A expressão popular do Congo Capixaba como elemento cênico

Carlos Sangália

 

O teatro e a cultura popular, no caso do Congo Capixaba mais especificamente, não estão tão ligados à questão da dramaticidade, mas sim na sua ritualidade. Se buscarmos nos primórdios do teatro, como escreve um grande pensador, o escritor e dramaturgo John Geisner, ele tem sua origem nos tempos das cavernas, sempre servindo como linguagem para expressão no sentido mais puro, em suas várias formas.

Os homens das cavernas sentiram a necessidade dessa expressão para se comunicar com seus grupos e com seus coletivos. Quando chegavam das caçadas, era a linguagem visual a única existente, sem a linguagem escrita, sendo importante para criar uma narrativa das caçadas, as vitórias e as derrotas para o grupo.

O teatro surge aí como um rito e também como manifestação espiritual, seguindo dessa forma nos rituais da Grécia antiga a Dionísio e a outras divindades. Eram evocações aos deuses da fertilização, que continham já naquela época a questão da carregada de um mastro em determinadas ocasiões, até mesmo como representação de um falo como símbolo da procriação e da fertilidade. Já nesse momento, junto com o teatro propriamente dito, não enquanto arte mas enquanto manifestação, essa ritualidade ganhou força representativa.

Isso está no Congo também. Na Grande Vitória existe a puxada do mastro que leva até um pouco mais de teatralidade, mas no Norte do Espírito Santo está mais marcada a sua procura e a sua fincada, com idas ao mato para procurar o mastro escondido um dia antes, o encontro, e a sua pegada e carregada em um clima de transe e euforia, com pessoas balançando flores e chegando em frente à Igreja Matriz para a sua levantada.

Na Commedia Dell’arte, na Idade Média da Europa, tais práticas também eram reforçadas, com rituais de representação de divindades, uma questão espiritual da cena. Na cultura popular capixaba existem os Foguedos, conhecidos como teatro popular, que são dramatizações como o Rei de Boi, o Rei de Bicho e o Ticumbi, em Itaúnas, mas existe também essa outra parte do Congo que, embora não seja Foguedo, é mais dança e coreografia, tem na sua essência nos ritos teatrais. Não há propriamente uma dramaturgia, mas há mise-en-scènes. Na fincada do mastro que acontecia na Grande Vitória no século XIX, entre os grupos que faziam a fincada, havia a questão de um roubar o mastro do outro e esconder em outro lugar, dando margem maior a essa teatralidade. Essa era a tradição da capital do Estado, que não existe mais tanto, mas que em Regência ainda existe. Um festeiro pega o mastro e esconde, outro vai e o rouba, escondendo em outro lugar, criando a necessidade da procura, que de certa forma é uma teatralidade para além do ritual.

O teatrólogo, encenador, dramaturgo e Professor Dr. Cesar Huapaya pesquisou muito sobre o tema e montou no Espírito Santo espetáculos com base nesses signos ritualísticos de cultura de matriz africana. Através de laboratórios, levava os atores a um processo de pesquisa integral onde eles entravam involuntariamente nessa entrega espiritual através de um ritual e daí surgiam cenas que se construíam num teatro envolvendo essas matrizes, como no Congo, africana e indígena.

Em Regência Augusta especificamente o Congo serviu de produto para a montagem de um auto, teatro propriamente dito enquanto arte, através de uma pesquisa com moradores. Foi identificado que a imagem de São Benedito ainda em madeira esculpida como pau oco havia chegado através de uma senhora que passou por uma tempestade ao entrar na barra do Rio Doce, fazendo com que ela fizesse uma promessa ao santo, que é o padroeiro do Congo e das pessoas que estão ligadas a essa espiritualidade congueira. Passando o temporal e tendo ela entrado sã e salva, cumpriu a promessa que tinha feito de trazer a imagem para a Igreja.

A Companhia das Artes Regência Augusta, criada há 30 anos na localidade, foi responsável por um processo de criação que montou esse trabalho, pegando tais narrativas e montando o “Auto de São Benedito”, que foi inserido na festa para o santo. A peça começa com um arauto contando a história de quem foi o São Benedito homem, na Itália, e São Benedito santo, e transporta a ação para uma cena da mulher fazendo a promessa e passando a ser salva do temporal. Em outra cena, ela agradece ao santo, trazendo sua imagem para Regência, para toda a comunidade, que festeja sua chegada. O Congo traz, portanto, essa questão histórica e cultural. Foi uma peça montada com o intuito de unir essa dramaticidade do Congo e as questões sociais e religiosas numa criação enquanto linguagem que serviu como produto para o fortalecimento da importância do Congo enquanto expressão artística e cultural, também espiritual nessa essência.

A iniciativa envolveu toda a comunidade nesse processo de pesquisa, criação, montagem e apresentação. Até o desastre da lama da barragem de Mariana no Rio Doce a companhia apresentava a peça. Essa e o “Auto do Caboclo Bernardo” e o “Auto de Natal” são as três principais peças que envolvem a questão do Congo, em que o menino de Jesus é representado por uma criança da comunidade e os Três Reis Magos são feitos por representantes da folia de reis, numa linguagem para unir manifestação religiosa e expressão teatral enquanto ferramenta de comunicação, educação e fortalecimento cultural para engajamento social, todos atributos que o teatro tem enquanto manifestação.

Nesse contexto, o Congo tem vários signos teatrais da ritualística: desde toda a escondida e busca do mastro, o cortejo, o cortejo com o santo, com a bandeira, e a fincada do mastro. Esse processo de devoção remete aos primórdios dos rituais dionisíacos, trazendo na música também esses elementos que sempre contam histórias envolvendo o mar, o litoral, o amor, a figura da mulher e os santos.

“Meu São Benedito

Ele vem de Lisboa

Com sua bandeira

Com sua coroa

Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá

Os negros estão todos em festa fazendo promessa para os orixás

Ooooo Ai que saudade da fazenda do senhor

Nós somos de Regência e vamos homenagear

O Caboclo Bernardo que é lá do nosso lugar”

São várias as toadas de Congo que, analisando, contam histórias que são ricas, com elementos de teatro que permitem que se transformem as festividades em produtos artísticos elaborados.