Júlia Emília nasceu, cresceu e escolheu viver em São Luís do Maranhão em meio aos batuques e investigações que as exigências determinam. Tem formação diversificada em sistemas de conscientização corporal e dramaturgias do corpo e da cena, fundamentada nas raízes culturais, mas mantém o foco nas normas cultas.

Publicou artigos sobre antropologia cênica e foi selecionada pela FAPEMA (2015), publicando Vivendo Teatrodança, com lançamento performático. Antes, premiada pela FUNC (2006), lançou O Baile das Lavandeiras (FUNC, 2006) e Meninos em terras impuras, em formato digital (Livros Ilimitados, 2014).

Seu texto Quitéria & Inês (agora publicado em livro) ganhou o primeiro lugar no Edital Prêmio Literário, SECMA (2018) e foi lançado simultaneamente à montagem da peça.

Quitéria & Inês encerra a trilogia onde estão incluídas as peças Meninilha e Ilhadas, (segundo a autora) no exercício de uma linguagem com a qual mulheres que são artistas escrevem sua própria história, sistematizam suas técnicas e análises, preservam sua memória e constroem crítica que encarna fatos reais em reinvenções dramatúrgicas, com fontes e documentos, apresentada na dramaturgia reconhecida como teatro do corpo, quando o ser humano usa sua presença física e mental em situação organizada de representação e diferenciada dos usos na vida cotidiana.

Embora vivendo de épocas diferentes na história do Brasil, as duas personagens dialogam em cena, transcendendo o tempo e o espaço. Dona Quitéria Francisca Sebastiana, rica senhora de engenho na ribeira do rio Mearim, aprisionada em 1784 pelo marido e o cunhado para se apropriarem de seus bens, se constitui no arquétipo da dolorosa semelhança entre os encarceramentos forçados do século XVIII e os acontecimentos do regime ditatorial brasileiro, horror presente nas vozes sobreviventes das mulheres xingadas, seviciadas, estupradas, molestadas e abusadas nos calabouços da repressão.

Ainda segundo o depoimento de Júlia Emília, a transversalidade entre territórios geográficos e a escolha de figuras históricas equidistantes assume múltiplas linguagens com a presença de Inês Etienne Romeu, a última presa política libertada e única sobrevivente da Casa da Morte, com a Lei da Anistia, promulgada em 28 de agosto de 1979, lhe possibilitando denunciar e esclarecer os crimes acontecidos.

A vergonhosa prevalência que extermina o universo mítico do feminismo das narradoras Quitéria e Inês, sentimentos femininos destroçados que não se apresentam como sofredoras resignadas, representam as condições do delicado tecido da consciência social, sem conotação de gênero isolado, inseridas nas culturas do mundo, experimentando a relatividade do bem e do mal e preservando sua independência com qualidades compassivas. O ato violento desmedido alinhava numa única condição de existência o espancamento doméstico sequenciado, o encarceramento para manutenção de valores morais, a tortura que a ideologia manipula com disfarce político.

 

Quitéria & Inês, de Júlia Emília, 77 páginas, Quintal Edições/ SECMA, 2019.