Como este site já havia premeditado no Editorial de setembro, a Lei Aldir Blanc traria muita dor de cabeça aos que precisam do auxílio. Repetimos um trecho:

“Apesar de já assinada e sancionada pelo governo, a Lei Aldir Blanc ainda tem um longo trajeto para que chegue até o bolso dos artistas de teatro. E, quando chegar, ainda teremos que assimilar as regras para quem ela será destinada.

Ao que tudo indica, haverá um corpo de jurados que avaliará quem tem e quem não tem direito. Quais as prioridades? Que tipo de escala de valores será criada para resolver esse assunto? Quais requisitos serão impostos? Que protocolo será instaurado?”

Não deu outra: depois de liberado pelo Ministério da Fazenda, o montante foi (teoricamente) distribuído para Estados e Municípios, mas em muitas localidades do Brasil a verba ou ainda não chegou ou está parada, criando limo, enquanto os alcaides de plantão tergiversam sobre o sexo dos anjos.

O ano de 2021 começa com a expectativa da vacinação em massa contra a Covid, mas infelizmente não há vacina contra o superburocratização, a inércia, a incompetência, o maucaratismo e a falta de diálogo entre o Estado e seus municípios.

Segundo informações da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro, o número total de habilitados e inabilitados para recebimento da renda emergencial foi modificado por decisão do governo federal. Em Ofício Nº 218/2020/SECDEC/SECULT, encaminhado pela Secretaria Especial de Cultura (vinculada ao Ministério do Turismo) à SECEC/RJ, foi comunicada a “identificação de inconsistências no cruzamento de dados na consulta de alguns CPFs que estariam inelegíveis para o recebimento do auxílio emergencial”.

O documento solicitou reprocessamento da consulta, o que gerou uma lista de 342 benefícios habilitados indevidamente pelo Dataprev ao recebimento da Renda Emergencial no estado do Rio de Janeiro. O referido ofício acrescentou que, caso o pagamento já tivesse sido realizado, fossem tomadas “as devidas providências para a restituição dos recursos”.

O erro sistêmico do Dataprev ocorreu em todos os estados do Brasil.

No caso do Rio de Janeiro, foi gerada uma nova listagem de habilitados a receber a renda emergencial, totalizando 1.699 benefícios, inclusive 23 mães monoparentais que receberão duas cotas.

O novo processamento de dados do Dataprev atrasou parcialmente o repasse dos pagamentos, previstos na Resolução SECEC nº 125/2020, para que fosse possível garantir que nenhum benefício fosse pago indevidamente.

A Secretaria informava ainda que, até alguns dias atrás, dos 1.699 trabalhadores aptos a receber a renda emergencial, o status acerca dos depósitos de pagamento estava assim: 1.145 benefícios já tinham sido efetuados e 35 benefícios ainda não tinham informado os dados bancários. Afirmava ainda que os benefícios em processamento e aqueles trabalhadores e trabalhadoras da cultura que haviam enviado as contas bancárias corretamente teriam os pagamentos realizados em breve.

Mas alertava: aqueles que não informarem as contas não poderão receber o benefício, tampouco os nomes no qual houve erro no processamento de dados da Dataprev/Governo Federal.

A Secretaria de Estado de Cultura buscou o diálogo junto aos órgãos federais sobre a revisão do processamento de dados e lamentava pelo ocorrido, adiantando que não era possível homologar o acesso ao auxílio sem a validação da DataPrev, sob pena de devolução do recurso por parte da pessoa que recebeu indevidamente e aplicações penais previstas em lei.

O seja, começaram os erros e, das centenas de milhares de trabalhadores da cultura espalhados pelo Estado, apenas 1.699 estariam aptos a receber o auxílio até então. Uma pergunta: por que cargas d’água os 35 não teriam informado seus dados bancários? Foi realmente isso que ocorreu?

Como sempre acontece, os que não tinham direito ao auxílio da Lei Aldir Blanc embolsaram antes dos que estariam aptos a receber.

A comédia dos erros, a exemplo do que ocorreu com o auxílio emergencial geral (caso dos militares, funcionários públicos e moradores da Barra da Tijuca que o receberam ilegalmente), se repete mais uma vez, sem que autoridade alguma consiga resolver o imbróglio e, para dizer a verdade, nem vontade política tem. Aliás, nem os políticos, pois o prefeito está preso e o governador no meio de um processo de impeachment. A Lei Aldir Blanc no Rio de Janeiro será resolvida (ou não) por interinos.

Além de todo esse caos, ainda há o agravante de que a Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro tem contrato com o Banco Bradesco que exige a abertura de contas no banco para recolhimento de pagamentos, o que faz com que o beneficiário ainda corra o risco de não conseguir abrir a conta no banco e apresentar o extrato exigido pela secretaria em tempo, até hoje, dia 28.12.2020.

O que dificulta ainda mais tudo isso é que o problema não recebeu a devida atenção da mídia impressa e eletrônica, ao contrário do auxílio emergencial e do crédito financeiro a comerciantes e empresários. Sem que esse impasse seja largamente denunciado em detalhes na TV, ninguém fica sabendo, escancarando ainda mais a pouca importância que o jornalismo nacional dá à cultura e às artes em geral.

