Projeto recria os 24 Cantos da obra de Homero em 24 peças

Não é falta de vontade ou interesse, mas os clássicos gregos não são lidos como deveriam. Os motivos são vários. Em primeiro lugar, dependendo da edição, podem chegar a 600 páginas, o que (à primeira vista) assusta; além disso, sua estrutura é complexa, com aquela lambança que eles faziam misturando História com Mitologia: os deuses se metem na vida dos mortais, armando arapucas e intrigas de bastidores. Portanto, seres de carne e osso têm que se virar para se livrarem tanto das ciladas impostas por essas entidades etéreas quanto das agruras do cotidiano. E, por fim, é necessário ter paciência em relação às versões encontradas no mercado, pois nem todas são traduzidas do original e geralmente aparecem em prosa, com o texto blocado, parágrafos e diálogos.

Não estamos falando das peças de teatro, mas sim dos poemas épicos, caso da Ilíada e da Odisseia, atribuídas a Homero. Eram épicas porque falavam em guerras, disputas pelo poder e amores roubados, mas não configuravam propriamente poemas como se entende hoje. Apesar de versificados, não eram necessariamente rimados. Contavam uma história e poderiam ser considerados os tataravôs dos romances como os conhecemos atualmente.

Hoje, existem três tipos de prosa ficcional: o conto, a novela e o romance, mas, ao contrário do que o vulgo imagina, eles não se diferenciam pelo tamanho, mas sim pelas características. O Alienista, do Machado de Assis, dependendo da edição, pode chegar a mais de 100 páginas, mas é um conto, tanto que faz parte de uma obra que se chama Papéis Avulsos, um livro de contos. Don Quixote de la Mancha, de Cervantes, apesar de ter 1.600 páginas, é uma novela, e assim por diante.

Segundo o dicionário, a epopeia (ou poema épico) é um extenso poema narrativo que faz referência a temas históricos, mitológicos e lendários. Uma das principais características dessa forma literária é a valorização de seus heróis, bem como de seus feitos. É um gênero da literatura em que se celebra uma ação grandiosa, na qual se exprime um mito coletivo.

Além desses dois, existem muitos outros poemas épicos clássicos provenientes dos quatro cantos do globo: As Metamorfoses, de Ovídio, o Beowulf (autor desconhecido), a Divina Comédia, de Dante Alighieri, O Paraíso Perdido, de John Milton, Eneida, de Virgílio, Os Contos de Canterbury, de Geoffrey Chaucer, A Epopeia de Gilgamesh e O Kalevala, entre outros.

A Odisseia, com suas peripécias marítimas de Ulisses (ou Odisseu), de uma forma ou outra, é bastante conhecida, pois foi adaptada até para o cinema e aparece também em outras formas artísticas menos nobres, como as HQs, por exemplo, mas a Ilíada continua um enigma: apesar de todos conhecerem o rapto de Helena e o Cavalo de Troia, poucos sabem que eles são o ponto central deste poema. E a extensão de ambas chega a ser um entrave intransponível aos que pretendem saber do que tratam, sobre o que falam e principalmente como foram escritas.

Não são poucos os personagens da Ilíada: Aquiles, Heitor, Agamemnon, Pátroclo, Príamo, Páris, Eneias, Helena, Menelau, Afrodite, Andrômaca, Briseis, Nestor, Ajáx, Crises e Criseida.

A Ilíada é dividida em Cantos, que seriam equivalentes aos nossos Capítulos. Ela tem 24 Cantos, cada qual narrando um episódio. São 15.693 versos em hexâmetros datílicos, a forma tradicional da poesia épica grega.

Levando tudo isso em consideração, o diretor curitibano Octavio Camargo, idealizou uma maneira bastante lúdica de popularizar a Ilíada para os que têm dificuldades em ler o livro: cada Canto virou uma peça de teatro interpretada no palco por um ator ou uma atriz de renome nacional. É o projeto da Cia. Iliadahomero de Teatro, de uma montagem integral dos poemas de Homero no Rio de Janeiro, em 2022.

Tudo começou em 1999, quando ele teve a ideia de tirar o ranço erudito da epopeia e divulgá-la na íntegra. A primeira coisa que chama a atenção é o fato de ele não ter cortado nenhuma linha do original; não ter inserido nenhum comentário metalinguístico em sua encenação; não ter abandonado a primazia da palavra de Homero, e principalmente não ter cedido à tentação fetichista de produzir imagens autônomas com relação ao texto (à moda das artes plásticas, do vídeo ou da dança). Em outras palavras: não pretendeu simplificar a linguagem do original e não recuou diante da tarefa hercúlea de nos restituir o tecido complexo da poesia de Homero. Agora, o público carioca terá a oportunidade de sentir os resultados dramatúrgicos dessa experiência radical num projeto de alta densidade.

Quem abre a série é Daniel Dantas, narrando o Canto I, onde se conta o desentendimento entre Aquiles e Agamemnon devido à disputa sobre uma jovem sacerdotisa, Briseida no décimo ano da guerra de Troia. Em seguida, vem o Canto II, que conta o esforço de Odisseu em debelar uma revolta, enquanto os gregos se preparam para outro ataque a Troia, e assim por diante, até chegar ao 24o Canto. 

É importante salientar que não são propriamente monólogos: Daniel Dantas, com leves modulações de voz, insinua os diálogos entre os vários personagens envolvidos na trama, criando a ilusão de que o público está vendo, ouvindo e acompanhando o enredo exatamente como ele foi escrito, mas adaptado às marcações tradicionais do teatro. A ousadia do diretor, porém, vai mais longe: para cada personagem, há uma luz exclusiva que o individualiza. Portanto, no caso do Canto I, por exemplo, existem 93 mudanças de luz.

Para levar a cabo este projeto, no entanto, é necessário partir de uma base sólida. A tradução escolhida pelo diretor é de Odorico Mendes, que a publicou ainda no século XIX, mais especificamente em 1874, diretamente do original grego. Dizem as más-línguas que as versões que vieram depois foram baseadas nela.

Com estreia no dia 11/12, sábado, no Teatro Petra Gold, no Leblon, a peça segue em cartaz nos dias 12, 18 e 19/12. O espetáculo de Daniel Dantas dá início ao projeto da Cia Iliadahomero de Teatro, em construção, de uma montagem integral dos poemas de Homero no Rio de Janeiro, em 2022.

Furio Lonza é um escritor, dramaturgo e jornalista ítalo-brasileiro.