Antes da pandemia, eu e uma amiga (vamos chamar de Raquel) fomos assistir a Não sobre rouxinóis, um texto inédito (1938) do Tennessee Williams que foi encontrado depois de sua morte num baú ou no sótão de uma de suas mansões ou na casa de um ex-amante, algo assim. Uma curiosidade, no fim das contas. Tudo indicava que seria descartável. Mas o histórico era bom: seria sua estreia no teatro se tivesse ganhado um concurso. Como perdeu, nunca montou a peça, colocou o texto na gaveta, possivelmente ressentido & magoado, e tocou pra frente, engrenando uma carreira brilhante que se estendeu (com mais altos que baixos) até sua morte.

Com pretensões de crítica social, a peça toca, é forte, com cenas violentíssimas numa prisão do sul dos Estados Unidos. Desmandos, autoritarismo, torturas, greve de fome, reivindicações, assassinatos de presos comuns. Resumindo: não é uma curiosidade, muito menos descartável; poderia ter sido um caminho dramatúrgico que o autor achou melhor não dar continuidade; resolveu adentrar outras searas: a do conflito familiar, por exemplo, no que fez muito bem.

Saímos da sala devastados, em cacos. E, como eu havia previsto, sentamos num café na área de alimentação, embora eu preferisse alguma coisa menos clean ao ar livre, de onde poderíamos ver pessoas de verdade e não manequins embalsamados. Conversamos, trocamos ideias, divagamos. Houve consenso em relação aos aspectos positivos. A cenografia, por exemplo, era exuberante, os figurinos, a iluminação, mas, revisitando a estrutura da peça em termos técnicos, eu disse:

Faltou o ritual.

Que ritual?

O ritual dramatúrgico, respondi. Por exemplo: há cenas muito explícitas, onde o diretor se esqueceu de estilizar os movimentos.

Não entendo. O que você quer dizer com isso?

Quero dizer que a encenação peca por achar que a denúncia é o suficiente.

E não é?

Em termos de propósito, pode até ser. Como obra de arte, tem seus defeitos.

Raquel disse: Lá vem você de novo com essas análises estetizantes. A peça é boa porque emociona. E pronto!

Não é tão fácil assim!

É, sim. É só isso. Eu vou ao teatro para me emocionar. Você não se emocionou?

Claro, eu disse, mas, depois, mais frio, cabeça no lugar, a gente pode avaliar o todo com mais isenção.

O todo é a denúncia, ela decretou.

O todo é a denúncia + o estilo + o ritual. Não podemos simplesmente colocar tudo em termos de emoção. Afinal, em qualquer obra de arte, há mortes e sofrimento. Raramente não nos emocionamos, mas isso não quer dizer que o autor seguiu o caminho mais conveniente.

Como não verifiquei resultado algum nas minhas palavras, continuei:

Você sabe que existe uma certa predisposição na sociedade de hoje para que as pessoas se emocionem. O cinema sabe disso, o teatro, a literatura, os telejornais. É a indústria das emoções gratuitas. Qualquer frase babaca escrita no facebook por um pangaré emociona um espírito mais ingênuo. Eu, por exemplo, me emociono com os silêncios que a Rosi Campos coloca entre os diálogos; me emociono com o timing perfeito da Letícia Isnard quando seu personagem se descontrola; me emociono com o olhar infantil da Dira Paes; ficava pasmo com a profusão de sentimentos & cores & sutilezas que emanavam do rosto de Bibi Ferreira, mas não necessariamente numa cena melodramática.

Bufando, Raquel perguntou: De que ritual você está falando?

Do ritual preconizado por Artaud, por exemplo.

Jogando a toalha (não por fraqueza, mas por estar de saco cheio), ela decretou: Isso aconteceu mesmo: a peça é baseada em fatos reais.

E daí? O que eu tenho a ver com isso? Você acha que basta só porque aconteceu de verdade? É o suficiente para que o autor receba um salvo-conduto? Existem peças de teatro, romances e filmes baseados em fatos reais que são uma bela porcaria. É lícito a gente se emocionar com os fatos relatados, mas também é pertinente que possamos analisar a adequação do texto em relação à intenção primeira do autor. Só assim vamos reconhecer ou não a transcendência da obra de arte.

Não te entendo, ela disse, há problemas no texto?

Aparentemente, não: ele é certinho, bem escrito, com as marcações certas nos lugares corretos. Só estou dizendo que não devemos privilegiar em excesso a emoção em detrimento da estética. As pessoas, hoje, querem viver em Wonderland: rir muito, se emocionarem muito. São crianças brincando no parquinho da infância numa dissipação total; não querem ter compromissos com nada a não ser a própria felicidade.

Isso é ruim?

É.

Por quê?

Porque a arte virou uma coisa que serve apenas a necessidades somáticas. Nos animalizamos, Raquel. Impossível que você não veja isso.

Talvez você não aceite a mudança.

Que mudança?

É provável que a arte não seja mais essa coisa sublime que você acha.

E isso é bom?

Talvez. Toda dessacralização tem o seu mérito. E não deve ter acontecido por acaso. Sempre há uma causa na parada.

Emudeci. Não disse nem mais uma palavra. Era um enrosco que eu jamais imaginaria enfrentar na porra da minha vida. Não estava acompanhando o correr dos tempos. O mundo me atropelava. O velho espírito crítico entrava por labirintos obscuros. Causa? Que causa poderia haver para que a humanidade botasse no mesmo saco Tennessee Williams, stand up comedies, telenovelas e os pagodes que rimam coração com paixão? Devia aceitar. Ter bom senso. Acompanhar. Fazer pequenos ajustes. Reciclar-me. A felicidade tem seu preço. O romantismo terminou. A arte não é pra sempre. Ela tem períodos de conflito. Fases. Intervalos. Lacunas. Intermezzos.

O que responder? Era hora de me transformar enfim no homo ludicus? Rir muito, me emocionar muito, entregar-me de corpo & alma a obras de arte baseadas em fatos reais? Dissolver-me, amalgamar-me; a realidade me pegava pela retaguarda e me sodomizava. Existe apenas uma verdade, nada é relativo. Sofrer não é moderno. A felicidade vem em pequenos frascos. Devemos degustá-la (e abençoá-la).

Mas havia outra questão: se o estilo não importa (só a emoção), por que Arthur Miller, Plínio Marcos, Georg Büchner e Lillian Hellman escreveram sobre os mesmos temas universais cada qual a sua maneira? Não era justamente o estilo que os diferenciava um do outro? Tudo se resumiria a Gostei ou Não gostei? Me emocionou ou não me emocionou? Curti ou não curti?

Estaria toda uma legião de bisnetos do Marcel Duchamp instalando sub-repticiamente rodas de bicicleta nas casas de espetáculos, lojas de discos & livrarias, no sentido de dessacralizar o teatro, a música, o cinema e a poesia? Esses mimosos ready mades relativizariam a importância das obras de arte, quitando-lhes a porção sublime e adaptando-as aos novos tempos, massificando, democratizando & homogeneizando o produto para que pudesse ser consumido como sabão em pó, sem o menor ranço de elitismo? Como seria o desdobramento daquilo tudo? Um rapper recitando:

 

To be, or not to be, that is the question:

Whether ‘tis nobler in the mind to suffer

The slings and arrows of outrageous fortune,

Or to take arms against a sea of troubles

 

enquanto o outro, com o microfone enfiado no esôfago, responderia da outra ponta do palco

 

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Furio Lonza é um escritor, dramaturgo e jornalista ítalo-brasileiro.