Setembro. Primavera de 2019. Um apocalíptico ou pós-apocalíptico Rio de Janeiro, Brasil. O “novo” governo brasileiro já deu o ar de sua graça. Há quem ainda duvide que não haverá desgraça, que temos que acreditar e confiar…, entretanto, desconfio que desgraçadamente o mal já se incorporou de forma banal ao dia a dia das pessoas. Quanto à história de acreditar e confiar aposto mais na fé cênica e na poderosa obsessão artística como resistência para que vozes poderosas e dissonantes possam ser ouvidas. Ainda bem que temos Shakespeare, Brecht, Vianinha, Molière, Suassuna, Dario Fo, Bond, Plínio Marcos, Tchekov, Jarry e milhares de outros como esse tal de Matéi Visniec. Mas quem é esse Visniec? Trata-se de um romeno naturalizado francês que vive e trabalha na França há 28 anos, desde que lá se asilou ao fugir da ditadura de Nicolae Ceausescu.

Que endemoniado esse Matéi! Constrói fábulas em que a política foge do discurso dogmático para se encontrar com a comédia absurda e cáustica como ele próprio aponta: “Imaginem uma sala com 600 pessoas, 1.000 pessoas e todos começam a rir ao mesmo tempo de alguma coisa que deve ser denunciada. Isso sempre trará alguma consequência”.

Considerado por muitos como “o novo Ionesco”, por dar continuidade ao gênero do teatro do absurdo, suas peças têm sido traduzidas e montadas em mais de vinte países. No Brasil, já estiveram em cartaz: A História do Comunismo Contada aos Doentes Mentais, dirigida por Antônio Abujamra; O rei, o rato e o bufão do rei montada, por Gilberto Gawronski; O Último Godot, dirigida por Márcio Meirelles; Um trabalhinho para velhos palhaços, encenada por André Paes Leme, entre outras.

Em 2016, recebeu o Prêmio Jean Monnet de Literatura Europeia pelo romance O Negociante de Inícios de Romance, onde o autor, segundo João Cezar de Castro Rocha no prefácio da edição portuguesa do livro, inventa um lugar próprio tanto para seus personagens quanto para as situações únicas que estruturam seus relatos através de um “propósito-manifesto”: o uso das palavras e sua arte combinatória. É como o próprio Matéi explica: “O homem contemporâneo, mutante genérico da sociedade de consumo, é mais do que obcecado pelos inícios, ele tem fome de inícios. Nada de ontológico ou metafísico na sua corrida aos inícios, tão só uma fuga às responsabilidades, uma evasão da implicação profunda, um prazer de surfar à superfície da vida. A sociedade pressiona o botão fast foward cada vez mais, recusando enfrentar as dificuldades da iniciação gradual. Temos filhos, mas já não temos paciência para educá-los. Compramos coisas das quais nos enfastiamos logo. Provocamos revoluções, mas não temos mais a energia de construir sociedades justas e duradouras nas ruínas das emoções iniciais”.

Para Visniec, o ser humano busca com o teatro uma imagem de si mesmo, uma explicação para os seus problemas, para as suas contradições.

O autor diz reconhecer a qualidade do texto literário de suas peças, mas destaca o poder amplificado da dramaturgia no momento em que os artistas e o público se encontram no teatro. “Um espetáculo pode criar uma comoção tão forte que se transforme em agitação social, em tomada de consciência, em desejo de atuar coletivamente. É por isso que, nos regimes totalitários, o poder tem mais medo do teatro do que de um romance ou de um livro de poesia”.

Matéi tem uma forte ligação com a tradição literária moderna e admite seu fascínio pelo dadaísmo, pelo surrealismo, pelo realismo mágico e pela literatura fantástica. E a sua síntese sobre todas essas influências é absolutamente original.

 

UM POÉTICO FIM DO MUNDO

A postura política como artista é autêntica sem abrir possibilidade para nenhum tipo de concessão: “Para resistir àquilo que chamo de lavagem cerebral, feita pela ideologia, pela religião, pela sociedade de consumo, pela propaganda de consumo, por tantas formas de pressão, a insolência é necessária, e é um belo presente que se dá a Humanidade”.

Em Paparazzi ou a Crônica de um Amanhecer Abortado, Matéi Visniec imagina uma situação limite: o que poderia acontecer com as pessoas caso estejam vivendo o fim do mundo? Continuariam com a rotina de seus cotidianos? Retirariam suas máscaras mostrando suas verdadeiras naturezas (mesquinhas ou generosas)? Imprimindo um ritmo cinematográfico ao texto, o autor aborda o fim do mundo de forma surpreendente e poética sem cair no discurso pedagógico. As personagens, ou melhor, as “pessoas” perambulam perdidas num mundo em que o pensamento não existe mais, se entrecruzam, ao longo das horas no decorrer de uma noite sem fim que culmina no caos de um dia que nunca amanhece.

