Eclético, inquieto e sempre pronto a experimentar coisas novas e trilhar caminhos ainda não explorados, Júlio Adrião é um saltimbanco medieval moderno: atua, dirige, traduz, pesquisa, dá consultoria técnica, além de interpretar em português e castelhano. Depois do sucesso nacional e internacional de A descoberta das Américas, de Dario Fó, em maio, estreia na direção em Fico, outro solo que conta a história do dia em que o príncipe regente Dom Pedro I resolveu ficar por aqui. Unindo simplicidade e sofisticação, narra fatos conhecidos e outros nem tanto.

 

Você acaba de voltar de Santiago do Chile onde apresentou teu solo A Descoberta das Américas no Festival FITAM 2022 em espanhol. Quem fez o convite e como foi a recepção do público?

Fui para o Chile realizar um projeto com a Companhia Tryo Teatro Banda, de Santiago, onde dirigi o espetáculo Fico, com o ator Francisco Sanchez. A produtora da companhia, Carolina Gonzalez, sugeriu que eu aproveitasse a oportunidade para participar do Festival Santiago a Mil, o FITAM e fez essa costura. Foram cinco apresentações em teatros e espaços culturais na periferia de Santiago para um público reduzido, porém entusiasta. Um privilégio e um aprendizado.

Quem fez a tradução?

Em 2013, fiz um primeiro exercício para apresentar A descoberta das Américas em castelhano, também no Chile, quando contei com a colaboração da atriz uruguaia Florência Santangelo para traduzir o texto. Ao longo dos últimos anos, tive a colaboração de colegas argentinos, espanhóis, chilenos e mexicanos, que deram diferentes contribuições para que o texto amadurecesse.

Como o texto do Dario Fó é quilométrico e palavroso, você disse tudo em castelhano mesmo ou rolou alguma coisa em um portunhol no meio?

Como não fluente nesse idioma, tive que trabalhar bastante para dizer o texto realmente em castelhano, embora com a licença de, sendo o personagem narrador um italiano, poder falar como um cara que, acima de tudo, tenta se comunicar, portanto, escorregando vez em quando para alguma coisa entre o português e o castelhano. Em todo caso, minha fiel escudeira Alessandra Vannucci acompanhou esse processo e me ajudou a limpar e eliminar os textos que não eram necessários.

Como está o Chile atualmente em termos de teatro, pois você deve ter visto outras peças no mesmo Festival?

Por conta do processo de direção, fiquei dois meses em um sítio em Culipran, a 80 km de Santiago, ensaiando cerca de 8 h por dia na sala de trabalho da companhia. Portanto, não tive muitas oportunidades de ir ao teatro. A companhia Tryo Teatro Banda tem um amplo repertório de obras baseadas em temas ou personagens históricos, todas com música ao vivo, especialmente compostas para cada obra e, logo que cheguei, assisti à estreia de Magallanes, com dramaturgia e direção do ator Francisco Sanchez, um espetáculo potente e provocativo, narrando o episódio da descoberta do caminho marítimo para as índias por Fernão de Magalhães navegando para oeste. Adoraria trazer esse trabalho para o Brasil, quem sabe fazer uma ocupação no CCBB, com três ou quatro obras da companhia, durante um mês.

Quais são os temas abordados, de que maneira os dramaturgos de lá desenvolvem seus enredos? Há mais crítica de costumes ou tramas com uma pegada político-ideológica?

Embora tenha assistido a poucas obras, vejo que o Chile tem um teatro muito atuante, com textos próprios e obras que circulam pelo país inteiro, além de muitas companhias com trabalho continuado de repertório, como o Tryo Teatro Banda. Fiquei, porém, devendo no quesito de conhecer melhor os autores locais.

Em maio próximo, aniversário dos 200 anos da famosa frase do príncipe regente Dom Pedro I às margens do Ipiranga, você vai estrear na direção em Fico no Paço Imperial, com atuação solo de Francisco Sanchez numa coprodução Chile e Brasil. Quais as características básicas dessa versão? De quem é o texto? No que ele difere da História oficial?

