Não há outro dramaturgo que tenha se aproximado com tanto carinho dos excluídos da sociedade como Plínio Marcos. Seu interesse não era apenas temático, ele realmente se identificava com os marginais a ponto de, no fim da vida, assumir radicalmente ele próprio essa condição. Suas mais de quatro dezenas de trabalhos publicados e encenados (entre peças de teatro adulto e infantil, livros de contos, novelas policiais, relatos autobiográficos e romances) dão vida a um elemento invisível aos olhos, desses que não fazem parte de estatísticas oficiais nem são estudados pela Academia, não são citados em fóruns de debates e não recebem a atenção da população que, na maior parte das vezes, os evitam quando aparecem pelas ruas & becos.

Prostitutas, cafetões, homossexuais, alcaguetes, meganhas corruptos, traficantes e proxenetas das mais variadas procedências alimentavam sua arte como personagens perseguidos que ludibriavam a polícia e tentavam a duras penas sobreviver de expedientes pouco louváveis, mas sempre respeitando códigos de conduta próprios. Afinal, tinham aprendido na porrada a filosofia das ruas desde pequenos. Portanto, nada tinham a perder, a não ser a própria vida.

Na sua última década de vida, depois de ter conseguido o reconhecimento da mídia, o louvor dos críticos e a simpatia do público, Plínio manteve-se fiel aos seus princípios: largou tudo (casa, mulher e filhos) e imergiu nas quebradas do mundaréu, vivendo de favores e vendendo suas peças (confeccionadas e pagas de seu bolso) nas portas de teatro e locais de grande afluência de possíveis interessados na sua arte. A galera amiga ficou desorientada. Uns disseram que era um exagero, outros avaliaram como uma atitude de imolação, uma coerência política e social, uma espécie de opção de mimetizar os marginais que ele tanto respeitava.

Um dia, ao receber um prêmio por sua obra, ele dedicou a estatueta ao Gigetto, o restaurante paulistano que o tinha alimentado (literalmente) durante anos. Noutra dessas noitadas regadas a celebridades, a estarrecida plateia do Teatro Municipal de São Paulo ouviu o seguinte discurso: “Já disse mil vezes: não me deem prêmios, só quero que os jornais divulguem minhas peças para que o público possa assisti-las nas salas de espetáculo e eu ganhar algum para montar a seguinte”.

Tinha sentido: na época, a mídia o estava boicotando, era esnobado pelos intelectuais e a ditadura fungava em seu cangote, pois ele escancarava as piores mazelas de uma sociedade doente, constrangendo as plateias e as autoridades, que queriam vê-lo pelas costas. Quando a barra pesou, ficou com a cabeça a prêmio: o plano era sumir com ele. Amigos se reuniram e chegaram à conclusão que só tendo visibilidade na mídia e sendo reconhecido pelo público nas ruas, Plínio Marcos conseguiria sobreviver a mais aquela provação. Um desses amigos era Bráulio Pedroso, dramaturgo famoso que resolveu a questão da seguinte maneira: colocou-o como ator de sua telenovela Beto Rockfeller, na extinta TV Tupi, em 1968. Seu personagem (o hilário motorista Vitório) brilhou por seu carisma, sua graça irreverente e sua gíria sempre antenada com as veredas sujas de uma megalópole decadente que insistia em desviar de pessoas humildes que não tinham nada no bolso, mas viviam da própria honra. A novela foi um sucesso (durou dois anos) e Plínio continuou acrescentando títulos a sua carreira de dramaturgo.

A perseguição não começou com a ditadura, vinha de longe e não era de graça: Plínio tinha montado (ainda em 1959) Barrela, a história da curra de um jovem numa prisão. Seguiram-se: Os Fantoches (1960), Quando as Máquinas param (1963), Reportagem de um Tempo Mau (1965), Dois Perdidos numa Noite Suja (1966) e Navalha na Carne (1967), provavelmente seu maior sucesso.