Com O Espectador Condenado à Morte, Matéi cria uma comédia impetuosa de humor negro que satiriza o sistema judiciário e os julgamentos arbitrários da sociedade moderna. Personagens em situações incoerentes e agindo de forma absurda desfilam pelo palco. O texto foi escrito em 1985 ainda na ditadura romena de Ceaucescu e se passa na sala de um tribunal. Um tribunal implacável, que não leva em conta a inocência de um suposto acusado, atribuindo ao indiciado faltas e erros que transformariam qualquer pessoa inocente em réu. O inusitado reside em colocar em julgamento uma pessoa que faz parte do público: o espectador é condenado pelo tribunal de um novo gênero teatral, pois permanece imóvel em relação às propostas do diretor, dos atores e, em última análise, do autor. Na sala reina um desconforto, pois o acusado é um mau espectador! Juiz, procurador, defensor, escrivão, cada um tem o seu ponto de vista. E as testemunhas são os funcionários do teatro que são arrolados para dar o seu depoimento: o bilheteiro, a camareira, a garçonete do bar, o diretor, o escritor… É teatro dentro do teatro. A quarta parede é irreversivelmente bombardeada: realidade e ficção se misturam.  Uma comédia impetuosa de humor negro que satiriza o sistema judiciário e os julgamentos arbitrários da sociedade moderna. Personagens em situações incoerentes e agindo de forma absurda desfilam pelo palco. Um texto híbrido que mistura gêneros e estilos: pode se encontrar o teatro absurdo de Ionesco, assim como o surrealismo de Kafka e o existencialismo de Camus em várias passagens da obra. Matéi Vişniec nos transporta com sua prodigiosa imaginação para um universo mordaz e derrisório podendo até confundir a plateia: será realidade ou ficção o que está acontecendo no palco?

 

UM DIÁLOGO ANACRÔNICO

Os textos muitas vezes são habitados por personagens históricos, como o diretor e ator de teatro russo Meyerhold (Ricardo III está cancelada), o escritor e filósofo romeno Emil Cioran (Os desvãos Cioran ou Mansarda em Paris com vista para a morte), Samuel Beckett que acaba por encontrar o até então desconhecido Godot (O último Godot) e o mais que célebre Anton Tchékov (A máquina Tchékov).  Como ele explica: “Escrevi sobre Tchékov porque, para mim, ele é o pai do teatro do absurdo. Sobre Meyerhold porque ele encarnou a resistência ao governo de Stalin, quando o poder totalitário estava em seu apogeu. E sobre Cioran porque o considero o último dos filósofos modernos europeus que não venderam a alma à mídia e à mundanidade”.

Em A máquina Tchékov, Visniec demonstra a sua enorme admiração pelo autor russo: segundo ele, a palavra tchekoviana é uma máquina, ou melhor, uma sala de máquinas onde se consegue revelar o que se passa de mais íntimo dentro do ser humano.  Chega a escrever uma carta para Tchékov: “Você morreu antes da revolução de 1905, antes da 1ª Guerra Mundial e da Revolução Bolchevique terem agitado a vida de todos os escritores e artistas russos… Que sorte não ter sido obrigado a compactuar com o diabo, com a literatura realista-socialista, com Stalin e os inumeráveis horrores do século XXI! Você se retirou dignamente, exatamente antes que a literatura de seu país fosse tragada pelo delírio do culto à personalidade e pela propaganda”.

É uma obra teatral que tem como característica a escrita de uma palavra inconclusa, fragmentada, poética, verdadeiros quebra-cabeças, ou melhor, caleidoscópios, onde a conclusão não existe. A palavra sugerida, as cenas fragmentadas, o texto decomposto e as personagens recorrentes que por vezes reaparecem obsessivamente em textos variados constroem uma identidade onde a pluralidade deve ser mantida. E esse caleidoscópio conta histórias que falam do homem nos dias atuais e denunciam todos os tipos de autoritarismo, apontando também as contradições das democracias ocidentais: “Comer mais, comprar mais, descartar mais, encher a lixeira, poluir, transformar o oceano em uma lixeira… É como se estivéssemos em um carro, indo em direção a um muro, e de repente, o pai diz: – Escute, meu filho, pegue a chave do carro, pegue na direção, que agora é a sua vez de dirigir. Mas o acelerador está travado, os freios estão travados e o carro vai a 200km/h em direção ao muro”. Entrar em contato com sua obra significa empreender uma caminhada por entre percursos labirínticos de um autor insensato, desvairado e genial como podemos atestar nesse curto diálogo que ele escreveu por ocasião da edição de suas peças aqui no Brasil.

CIORAN: Ei, o que está fazendo aí? Como entrou na minha casa? E por que instalou esse telescópio?

PAPARAZZO 1: Psst! Não grite assim tão alto. Eu me permiti entrar porque, você sabe, da sua janela dá pra ver perfeitamente o que acontece no edifício em frente, no quarto daquele autor insolente…

CIORAN: Você está espionando Matéi Visniec? Ele já foi muito espionado no tempo dos comunistas.

PAPARAZZO 1: Sim, mas agora é diferente, vou escrever um grande artigo sobre ele para um jornal brasileiro. É para o seu bem. Estou vigiando desde cedo.

CIORAN: E o que ele anda fazendo?

PAPARAZZO 1: Você não vai acreditar. Ele está escrevendo, mas, ao mesmo tempo, faz amor com uma mulher que tem uma faca cravada no olho esquerdo.

CIORAN: Ah, eu também quero ver. Deixe-me olhar um minutinho…

PAPARAZZO 1: Espere, tem fila. Antes tem três palhaços velhos, um diretor de prisão que achava que “A cantora careca” era o codinome da operação de desembarque de americanos nos Balcãs e um saxofonista que tem uma amiga em Frankfurt e que crê na reencarnação. Instale-se aí depois deles, sr. Cioran, e espere sua vez.

Artista de teatro, professora e pesquisadora.