A contemporaneidade de um artista se mede principalmente pela sua capacidade de dialogar e responder a perguntas de uma sociedade que não é mais a de seu tempo. Poucos dramaturgos foram tão eficazes quanto Henrik Ibsen ao perceber as oscilações da alma humana na sociedade com tanta desenvoltura e acuidade, mas demorou bastante para que isso fosse detectado pelos especialistas e mais ainda pelas plateias, que não estavam preparadas para aceitar tamanha mudança gestada num país improvável e longe dos centros normalmente difusores de cultura: a Noruega.

Foi Pirandello que levantou a lebre pela primeira vez: ele afirmou que não só Ibsen era o verdadeiro criador do teatro moderno como também o maior autor depois de Shakespeare. Foi o mais arguto intérprete dos dramas individuais e sociais de seu tempo e um profético antecipador da condição existencial do ser humano no século 20. Dois exemplos disso são Casa de Bonecas (1879), que prenuncia a emancipação feminina dos dias de hoje, e Um Inimigo do Povo (1882), que contrapõe a ética de um indivíduo que pretende delatar gambiarras municipais e o progresso a qualquer custo.

De qualquer forma, seria um reducionismo sazonalmente conveniente limitar a proposta de seus textos a circunstâncias históricas e factuais. O discurso de Ibsen está todo focado no indivíduo, no interior do indivíduo: é este personagem que, ao encontrar a verdade em si mesmo, consegue transformar também a sociedade. A revolta de Nora contra uma concepção equivocada da fêmea no casamento é, antes de mais nada, uma tomada de consciência de uma mulher no confronto com uma realidade cada vez mais complexa e difícil de entender. Na crise de Nora, Ibsen colheu a crise do indivíduo, privado de suas certezas e obrigado a viver num mundo hostil e impenetrável.

Ibsen teve que lutar muito para ser ouvido pelo resto da Europa. As condições políticas, econômicas e principalmente artísticas da Noruega lhe eram francamente desfavoráveis. Até meados do século 19, o país carecia de tudo. Em termos culturais, praticamente não existia um teatro nacional; o norueguês era (na melhor das hipóteses) considerado mais um dialeto do que uma língua e, sob o ponto de vista literário, a Noruega era apenas um puxadinho da Dinamarca; as condições sociais estavam uma lástima, a Noruega era um país frágil economicamente, que dependia (apesar da autonomia administrativa) da Suécia. E assim por diante. Além das dificuldades normais que um artista tem para criar, ele foi obrigado a inventar uma maneira de se fazer notado, pois o público extremamente provinciano não estava acostumado a se ver diante da busca da verdade e refletir sobre suas condições sociais e as contradições do espírito.

Depois de Brand (1865) e Peer Gynt (1867), houve a reviravolta e Ibsen conseguiu afirmar-se definitivamente a nível europeu, que o elegeu como um autor capaz de incidir profundamente na sociedade e nos costumes de seu tempo. Obras como Os Pilares da Sociedade, Casa de Bonecas, Espectros e Um Inimigo do Povo são consideradas como grandes dramas de um autor maduro e genial, empenhado em construir uma espécie de mitologia de personagens que interagem e confrontam os equívocos da sociedade em pé de igualdade.

Nora Helmer, Arnold Rubek, Elena Alving, doutor Stockmann, Hedda Gabler, Gina Ekdal, o construtor Solness, entre tantos outros, formam uma plêiade de personagens insuperáveis que dão vida a uma série de peças invulgares, ou, como escreveu James Joyce num ensaio de 1900: Na história do teatro antigo e moderno, poucas obras estão no grau de rivalizar as de Ibsen quanto à habilidade dramática, psicologia dos personagens e força de expressão.

Nem tudo são louros, porém. Muitas de suas peças foram consideradas escandalosas na época em que foram lançadas, pois o teatro europeu restringia-se ao modelo determinado pela vida familiar burguesa e pela propriedade. Indo na contramão, os trabalhos de Ibsen analisavam a realidade contida por trás das convenções e costumes, o que inquietou seus contemporâneos. Ele lançou um olhar crítico e uma livre investigação sobre as condições de vida e as questões da moralidade da época.

