho!

V – Porra, meu camarada, você é crítico de cinema?

H (didático) – Vamos raciocinar. Todo mundo que assistiu ao filme já sabe as razões do assassino. Ou a vítima roubou a carga de drogas do caminhão do sujeito ou comeu a mulher dele ou sequestrou seus filhos e pediu resgate. Pra que repetir tudo isso?

V – Mas isso faz parte. É como se o diretor fizesse um resumo da história pra dar um sentido lógico na trama antes do final. E outra coisa: todo mundo sabe que o público é desatento, esquece as coisas, ou é burro e não entendeu porra nenhuma, ou chegou ao cinema depois do filme começar.

H – Não sei. Ainda me parece que é uma encheção de linguiça do caralho.

V (eufórico) – Mas vai ser a primeira vez que o assassino revela seus reais motivos pra matar o cara. Você não percebe? Uma coisa é saber o que a vítima fez, outra é saber o que aquilo tudo significou para o assassino.

H – Entendi. Ele tem motivos particulares, é humano como todo mundo.

V – Não te parece lógico?

H – OK. Respeito tua opinião, mas acho que esse lapso de tempo é falso. Poderia ser preenchido de outra maneira.

V – Como?

H (pensa.) – Vamos supor que a polícia tenha sido avisada com antecedência e localiza o cativeiro pra libertar o sujeito. Os meganhas cercam a casa no maior silêncio, ficam de butuca, e esperam o momento certo pra entrar no galpão e resgatar a vítima. Aí, faz sentido.

V (gargalha alto) – Ninguém sabe onde nós estamos. Despistei todo mundo. Não existe GPS no mundo que consiga te localizar.

H – Tá vendo o que eu digo? Se não é para ganhar tempo, por que você não faz o serviço logo?

V (tem uma ideia, faz cara de esperto) – Tortura.

H – Pois é. Idiotice. Pura perda de tempo. Eu não vou mesmo me lembrar da tortura e de todo esse discurso que você pretende fazer por uma razão muito simples: vou estar morto com dois balaços na cabeça. E morto, meu chapa, não tem memória.

Tonto com a argumentação, o vilão pega uma garrafa de uísque, despeja num copo e começa a beber.

H – Isso também é clássico. Quando o vilão começa a beber antes de matar o sujeito é porque ele está inseguro.

V (furioso) – Eu não estou inseguro.

H – Conta outra. Se ele está determinado a matar o cara, por que caralhos ele vai começar a beber? É uma contradição.

V – O vilão pode estar bebendo justamente para dar a impressão de que está com a situação sob controle. Não pode?

H – Poder, pode, mas será verdade ou blefe?

Pausa curta.

V – Isso que você falou é interessante. Como é um jogo, o blefe faz parte. O problema é: quem de nós dois tem cacife?

H – Outra contradição. Só quem não tem cacife é que blefa.

V – É verdade.

H – O que eu quero dizer é o seguinte: virou apenas uma queda de braço, não importa mais quem tem razão.

V – Veja: a argumentação tem que ser pau a pau. Se é queda de braço ou não, pouco importa. Precisa haver harmonia no diálogo. Senão, desequilibra tudo, percebe?

H – Percebo, mas nem sempre os roteiristas de filmes B são tão bons para balancear a discussão com tanta genialidade.

V – E quem disse que estamos num filme B?

H – Ora, uma vítima amarrada com cordas num cativeiro e um assassino com a arma em punho. Vai me dizer que é um filme do Bergman?

V – Não seja tão acadêmico! Você pega tudo ao pé da letra.

H – Está mais pra Tarantino.

V – Por quê? Você acha o Tarantino de segundo time?

H – Não, mas harmonia nos diálogos? Me poupa!

V – Eu gosto dele.

H – Eu também, mas a pegada é outra. Quando tem vinte assassinatos justificados, é um policial normal. Quando tem vinte assassinatos aleatórios, é filme do Tarantino.

Pausa curta.

H – Não vai perguntar se eu tenho um último pedido?

V – Qual seria?

H – Beber um gole de uísque.

V (pensa um pouco) – Acho justo.

H – Então desamarra pelo menos uma mão, que eu não consigo beber com essas cordas. Uísque é pra relaxar, não é? (O vilão desamarra uma mão do homem.) Está ótimo. (Bebe um gole bem devagar.)

Um tempo. Ambos refletem sobre a situação.