 

Muito barulho por nada

A situação de Minas Gerais, por exemplo, estava um verdadeiro caos no fim de 2020. Em reunião do Fórum Estadual de Cultura, foram lançados vários alertas:

  1. A incidência dos 27.5% de imposto sobre os valores eram inconstitucionais, pois não poderiam ser cobrados em virtude de ser um auxílio emergencial;
  2. Havia um conflito entre os editais;
  3. Em muitos editais, havia mais procura que oferta;
  4. O Estado teria que contratar pareceristas, mas só foram chamados 95, 1/3 do necessário. Resultado: não deram conta de avaliar todos os processos;
  5. A Secretaria não possuía pessoal suficiente para efetuar os pagamentos dentro do prazo;
  6. Na ausência do pessoal da Secretaria, o Palácio das Artes introduziu itens novos nos editais, que não foram lidos a tempo de serem publicados. Em virtude do desmanche total que foi feito na estrutura do Palácio, o caos generalizou-se, prevalencendo a perspectiva de o auxílio poder não sair para ninguém.

E nem o secretário da Cultura nem o governador de Minas Gerais e muito menos os prefeitos dos municípios sabiam o que fazer.

 

Sonho de uma noite de verão

O sonho de conseguir um auxílio emergencial para os trabalhadores da classe artística através da Lei Aldir Blanc durante a pandemia transformou-se num pesadelo. Como se vê, não foram casos isolados, os problemas espalharam-se por todo o território nacional, como admite o próprio governo.

O Espírito Santo é outro estado da Federação que vivenciou todas essas atribuladas movimentações para resolver (ou ao menos debater e denunciar) o absurdo instalado.

Teatro Hoje contou com a correspondência do ator Peter Boos, um dos editores deste site, na Comissão de Monitoramento da Lei Aldir Blanc no Espírito Santo, da qual é membro eleito como representante da sociedade civil da região Centro-Norte do Estado. Ele colaborou com outros integrantes da comissão de outras regiões como Bruno Lima, Lara Toleto, Verônica Gomes, Fernanda Holz, João Paulo Verli, Carlos Ola e outros da elaboração de uma carta ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Defesa da Cidadania (CACC) do Ministério Público do ES (MPES), mostrando as incongruências na aplicação da Lei Aldir Blanc no território capixaba.

Entre elas, estão:

1) Falta de clareza nos prazos devido a orientações de procuradorias municipais de que o processo não fosse realizado via decreto, e sim apenas como lei após debate de projeto de lei na câmara de vereadores, o que fez com que houvesse adiamento das datas de início e fim das inscrições;

2) Divulgação falha apenas para círculos próximos do cadastro da lei no município, com vistas a evitar penalidades de legislação eleitoral, o que ocasionou pouco conhecimento sobre o direito de acesso ao recurso de auxílio emergencial pelo agente cultural e os meios para obtê-lo;

3) Não implementação de comissões de monitoramento nos conselhos municipais de cultura, o que provocou um isolamento do setor público no debate sobre a implementação da lei no município e o não acompanhamento fiscalizatório para garantir a distribuição democrática dos recursos;

4) Falta de mobilização das prefeituras municipais para efetivar todo o mapeamento de agentes culturais em tempo hábil para garantir a conclusão do cadastro de todos os rascunhos de formulários preenchidos pelos agentes;

5) Falta de disponibilidade do servidor público da cultura para garantir a inclusão de todos os artistas e técnicos da cultura em sua região no cadastramento, facilitando a desburocratização e auxiliando a certificação de grupos existentes há mais de dois anos ainda sem documentação oficial;

6) O não estímulo às associações de moradores com atividade cultural para que fizessem o cadastro para obtenção do recurso emergencial da lei, de maneira a estimular a realização de mais projetos culturais e o desenvolvimento do setor de economia criativa na região;

7) O fechamento cedo dos prazos para cadastros, o que fez com que muitos agentes não pudessem participar da distribuição ampla para os coletivos e espaços culturais, como prevê o Inciso II da lei, e que a maior parte dos recursos deste inciso fosse transferida antecipadamente para o Inciso III, que prevê o lançamento de editais para concorrência de projetos, fazendo com que agentes culturais tenham tido que enfrentar dificuldades na livre concorrência de elaboração de projetos;

8) A realização de editais com métodos de inscrição complexos e burocratizados, que não facilitaram o acesso de agentes culturais sem expertise na elaboração de projetos.

Segundo

 

Segundo a comissão a “cultura não pode ser vista apenas como um valor material de consumo, e sim como um valor imaterial agregado pertencente ao todo da construção cultural de cada local, que merece participar da distribuição justa de recursos emergenciais e que devem estes ser vistos como aportes de investimento no futuro cognitivo e consciencial do país. Segundo a carta, apenas dessa maneira a cultura de cada região poderá ser efetivamente potencializada, como esperam os trabalhadores da cultura e toda a parcela da população que compreende a importância da expressão artística de um povo para o seu desenvolvimento econômico e social.”

A Comissão de Monitoramento da Lei Aldir Blanc no Espírito Santo, do Conselho Estadual de Cultura (CEC), Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo (SECULT-ES), solicita no documento ao MPES e ao CACC averiguação de incongruências no processo de implementação da Lei Aldir Blanc no Espírito Santo e orientações dos melhores encaminhamentos para auditorias nas esferas públicas responsáveis. Mais do trabalho da comissão pode ser visualizado em https://aldirblanc.es.blogspot.com/.

Não é mistério para ninguém que o Governo Federal não recebeu com simpatia a Lei Aldir Blanc e fez de tudo para descaracterizá-la, para em seguida implodí-la. O descaso e a negligência são gritantes em relação aos trabalhadores das artes no Brasil.

Pergunta valendo cinco pontos: você conhece algum país que extinguiu seu Ministério da Cultura e transformou-o numa Secretaria atrelada ao Ministério do Turismo?

Equipe redatora de serviços de programação e de artigos sobre teatro.