Antonio Ventura | Imagem: Divulgação

Valsa nº6 chega aos setenta anos mais atual que nunca

 

Único monólogo da obra do dramaturgo Nelson Rodrigues, a peça acompanha uma menina de 15 anos na busca por suas memórias, culminando na revelação de um segredo terrível. É um verdadeiro thriller em que os espectadores desvendam a trama junto com a protagonista. Em pauta, estão as diferentes formas de violência contra a mulher e o tema fragmentação da identidade.

 

Dizem os especialistas que é muito difícil justificar que uma personagem fale sozinha no palco e existem apenas duas maneiras de encenar um monólogo sem que o público estranhe: ou a personagem está enlouquecida ou a atriz se dirige à plateia, quebrando a quarta parede. No caso de Valsa Número 6, uma menina de quinze anos reconstitui seus últimos momentos de vida. Você segue as rubricas do autor, que opta pelo metateatro, ou aborda um terceiro método?

Ela está enlouquecida e quebra a quarta parede. A gente segue todas as rubricas que indicam que a atriz se dirige a um espectador específico. As falas são imperativas nesse sentido, a personagem diz “o senhor”, “a senhora”. Mas tem outros momentos em que o Nelson indica interação e optamos pela introspecção – e a loucura vem um pouco daí, desse diálogo consigo própria.

O pulo do gato, tanto no texto quanto na forma como montamos, é que não existe quarta parede em momento algum. É bastante shakespeariano nesse aspecto. Com exceção dos primeiros minutos da peça, – antes da personagem falar “Tem gente me olhando!” –, ela sempre tem consciência da plateia. Só que às vezes está tão imersa nas próprias memórias e traumas que “esquece” que está sendo vista. O que nós definitivamente não fazemos é seguir as rubricas de ação física. Elas foram importantíssimas na estreia porque o público brasileiro ainda estava pouco acostumado ao expressionismo do texto. Mas hoje em dia ficam bastante ilustrativas. Optamos por contenção.

 

Valsa Número 6 estreou em junho de 1951 e tua versão vai para o palco em junho de 2021, exatamente setenta anos depois. Além da efeméride, o que mais te motivou a reencená-la?

A efeméride foi, a bem da verdade, coincidência. Inclusive, o plano era estrear em 2020. Tudo começou com a Natália Caruso, que conheço desde 2013, insistindo que a gente deveria trabalhar juntos. Eu só tinha visto uma cena dela como atriz, mas minha intuição era de que tinha ouro ali. Não me enganei.

Pensamos em vários textos, sempre do cânone; consideramos a sério “Senhorita Júlia”, de Strindberg. Mas ficamos meio de saco cheio de depender do interesse de outros atores e resolvi encarar meu medo de dirigir monólogo. A Valsa era uma opção óbvia.

Isso foi no final de 2019. A partir do Me Too e do caso João de Deus, teve uma avalanche de denúncias de abuso sexual. Se falou muito nisso durante aquele ano. Então a gente teve a certeza que era a peça certa para nós e para o momento – afinal, assédio é uma questão-chave dela. E eu realmente não acredito nessa história de vender o próprio processo. Acho que, para montar alguma coisa, tem que ser relevante para o público. Por isso, pesamos a mão nesse tema desde o começo.

Depois, durante a pandemia, a situação só piorou. Mais denúncias, recorde de feminicídios, o caso Mari Ferrer, estupro de uma menina de 10 anos, este último até influenciou o tratamento de uma cena. O texto do Nelson é mais relevante do que nunca justamente porque a personagem é uma vítima. O fato de continuar atual 70 anos depois nos chocou muito. Avançamos muito pouco e precisamos falar sobre isso.

 

Em sua crítica de 1951, o crítico Sabato Magaldi dizia que lamentava discordar de Nelson Rodrigues quando afirmava que era um monólogo de uma personagem que narra a própria morte, mas que, na verdade, era uma situação “na zona fronteiriça do instante da morte, no último alento em que o inconsciente procura recompor a vida e a unidade da pessoa humana”. Ou seja: a personagem transita entre a inconsciência e a realidade, numa espécie de antevisão de seu próprio assassinato. O que você acha desta interpretação?

Concordo plenamente com o Magaldi. Acho que a chave está no fato da protagonista ouvir o próprio grito, quase no final da peça.

Eu concebi o espetáculo pensando que aqueles 70 minutos se passam no instante entre a punhalada fatal e a morte propriamente dita, passando pelo grito agonizante. É, no sentido mais básico da palavra, suspense. Não é à toa que dirigi como se fosse um thriller.

