Se fôssemos escolher uma imagem icônica para ilustrar os últimos dozes meses, com certeza seria Cassandra manipulando um baralho viciado de cartas marcadas. De qualquer maneira, ser profeta no Brasil de hoje não requer nem prática nem habilidade nem bola de cristal nem consulta aos oráculos. Basta conhecer um pouco de História. Por curiosidade, fomos olhar o editorial de um ano atrás, de abril de 2020. O que encontramos é de estarrecer.

Há doze meses, já chamávamos o presidente da república de beócio genocida inimigo da arte, da Ciência e de toda a Nação, um supremacista branco que promovia lives com ministros e assessores regadas a generosos copos de leite e era garoto propaganda de medicamentos proibidos pela OMS; sondava a ex-atriz Regina Duarte para substituir Roberto Alvim, que tinha acabado de fazer um discurso de cunho nazista baseado em trechos das falas de Goebbels e foi exonerado; esvaziou a Funarte; colocou Sérgio Camargo como presidente da Fundação Palmares, um racista que, entre outras barbaridades, repudia Zumbi, o símbolo do movimento negro; o Rio de Janeiro elegeu um prefeito que aboliu por decreto todos os editais de financiamento para obras de teatro e ainda deu calote no anterior, elaborado por Eduardo Paes.

Por fim, o coronavírus (que estava apenas em seu segundo mês de Brasil), e que fechou todas as salas de espetáculo, situação que perdura até hoje.

Alguns trechos:

 

Jamais poderíamos imaginar que o Brasil viveria uma situação pior que nos tempos onde o estado de direito foi abolido do nosso cotidiano por decreto.

 

Na verdade, a classe de teatro está vivendo sob um AI-5 camuflado que mantém sob rédea curta todas as instituições republicanas, sem contar com o emburrecimento paulatino que transformou 1/3 da população em autênticas máquinas de ódio nazifascistas e as igrejas evangélicas que conseguiram o inimaginável: associar-se às milícias e ao poder mais inescrupuloso em nome de Deus.

 

Há um ano, o jornal inglês The Economist já tinha batizado o nosso presidente com a alcunha de BolsoNero, piada que ele com toda certeza, por ser ignorante funcional, não entenderia se soubesse ler.

O mais impressionante é que, com apenas poucas modificações, nosso editorial de abril do ano passado continua atualíssimo. Com muitas agravantes, a coisa está bem pior, é verdade, mas o básico é o mesmo: ausência de controle federal da pandemia, o negacionismo científico como mote, logística inexistente, falta de uma estrutura adequada nos hospitais, negligência em relação à reposição de oxigênio e insumos para intubação e a glorificação da cloroquina, um medicamento que não só não tem efeito comprovado contra a covid como pode criar no paciente sequelas para o resto da vida.

Em abril de 2020, a pandemia havia ceifado 2.888 vidas. Hoje, um ano depois, temos mais de 300 mil mortes e acumulamos quatro ministros da saúde, o penúltimo alinhado ao genocídio e o atual não será nenhuma surpresa positiva.

Estes doze meses só não foram completamente perdidos porque os artistas migraram das salas de espetáculo fechadas para a internet, criando uma arte anfíbia entre o vídeo e o teatro. Praticamente em consequência disso, surgiu a Lei Aldir Blanc, não por iniciativa do governo, mas pelas entidades de classe. Ela foi sancionada e aprovada pelo Congresso aos 45 minutos do segundo tempo do ano passado e os frutos já podem ser sentidos tanto em termos de qualidade quanto numéricos. Num dia específico de março passado, por exemplo, os aficionados de teatro puderam escolher entre 90 novos espetáculos online disponibilizados em nosso site.

Só para não fugir à tradição e criar falsas expectativas, nem todos esses projetos foram pagos ainda. Aguardam os trâmites burocráticos chegarem aos finalmente. Isso, também não mudou.

Equipe redatora de serviços de programação e de artigos sobre teatro.