H – Você acredita no além?

V (confuso) – Como assim?

H – Fiquei pensando o seguinte: só uma pessoa que acredita na vida depois da morte faz uma coisa dessas, porque, se não acreditar, com qual objetivo ele vai contar suas razões de matar? Percebe o vacilo?

V (interessado na argumentação) – Continua.

H – Como eu ia dizendo: vamos supor que você acredite no além. Aí, seria coerente. Você fica falando, falando, me tortura psicologicamente, e eu vou lembrar de tudo isso depois de morto, esteja lá onde eu estiver. Entende?

V – Entendo.

H – Então?

V – Então, o quê?

H – Acredita na vida depois da morte?

V – Você diz de reencarnação de almas, eternidade, essas coisas?

H – É mais ou menos isso.

V – Olha só: nem acredito nem desacredito. Respeito todas as crenças. Nesse ponto, sou um cara bem flexível.

H – Eu até simpatizo com os espíritas, são gente boa. Acreditam mesmo naquilo que pregam. Meu problema com o Kardec é ele que achava que os espíritos fazem tudo através da gente: são eles que escrevem os livros, são eles que pintam os quadros, produzem poesia. Ou seja, quem faz a arte são os mortos e não os vivos.

V – Eles fazem filmes também?

H – Ouve essa: ninguém tem mais problemas psíquicos, têm um encosto. Novamente, quem determina nossa situação emocional são os espíritos provavelmente perturbados que moram no limbo. Mais outra: o Espiritismo acabou com a morte. Ninguém morre mais, desencarna, fica planando no espaço celeste e volta como um caramujo …

V – … ou uma tartaruga. (Gargalha alto grosseiramente.)

H – Que seja. Segundo esses caras, não há gente nova no mundo, há uma simples substituição de corpos, que são preenchidos pelas almas de sempre. Nós somos nossos próprios antepassados. É bobo. Tudo vira um dogma existencial bipolar.

V – Porra, meu camarada, tu é erudito pra caramba.

H – Você tem que me acompanhar nessa balada. De vez em quando tem que soltar uma sacada filosófica, senão desequilibra o diálogo.

V – Você acha que um assassino em filme de suspense tem de ser burro?

H – De maneira alguma. Veja o Hannibal Lecter, por exemplo: ele era culto, manhoso, gostava de música clássica, tinha grandes tiradas metafísicas e mandava uns versos de vez em quando. Era até sensual. Por muito pouco, ele não come a Jodie Foster. De repente, sem maiores avisos, arrancava a cabeça dos policiais com uma dentada.

V – Você tem razão, mas eu não tive muita escolaridade, sabe como é, família pobre, tudo amontoado num barraco. A gente até passou fome.

H – Isso, isso, continua. Esse é o espírito. (Pausa curta) Sem trocadilho.

V – Chega! Não tenho mais saco pra esse tipo de conversa.

Pausa curta.

H – Posso pedir mais uma coisa?

V – O que é?

H – Dá pra desamarrar a outra mão?

V – Pra quê?

H – Sou descendente de italianos, falo com as mãos. Se a gente vai levar um lero de igual pra igual, preciso me comunicar direito. (V hesita.) Foi você mesmo que disse que tem de haver harmonia no diálogo.

V (desamarra a outra mão) – Pronto. Está bom assim?

H – Está. Obrigado.

V (faz cara de esperto) – Mas tem um furo no seu raciocínio.

H – Qual furo?

V – Se eu acredito na vida depois da morte, também acredito em espíritos.

H – Correto.

V – Se acredito em espíritos, posso ter medo que você venha me puxar os pés depois de morto.

H – Isso é mitologia, crendice popular.

V – Não seja arrogante. O povo sabe mais que qualquer teólogo.

H – O filme tá fazendo água. Tem que ter mais ação.

V – É verdade. Vamos ao que interessa.

V arma o revólver e coloca o cano na boca de H com violência. H fala alguma coisa que não dá pra entender.

V (tira o cano da boca) – O quê?

H – Eu disse que esse é outro clichê que ninguém mais cai.

V – Que clichê?

H – Ora, o do cano do revólver na boca. Ninguém entende nada do que o sujeito diz. É besteira. E todo mundo tá careca de saber que não é pra valer, o cara não vai atirar, é só encenação, intimidação pura.

V (aperta o revólver na nuca de H) – E aqui?

H – Aí, sim, mas é outra coisa.