De Santos para o Brasil e o mundo

Plínio Marcos nasceu em Santos, cidade litorânea de São Paulo. Foi funileiro, camelô, jogou futebol no time da Portuguesa Santista, trabalhou no circo (onde aprendeu as manhas do clown) e, sob influência da escritora e jornalista Patrícia Galvão, a Pagu, musa do modernismo, envolveu-se com o teatro. Sua estreia não teve muito êxito na época: por sua linguagem crua, Barrela só teve uma apresentação e ficou interditada durante 21 anos pela censura. Em outras palavras: Plínio sempre incomodou pelo simples fato de existir, tanto nos regimes democráticos quanto em épocas de exceção. Afinal, ninguém quer ver a realidade nua explodindo no palco, na cara de uma burguesia que tem medo, pois pressente que, a qualquer momento, pode ser destronada e perder a boquinha.

Em 1966, sob a direção de Benjamin Cattan, ele e Ademir Rocha interpretam Dois Perdidos Numa Noite Suja no Ponto de Encontro, bar da Galeria Metrópole, em São Paulo, que marcou sua estreia como profissional. Fez barulho. A peça tocou o coração de artistas e do público.

Plínio Marcos já não era mais um desconhecido, tinha angariado a simpatia de grandes nomes do teatro, de atores e atrizes a renomados diretores da área.

Navalha na Carne, sua obra seguinte, enfrenta graves problemas com a Censura. A classe teatral se mobiliza. Leituras no Teatro de Arena e no teatrinho particular de Cacilda Becker e Walmor Chagas reúnem a crítica e artistas, que pressionam pela liberação do texto, permitindo a montagem em 1967. Mas houve um problema: o pungente desempenho de Ruthinéa de Moraes, vivendo a prostituta explorada pelo gigolô, fez com que o espetáculo só fosse liberado para maiores de 21 anos.

O mesmo papel impulsionou a carreira de Tônia Carrero, na montagem carioca sob a direção de Fauzi Arap, em 1968, no Teatro Maison de France, contracenando com o fabuloso Nelson Xavier e Emiliano Queirós. No ano anterior, Plínio tinha dirigido outro texto, Quando as Máquinas Param, no Teatro de Arte, sala pequena do TBC, que chamou a atenção para o trabalho da novata Miriam Mehler. Também em 1967, surge nova criação, Homens de Papel, com Maria Della Costa interpretando a catadora de papel Nhanha, pelo Teatro Popular de Arte – TPA.

Crítica e público ainda não estavam refeitos do impacto dessas montagens, quando Plínio manda para a ribalta em 1969 um novo texto, Abajur Lilás, a história da descida aos infernos de três prostitutas numa trajetória abjeta de degradação física e moral.

É de se perguntar como que, em tão pouco tempo de atividade profissional, ele conseguiu arrebanhar tanta admiração da classe teatral. Dizer que era pelos seus textos seria uma meia verdade. Plínio Marcos era um sedutor nato. À revelia da idade que tivesse, parecia ter sempre a jovialidade de um garoto de dezoito anos. Tinha um sorriso moleque encantador. Era carismático. Conseguia atrair jovens e adultos, que formavam à sua volta um reduto de fãs, embevecidos por sua retórica, humor e histórias fantásticas que inventava na hora.

Plínio atuava em várias mídias. Fervoroso defensor dos seus direitos, envolveu-se num caloroso debate, transmitido pela TV, com a deputada Conceição da Costa Neves, no qual advogava pela sua liberdade de expressão. Já era um nome nacional e, como articulista do jornal Última Hora, dispunha de uma tribuna para arremeter contra a censura e a ditadura.

As trevas caem sobre o autor

Sempre insubmisso e nunca admitindo negociar com seus algozes para liberação de suas peças, depois das montagens de Dois Perdidos e Navalha, toda sua obra foi proibida pela censura, obrigando-o a viver de bicos jornalísticos nos raros órgãos da imprensa que aceitavam suas colaborações.

A partir da década de 80, Plínio muda um pouco o rumo de seu enfoque dramatúrgico em função de sua própria opção de vida: interessa-se por assuntos esotéricos, por exemplo, e leitura do tarô. Dessa nova fase, nasce Madame Blavatsky, encenada por Jorge Takla em 1985, grande painel sobre a vida da mística autora de A Doutrina Secreta. E era comum vê-lo todo de preto, portando um cajado com uma cruz na ponta, pronunciando longos discursos para plateias especiais a respeito de temas que normalmente não fariam parte de seus temas habituais. Mas era apenas a performance de um ator fora do palco, ele não tinha abdicado um centímetro de suas convicções políticas e sociais.