A maioria dos dramaturgos que conhecemos deve muito a ele. Tchecóv, Bernard Shaw, Oscar Wilde e Engene O`Neill não seriam os mesmos sem Ibsen. Foi um precursor em todos os sentidos. Muitos especialistas acham Casa de Bonecas infinitamente superior a Quem tem Medo de Virgínia Woolf?, de Edward Albee, por exemplo.

Sim, ele foi romântico no começo [de Catilina (1850) até Imperador e Galileu (1873)], ele foi lírico e filosófico durante o período de 1862 e 1867;  ele foi realista e (vá lá) simbolista de 1869 a 1888); foi autobiográfico em seus últimos trabalhos (basicamente em Solness, O Pequeno Eyolf e Quando Despertamos Entre os Mortos), mas a poética peça Peer Gynt tem fortes elementos do surrealismo quando ele sequer existia

De qualquer maneira, seria uma avaliação pela metade se analisássemos a obra de Ibsen apenas como uma sucessão de textos fortes e diálogos inspirados. Ele era um dramaturgo completo: concebia um teatro onde a encenação tinha uma importância equivalente à trama, como fazia Wagner em suas óperas. O cenário era monumental, a iluminação feérica, elementos de cena fechavam o espírito da coisa com graça & beleza.

Como as salas de espetáculo europeias, na época, abrigavam tanto peças de teatro como a ópera, em geral, o pé direito do palco tinha não menos de dez metros de altura e a profundidade também era inquietante. Era nesse espaço que Ibsen se regalava, construindo cenários espetaculares e grandiosos, com telões de fundo que retratavam abismos insondáveis e os profundos fiordes que caracterizam a tradicional natureza norueguesa.

Seria um equívoco dizer que os dramas de Ibsen são óperas sem música, pois Peer Gynt (1867), por exemplo, foi concebido em parceria com Edward Grieg, que compôs uma trilha sonora original muito conhecida por todos. Só por curiosidade, é um trecho desta suíte (No Salão do Rei da Montanha) que o ator alemão Peter Lore assobia no filme M – O Vampiro de Düsseldorf antes de estrangular criancinhas.

Entre outras singularidades, podemos garimpar alguns exotismos que podem ter passado despercebidos até ao aficionado mais atento. A trama do filme Tubarão (1975), dirigido por Steven Spielberg, é livremente baseada na peça O Inimigo do Povo (1882).

Nesta peça, Ibsen foi ainda mais longe que nas anteriores, onde elementos controversos foram componentes importantes e até mesmo fundamentais na ação, ou seja, a controvérsia tornou-se o foco principal.  A mensagem principal é que o indivíduo que está sozinho tem mais razão do que a massa de pessoas, que são retratadas como ignorantes.

Ibsen abriu a ferida e foi fundo. A crença da sociedade contemporânea era a de que a comunidade era uma instituição na qual se podia confiar, mas Ibsen contesta esse paradigma. Ele critica não só o conservadorismo da sociedade, como também o liberalismo da época, ilustrando como as pessoas de ambos os lados do espectro social poderiam ser iguais. O protagonista é um médico de um local de férias, cujo principal objetivo é construir um banho público para atrair turistas. O médico descobre que a água está contaminada, e espera ser aclamado para salvar a cidade do pesadelo de infectar os visitantes com a doença, mas ao invés disso ele é declarado um “inimigo do povo” pelos moradores, que lutam contra ele e até mesmo atiram pedras através de sua janela. A peça termina com o seu completo ostracismo e com uma frase cruel & emblemática do protagonista: Sozinho, me sinto mais forte.

Provavelmente, era assim que se sentia Ibsen diante de seus conterrâneos, mas a História lhe fez justiça.

Furio Lonza é um escritor, dramaturgo e jornalista ítalo-brasileiro.