A leitura do Sábato foi importantíssima também para a concepção cenográfica. A ideia toda é ser um grande espelho se espatifando, mas que a gente vê em freeze, como se o tempo estivesse parado. Mais do que um apetrecho estético, é um indicador cronológico. Trabalhei muito próximo à Fernanda [Correia, cenógrafa do espetáculo] por conta disso.

 

Muitos acreditam que este monólogo de Nelson pode ter sido concebido como um Vestido de Noiva às avessas, pois trabalha com os mesmos elementos dos planos da memória e da alucinação, mas é através do filtro do subconsciente que se revelam todos os outros personagens. Se você concorda, explique um pouco como foi tua concepção desta remontagem.

Não só concordo como foi a base da concepção. Lembra do espelho? Se eu quisesse apenas marcar uma suspensão do tempo, poderia ser qualquer objeto em instabilidade. Mas eu queria levar a proposta do Nelson da intérprete fazer todos os personagens, que é genial, às últimas consequências.

O espelho proporciona isso, porque a gente tem a possibilidade de trabalhar com o corpo da atriz e com o reflexo que ele produz. Quando ela faz a menina, está de frente ou perfil para os espectadores. Mas quando entra nos personagens ou nos coros, ela dá as costas, a luz cai e o público vê a imagem dela nesses cacos imensos que a gente tem no palco. Os personagens são literalmente reflexos dela própria. A Natália muda o timbre, monta uma máscara (a referência, claro, é Akropolis dirigida pelo Grotowski) e só. Entende-se rapidamente quem é quem – o que é importante, porque tem sequências imensas em que vários desses personagens interagem entre si,  mas sempre dá pra ver que é ela. Sem truques.

 

Além de Natália Caruso, a atriz que interpreta a menina, você se cercou de uma equipe majoritariamente feminina: a cenografia ficou a cargo de Fernanda Correia, da figurinista Marcella Paskin, do multiartista Julio Parente, que assina a trilha sonora original, e da iluminadora Fernanda Mattos, que propõe uma atmosfera de pesadelo, com feixes de luz que perfuram a escuridão do palco como punhais. Trabalhar com um time sem muita testosterona foi uma opção ou uma coincidência?

Era um desejo desde o começo. Queria me cercar de mulheres porque é uma leitura feminista do texto do Nelson. Não que o texto seja feminista, mas os temas que ele aborda são importantíssimos na luta delas. Não faria sentido fazer isso com uma equipe majoritariamente masculina.

Agora, eu não escolhi a equipe com base no gênero. Eu sempre fecho os times dos meus espetáculos com o melhor material humano que estiver interessado. Não dá para fazer teatro de primeira com equipe de segunda. Dei a sorte de que boa parte dessas pessoas eram mulheres. Foi unir o útil ao justo.

Pensando bem, trabalhei mais com boas profissionais do que com bons profissionais. Pode ser que as mulheres tenham que se dedicar mais ao ofício para superar o preconceito de gênero que, apesar de ninguém gostar de admitir, ainda existe nas Artes Cênicas. Mas isso você tem que perguntar a elas.

 

Como artista, você tem um pé no teatro e outro na ópera, caso de Suor Angelica, de Puccini, e O Gato de Botas, de Montsalvatge. Facilitou as coisas este monólogo ter a música como uma das personagens?

Foi essencial. Devo muito dessa compreensão de como a música informa o drama e vice-versa ao André Heller-Lopes, de quem fui estagiário e assistente. Mas ao contrário da ópera, em que a ação deve ser sustentada pela música, precisamos criar a música a partir da ação.

O Nelson dá uma baita ajuda porque a Valsa em Ré Bemol Maior (Op. 64, nº1), que dá título à peça, é a trilha perfeita. Por baixo da superfície simpática, ela é agitada, obsessiva, quase esquizofrênica. Mas eu não queria usar só a composição do Chopin como ela é, sob risco de esgotar a melodia. Outra música, nem pensar, porque essa música tem que estar sempre lá, é uma ideia fixa da personagem. Acabei me inspirando no melodram, um gênero operístico alemão em que um ator ou atriz acompanha, com falas, uma composição orquestral que ilustra o estado de espírito do personagem.

Por isso, o Julio Parente foi outro com quem trabalhei lado a lado. Eu passava o clima de cada cena e ele me trazia uma distorção da Valsa. Importante: distorção. Não são variações harmônicas, de virtuoso. É uma trilha convulsa, repetitiva, fragmentária. Um acompanhamento ao piano à mente destroçada da protagonista.

 


“Valsa nº6”, de Nelson Rodrigues, será apresentada em nova encenação entre os dias 18 de junho e 03 de julho no Teatro Laura Alvim. As sessões serão às sextas e sábados, às 19 h.

 

 

VALSA Nº 6

Equipe redatora de serviços de programação e de artigos sobre teatro.