Tanto que não esqueceu de suas raízes: em 1986, encena Balada de um Palhaço, com direção de Odavlas Petti, uma abordagem lírica sobre dois palhaços de circo que dividem o picadeiro e que se alfinetam um ao outro (como dois clowns de Beckett) rumo ao entendimento. Há humor, há tristeza e uma ponta de amargura.

Depois disso, publicou em livro e montou outras peças, como A Manche Roxa (1988), O Assassinato do Anão do Caralho Grande (1995), O Bote da Loba (1997) e deixou inacabado o texto Chico Viola, uma homenagem (à sua maneira) ao cantor Francisco Alves, o mesmo que tinha feito no musical Noel Rosa, o Poeta da Vila e seus Amores, de 1977.

Plínio Marcos foi traduzido, publicado e encenado em francês, espanhol, inglês e alemão; sua obra foi tema de teses de sociolinguística, semiologia, psicologia da religião, dramaturgia e filosofia, em universidades do Brasil e do exterior.

Recebeu os principais prêmios nacionais em todas as atividades nas quais atuou (teatro, cinema, televisão e literatura), como ator, diretor, escritor e dramaturgo.

Sua saúde entrou em declínio a partir de agosto de 1999 em virtude do diabetes, quando sofreu um derrame cerebral que deixou sequelas: seu lado esquerdo ficou paralisado, incapacitando sua respiração sem o auxílio de aparelhos. Depois do segundo derrame, no fim de outubro, foi internado no Instituto do Coração, em São Paulo, com infecção pulmonar. Faleceu dois dias depois, aos 64 anos de idade.

Afirmar que Plínio foi e continua sendo um autor maldito é pouco. Ele revolucionou a arte dramatúrgica de tal maneira que nada depois dele foi o mesmo. Ninguém pode hoje negligenciar suas lições e voltar a fazer um teatro certinho & asséptico, com mensagens subliminares, símbolos e metáforas, pois seu estilo desbocado e explícito escancarou a possibilidade de acertar na jugular da vida sem medir consequências. Afinal, é para isso que existe a arte do teatro: abrir os olhos dos que ainda hesitam em aceitar a verdade.

As avaliações efusivas de críticos como Sábato Magaldi, Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado, Yan Michalski, Eneida de Moraes, Bárbara Heliodora e João Apolinário não deixam dúvida alguma sobre a importância de Plínio Marcos como dramaturgo, escritor e jornalista, tendo reabilitado os diálogos coloquiais (recheados de jargões e gírias de grupos apartados da sociedade), até então considerados simples grosserias pelos intelectuais babacas e reacionários que não conseguiam aceitar a realidade.


Diálogos possíveis & impossíveis

Da mesma forma que é pertinente dizer que a escrita naturalista e os personagens de Plínio Marcos dialogam diretamente com a literatura de Marcos Rey (O Enterro da Cafetina, Memórias de um Gigolô), Antônio Fraga (Desabrigo e Outros Trecos), Carolina Maria de Jesus (Quarto de Despejo) e, mais especificamente, com João Antônio (Perus, Malagueta e Bacanaço e Leão de Chácara), também é lícito argumentar que há diferenças fundamentais de propósitos nos três primeiros: enquanto Rey desenvolvia uma ficção mais insolente, Fraga contrapunha o submundo (conteúdo) a uma sofisticação estilística (forma) que desconcertou até Oswald de Andrade. Por sua vez, Carolina tinha a intenção mais documental e jornalística, ao passo que João Antônio foi o herdeiro inquestionável tanto de Plínio Marcos quanto de Lima Barreto ao colocar na linha de frente personagens esquecidos da sociedade e mostrar que a vida e a gangorra econômica são mais complicadas do que se imagina.

O importante é saber que Plínio Marcos não estava só nessa cruzada. Muitos nomes do teatro e da literatura também se preocuparam em recuperar do olvido personagens esquecidos e encurralados pelo preconceito e a intolerância de classes sociais cruéis e violentas, mas foi ele sem dúvida que soube dar-lhes voz com mais propriedade, pois amava de todo o coração essa gente perdida, transformando-a em dignos seres humanos pelo menos no teatro.

Furio Lonza é um escritor, dramaturgo e jornalista ítalo-brasileiro.