O processo de criação da Companhia se aproxima muito do que me interessa para o desenvolvimento de uma narrativa que não possui um texto dramatúrgico a priori. Depois de lermos uma série de livros referentes à história do Brasil, fomos para a sala de trabalho e, na companhia do músico Simon Schiriever, iniciamos a montagem e desenvolvimento de um canovaccio (na commedia dell’arte, roteiro sobre o qual o elenco improvisa), que serviu de referência para as improvisações e que, depois de cinco semanas fazendo, repetindo, corrigindo, compondo músicas, filmando e conversando, nos deu condições de transcrever o texto falado para o papel, portanto, o texto é o que Francisco falou, eu interferi e Simon musicou. Como desejávamos que o narrador não fosse brasileiro, tivemos a sorte de encontrar o livro do chileno Vicente Peres Rosales, Recordações do passado que, num dos primeiros capítulos, conta sua passagem pelo Rio de Janeiro em 1821, quando narra fatos por nós conhecidos e outros nem tanto, que foram determinantes para a construção de uma narrativa mais crítica e permeada por momentos da história chilena no mesmo período. Assim sendo, de ficção mesmo, só inventamos uma improvável amizade entre os jovens Vicente e Pedro, sem que o primeiro soubesse de quem se tratava o galante, efusivo e temperamental amigo. Uma farsa picaresca musical nos moldes do que acredito ser o teatro que eu sei fazer, unindo simplicidade e sofisticação. No Brasil, além de Simon, a música será executada ao vivo pelo quarteto de cordas carioca Cais, na sala dos Archeiros do Paço Imperial.

Como no picaresco Roliúde você assinava com a rubrica Supervisor cênico, o diretor que há em você resolveu sair do armário? Podemos esperar novas direções suas nos próximos anos? Algum texto em vista?

Em Roliúde assinei a supervisão cênica, pois o ator João Ricardo Oliveira tinha o espetáculo na cabeça e achei mais honesto me colocar no lugar de um espectador privilegiado que, com sua presença, ajuda ao ator/diretor/dramaturgo a se auto dirigir e, acima de tudo, não desistir, direcionando, mais do que dirigindo o espetáculo. Costumo dizer que dirijo sem carteira, pois não sou um diretor que tem ideias, mas sim um direcionador de processos, onde a equipe de criação trabalha de forma horizontal, com todos que falam de tudo em benefício da obra, que é o que nos une e o que mais interessa. Meu projeto Consultório Cênico é uma espécie de mentoria para o desenvolvimento de processos de trabalho que, eventualmente, posso até vir a dirigir, mas não necessariamente. Atualmente, com a parceria de meu sócio e produtor Fernando Alax, estamos tentando aprovar o projeto do solo “Antes da aula”, da atriz e escritora Aline Oliveira, cuja dramaturgia foi desenvolvida a partir de um exercício feito em uma oficina que ministrei e que seguimos trabalhando on line nos primeiros meses da pandemia. Acabamos aceitando produzir e dirigir o espetáculo por reconhecer que era o lugar devido para uma efetiva participação nossa na realização de um projeto que considero consistente.

Como você é um ator incomum e sua trajetória nos palcos sempre se pautou pelo ecletismo, de que maneira você avalia as novas produções no teatro carioca e brasileiro? Na tua opinião, falta ousadia e experimentação?

Somos um celeiro de criação, com autores, diretores e atores muito variados e com muita qualidade, embora sigamos nos conhecendo muito pouco. Por muitos anos, viajei pelo Brasil inteiro com A descoberta das Américas, o que me deu a chance de cruzar com diversos artistas e companhias de alto nível, grande parte desconhecidos pela maioria dos que não têm a mesma oportunidade de viajar. Vez em quando, algum desses artistas ganha uma projeção maior e passa a ser visto e reconhecido como o artista que é. Não creio que falte ousadia ou experimentação. O que falta mesmo é uma política cultural que dê condições a esses artistas e coletivos de se dedicarem plenamente aos seus processos de criação, e isso inclui pesquisar, ensaiar, apresentar, circular, intercambiar, viver disso, sem que essa política seja compreendida como assistencialismo, pois a cultura, por meio das artes, é uma ferramenta de inclusão poderosa, que faz pensar e mudar, como dizia o saudoso Fausto Wolff, “uma arma de defesa pessoal”, por isso mesmo perigosa e colocada sempre em último plano nos investimentos em nosso país.

