Muitos que leem devem conhecer Carlo Goldoni pelo nome. Talvez poucos saibam que foi um dos primeiros autores na Itália a fazer, de sua arte, uma profissão. Após um bem-sucedido início amador, o veneziano decidiu abraçar o ofício, largou a advocacia e, aos 40 anos, regressou à cidade natal para honrar contrato de dramaturgo com Girolamo Medebach, dono de uma companhia assentada no Teatro Sant’Angelo.

Em 1750, sua segunda temporada no local, prometeu ao público dezesseis comédias inéditas e cumpriu; naquela década, lançou outras trinta peças, passando a ocupar o cobiçado Teatro S. Luca, no Canal Grande; estreou suas novidades em Pisa, Florença, Roma; e se mudou para Paris para assumir a direção da Comédie Italienne (1761). Ao mesmo tempo, publicou quatro antologias de peças, cada uma com cerca de dez volumes, de modo que seu nome e obra circularam amplamente nas décadas seguintes. Seus textos foram encenados, traduzidos e plagiados na Europa inteira. “As versões em francês, inglês e alemão destas comédias fazem crer que fiz um trabalho assaz tolerável”, remata na carta aos leitores que fecha o volume X da segunda destas antologias (Florença, 1755).

Ao lançar-se no mercado – é o caso de assim descrever o gesto atrevido de um autor iniciante que desafia o público com tal ritmo de estreias –, Goldoni contou com o caráter funambulesco dos comediantes com que convivia e trabalhava e que costumava elogiar pela “admirável prerrogativa de improvisar”. E contou com o “mudado favor dos espectadores, que escutam com gosto as partes sérias e curtem cada palavra” (Teatro cômico, II, 1081). Durante sua intensa carreira, por meio de ajustes progressivos, contribuiu para mudar a sensibilidade psicológica e poética da classe, sem jamais renegar a arte dos comediantes, pelo contrário, valorizou-a, pois este processo gradual de reforma do gosto coincidia com a fase de institucionalização do mercado teatral italiano. Ao seu nome, contudo, quiçá até na memória de vocês, leitores atuais, vem colada uma etiqueta de crítico radical, uma espécie de agente abolicionista da commedia dell’arte – definição que costuma enquadrar Goldoni em manuais de literatura. Foi ele mesmo que se projetou no papel, quando editou seu percurso de vida em uma “missão” que fizesse sentido para o público estrangeiro ao qual dirigiu seu último livro, Mémoires, um romance autobiográfico escrito em francês, aos 81 anos de idade.

No contexto bibliográfico atualizado pelas publicações em homenagem ao duplo centenário (bicentenário da morte em 1993 e tricentenário do nascimento em 2007) e preparando o lançamento da primeira antologia de peças de Carlo Goldoni no Brasil (Perspectiva, 2021), vale a pena ressaltar o esforço de extinguir qualquer incoerência entre a conclamada “reforma” do autor e sua adesão ao mundo e à arte dos comediantes. Seu projeto renovador se deu com os atores e não contra eles: se deu em benefício das companhias com as quais compartilhava salas e horas de ensaio, lucros na bilheteria e dívidas; se deu incorporando as habilidades dos comediantes em uma estrutura mais sólida que garantisse mais visibilidade a cada pessoa, sua vida cotidiana, suas relações de classe; se deu a favor das colegas atrizes que mereciam mostrar sua habilidade na construção de personagens complexas, dotadas de psicologia e não somente de atributos físicos. A “reforma” é um processo gradual que leva em conta as mudadas condições de recepção: a plateia, antes só ocasionalmente atraída por eventos espetaculares ao ar livre (no pátio da igreja, nas cortes dos palácios ou no chão da feira), começou a frequentar teatros fechados, apreciando falas discursivas e até mostrando desejo de relê-las.

 

A cumplicidade com as atrizes

Tanto que Goldoni dirigia, a um público de espectadores que seriam também leitores, antologias de peças como se fossem romances. Certo otimismo cultural, na Veneza republicana da segunda metade do século XVIII, preenchia as bibliotecas patrícias de textos recém-publicados e lotava as salas onde se apresentassem companhias novas e propostas inovadoras, não só no âmbito da comédia, como da tragédia e do melodrama (Ferrone, 2011, p. 10-15).  É o século em que mulheres tomam posse dos seus negócios e corpos – e das cenas. Não banalmente, passa pelas atrizes a expressão de otimística cumplicidade de Goldoni com sua época: a vemos nos textos redigidos para ocasião da estreia da peça ou da abertura da temporada e publicados sob o título genérico de “O autor, aos que leem” nas edições curadas e publicadas pelo autor ao longo da década de 1750, a coincidir com o exercício de sua nova profissão de dramaturgo. Os textos eram ditos no proscênio, antes de começar a peça, pela atriz predileta do momento; são saudações à distinta plateia, visando fidelizá-la para enfrentar a concorrência de um mercado teatral competitivo, dominado pelo gosto feérico e pela secular hegemonia do melodrama. De modo que não surpreende certo tom peremptório, no estilo do manifesto, que anima a escrita.