V – Que coisa?

H – Tiro na nuca quer dizer execução. O assassino só executa alguém para deixar claro que está fazendo justiça. Como não é o caso, a plateia vai ficar desorientada. Você tem outros motivos pra me matar. Concorda?

V – Que diferença faz? (Gargalha) Você vai estar morto mesmo.

H – Argumentação errada. Mesmo a polícia vai estranhar. Se você quer que ela ache que foi guerra de gangues, atira.

V – Você está querendo me confundir. A polícia não vai chegar nem perto de uma investigação.

H – Mas a imprensa vai.

V – E daí?

H – Acompanha meu raciocínio: eu morro com um tiro na nuca, confere?

V – Confere.

H – A imprensa vai atrás e dá o óbito como queima de arquivo, mas não era essa tua intenção. Confere?

V – Confere.

H – Ninguém mata ninguém sem um objetivo claro. Como o assassinato em si tem pouca importância, o que conta é o que o cara tinha em mente, o que quis passar pra galera. É como se fosse uma assinatura. Se ele matar o sujeito da maneira errada, fica uma confusão pra posteridade, percebe?

V – Percebo.

H – E aí o que acontece?

V – O que acontece?

H – O acerto de contas entre os dois fica sem sentido. O assassino queria uma coisa e passou outra.

V (aponta com violência a arma para o queixo de H) – E assim?

H – Vai parecer suicídio.

V – Então, o que você sugere?

H – Você pode me desamarrar os pés? A corda tá muito apertada. (V desamarra.) Obrigado. Presta bem atenção que agora vem a parte mais difícil.

Passagem de tempo. Luz diminui. Penumbra. Luz volta ao normal. Música sobe. Os dois estão conversando amigavelmente, bebendo uísque, contando piadas, rindo, filosofando. Ambos afrouxaram o colarinho e percebe-se que estão bastante mamados, olhos injetados e enrolando a língua.

V – E do David Lynch, você gosta?

H – Fica complicado quando ele bota aquele anãozinho falando merda.

Ambos gargalham alto, dando soquinhos um no ombro do outro. Quando o vilão vai botar mais uísque no copo, percebe que acabou.

V – Acabou.

H – Merda, logo agora que você tinha entendido o significado da coisa.

V – Você conhece aquela do macaquinho bêbado que entrou no bar e meteu o rabo no copo do …

H – O desfecho poderia ser mais abrangente, não sei se concorda. O interesse do assassino se fixa no polo oposto do raciocínio. É provável que segure a plateia mais um pouco e o suspense fique mais intrigante, pois abre novas perspectivas para a trama. Concorda?

V – Concordo, mas eu ainda não entendi aquela parte …

H – Você quer que eu vou comprar outra garrafa?

V – Me faz esse favor?

H – Tem cash?

V (estende-lhe dinheiro) – Tenho.

H sai, mas no trajeto vira-se duas ou três vezes para V com um sorriso nos lábios, dando a impressão que vai fugir pra nunca mais voltar. Quando chega perto da porta, acelera o passo, até tropeça em alguma coisa e se manda.

V (olha pra longe) – Sujeito correto, cem por cento mesmo! Adorei a conversa. Foi bacana aquele troço que ele disse de que a maior vingança é o perdão.

Pausa curta.

V (sorri) – Já sei o que ele diria se me ouvisse agora. (Imita) Esse negócio de solilóquio é coisa de telenovela. Um clássico de suspense jamais botaria um cara falando sozinho. Alguém já viu o Humphrey Bogart ou o James Cagney nessa condição constrangedora? Seria ridículo.

Pausa.

V – Quando ele voltar, vou falar isso pra ele. (Romântico) Em outras circunstâncias, a gente poderia ter sido amigo.

Pausa mais longa. Luz decresce pouco a pouco.

V (endurece a cara, bêbado, enrolando a língua) – Mas vingança é vingança. Tem que ser olho por olho, dente por dente, senão a gente perde o crédito no pedaço. É o código das ruas. A gente tem de respeitar. Quando ele voltar, vai ter o que merece. (Engatilha o revólver.)

Na penumbra.

V (com ternura) – Me lembro quando eu era criança, meu pai me deu um cachorrinho de presente no Natal…

Música de violinos sobe e encobre a fala de V.

Escuridão.

Furio Lonza é um escritor, dramaturgo e jornalista ítalo-brasileiro.