Esse conservadorismo temático ainda vai perdurar por alguns anos?

O conservadorismo não é dos temas, mas sim das estruturas que burocratizam a criação artística e a produção cultural. Fora isso, a própria mídia não tem interesse em dar luz a quem não se transforma em um produto de consumo. Os artistas que criam a partir de suas reais inquietações estão por todo lado e não têm tempo ou dinheiro para buscar a visibilidade ou o reconhecimento que merecem.

O que ainda falta para você se realizar como ator e consagrar como diretor?

Sou um ator preguiçoso e creio que ter uma realização como A descoberta das Américas é um trunfo que poucos atores conseguiram. Por isso, cuido para que esse trabalho siga vivo com a qualidade que me deu o atual reconhecimento para que possa ser visto por quem ainda não teve a oportunidade. Isso já me faz sentir um tanto realizado. Sobre a questão da direção, talvez o fato de não me considerar um diretor que tem um projeto próprio de direção e me ver mais como um direcionador de projetos, quando me confiada essa função, seja um fator concreto para não ter esse reconhecimento. Em todo caso, a tal consagração não te torna necessariamente um melhor artista, embora possa te tornar um pior ser humano.

Quais os textos estariam na tua pauta? Que tipo de produção você gostaria de montar?

Nos últimos dois anos, desde quando a pandemia tomou conta de nossas prioridades, não consegui fazer praticamente nada em teatro, fora essa direção no Chile que, aliás, foi absolutamente revigorante, em especial pelas condições em que foi realizada e na companhia desses artistas imensos, Francisco e Simon. Por outro lado, aproveitei para arrumar a casa e, com a preciosa parceria do editor Bruno Vouzella, criamos um canal no youtube (A descoberta das Américas – Julio Adrião) onde disponibilizamos grande parte do acervo áudio visual desse espetáculo desde sua criação, em 2005, além de inúmeras entrevistas e registros do cotidiano das apresentações, uma coisa que me deixou muito aliviado, pois era um material que já não me pertencia e proporcionar o acesso a ele era algo que eu estava adiando por falta de tempo. Fora isso, produzi dois trabalhos áudio visuais em companhia da diretora de fotografia Thais Grechi, com quem criei a Nossos Filmes e confesso que me senti mordido por esse caminho. Os dois trabalhos estão disponíveis nos sites que financiaram suas realizações. “Qual a razão de tudo isso, eu sempre penso” no site bossa criativa, da FUNARTE e “Restará sempre muito o que fazer”, um documentário curta metragem afetivo, no site da Fundação Cultural Ormeo Junqueira Botelho, da Energisa. Outras realizações da Nossos Filmes estão em nosso pensamento, sem pressa.

Um Don Quixote numa pegada bem brasileira, talvez, ou um monólogo sobre o episódio de Canudos?

A experiência com o Tryo Teatro Banda, cujo repertório de obras, a partir de temas e personagens históricos, conheci nesses últimos 10 anos, desde quando nos cruzamos no Festival de teatro Latino Americano CASA, em Londres, onde assisti ao espetáculo Pedro de Valdivia e a atual experiência de direção do Fico, me deixaram com coceira para fazer um novo trabalho solo nessa linha. Don Quixote foi um longo namoro que tive, antes mesmo de fazer A descoberta das Américas, mas acabamos terminando antes do casamento. Tenho pensado muito o que poderia ser esse novo trabalho, onde gostaria de fazer o que ainda não fiz, cantar, dançar e, quem sabe, falar um pouco menos.

Furio Lonza é um escritor, dramaturgo e jornalista ítalo-brasileiro.