Goldoni enceta seu lance inovador, ousadamente, no próprio enredo de Il teatro comico, peça de abertura da temporada de 1750 no Teatro Sant’Angelo. Nela, atores da companhia interpretam a si mesmos (com nomes de fantasia) enquanto ensaiam o terceiro ato da nova peça do Poeta, alter ego do próprio Goldoni. Performando sua presença real em cena, cada qual defende seus hábitos e faz valer as suas habilidades, ora estrelando ora adaptando-se, o tempo todo disputando sobre método – é melhor usar a máscara ou marcar a partitura psicológica? Deve-se decorar a deixa ou improvisar? Há de haver música no meio da comédia ou não? Alguém se diz apavorado (Toninho, I,4: “Um pobre comediante, que fez os seus estudos conforme a Arte, e que se acostumou a falar de improviso, bem ou mal, o que lhe passa pela cabeça, tendo necessidade de estudar e de ter que pronunciar o texto premeditado, se ele tiver alguma reputação, é preciso que pense, é preciso que se canse de tanto estudar e que trema a cada vez […] receando não sabê-la de cor tanto quanto necessário ou não conseguir sustentar a personagem como é necessário); alguém se diz, pelo contrário, bem mais confortável quando dispõe de falas escritas e decoradas (Plácida, II,1: “Na maioria das vezes fazemos comédias de caráter, premeditadas, mas quando acontece de falarmos improvisando, utilizamos o estilo familiar e falamos fácil, para não perder credibilidade”). É o fazer-se do teatro que está posto em cena, ou melhor exposto aos olhos do espectador, com inegável amor pelo ofício.

Especialmente, são expostas as atrizes as quais, pela primeira vez na história do teatro ocidental, pisam em cena no papel de si mesmas. Admitidas nos palcos menos de um século antes na Itália e tão somente para cantar e dançar, durante o Carnaval, já no século XVIII as atrizes brilhavam; algumas, como Isabella Andreini, alcançaram papel de capocomica e até mesmo de dramaturga. Contudo, em sua exibição no palco ainda se percebia algo de impudico, assimilável ao exercício da prostituição a que muitas eram de fato obrigadas, segundo sua condição, quer para fornecer o guarda-roupa, quer para integrar o escasso salário. Será preciso esperar mais um século para que atrizes encarem a opinião pública e se emancipem de tais estigmas, como Eleonora Duse que se dava licença de interpretar Mirandolina de meia-calça de seda.

 

Literatura & teatro

Na versão que lemos dos prefácios, cada proposta de inovação dramatúrgica, entremeada por reiterados apelos ao “leitor caríssimo”, é justificada por Goldoni com detalhes de sua criação e modos de encenação: motivações por vezes muito técnicas, que parecem estar interpelando um público de especialistas. Mesmo na versão publicada, estes materiais são apresentados em função do teatro: toda a poética do autor parece derivar de sua experiência prática como (digamos, com palavra anacronicamente aplicada) encenador. É um manual de playwriting, no qual Goldoni se dá a tarefa de superar a divergência entre literatura e espetáculo, trazendo os fatores constitutivos da cena para dentro da escrita; algo que nem os comediantes, embora muitas vezes autores de textos (como é o caso da citada Isabella Andreini e de Flaminio Scala, Silvio Fiorillo, Nicolò Barbieri) fizeram; nem evidentemente os literatos saberiam fazer.

Temos assim, na sequência dos prefácios, o registro de um processo artístico lento e gradual de “reforma” que Goldoni operou no teatro de sua época. A dramaturgia comporta as revoluções criativas que ocorrem em cena; nenhuma ideia preconcebida guia as decisões artísticas daquele advogado de honrada carreira, pronto a recomeçar do zero no palco, como aprendiz da arte, tomando para si aquela precária posição de autor/encenador. Tratava-se de emancipar a escrita cênica das práticas do improviso, passando a redigir falas articuladas para cada intérprete de modo a melhor aproveitar o talento individual em um efeito coral capaz de dar conta da polifonia do mundo real. Goldoni nomeia tal realidade de Mundo, no qual o Teatro se espelha e mede.

Tratava-se, ele entendeu, de subtrair o riso ao âmbito dos truques histriônicos, entregues às contingências e ao estro da noite, e construí-lo como efeito concertato, ou seja, acordado e previamente marcado.[1] “Eu não digo (explica nas Mémoires, I, 631) que fosse preciso exilar as máscaras nem espoliar a Itália das comédias improvisadas que são coisa honrada e maravilhosa destacando a argúcia de nossos atores entre todas as nações”. Mas, sim, “requalificar o riso, com ajuda de gestos e da inteligência do exato tempo cômico e do tom da voz, algo que não há como registrar na escrita; escrever de modo que aquele que lê consiga aproveitar da ocasião predisposta pelo autor ou improvisada com arte pelos atores, para mover o riso naquela contingência” (II, 523).

Nesta tríplice atividade de dramaturgo/encenador/teatrólogo, Goldoni lembra Bertolt Brecht que, ao par, escreveu peças a partir de seus desígnios teóricos e de sua paixão de espectador, acompanhando as invenções dramáticas próprias e alheias por reflexões críticas (nos Diários de trabalho) onde embasa sua teoria teatral em uma análise cotidiana das condições reais de produção, ou seja, das estruturas sociais nas quais a produção teatral é inserida. Editadas, as peças não ganham uma forma final autorizada pelo autor, mas, pelo contrário, a sobrevida necessária para que, mais adiante, sejam traduzidas e adaptadas a outros contextos (tanto que o próprio as republica em diversas versões, operando variantes). Nos volumes editados, as dedicatórias das peças são dirigidas com muito cuidado a potenciais mecenas ou divulgadores da obra para além do restrito público que as assiste, mirando abranger uma plateia de leitores que, gradualmente, de nacional se torna internacional.

Confirmando tal alcance e à prova do mais amplo favor do público, assim obtido, as sucessivas convocações ao autor para que abandonasse Veneza, antes para Roma e, finalmente, para Paris.

[1] A palavra deriva da terminologia dos gêneros líricos, onde descreve a articulação de todas as vozes e instrumentos na partitura do maestro.

Alessandra Vannucci, PhD, diretora e dramaturga, professora e Diretora de Extensão (ECO/UFRJ), pesquisadora (CNPq)