ENTREVISTA

 

Arlindo Lopes

 

A trajetória de Arlindo Lopes é típica de um artista dos tempos atuais: muito trabalho e algumas recompensas. Alternando-se entre teatro adulto, infantil e atuações na TV e cinema, ele ensaia o elenco para Ombela – A Origem das Chuvas, adaptação de um livro do escritor angolano Ondjaki, com estreia prevista para 31 de agosto, no Oi Futuro Flamengo, numa temporada até 20 de outubro.  Nesta entrevista, Arlindo reflete sobre as muitas virtudes e alguns vícios que ainda permeiam a área infantil e a enorme responsabilidade de educar e formar o público futuro através deste tipo de espetáculo.

 

Arlindo Lopes é ator, diretor e produtor.

 

Depois de Ensina-me a Viver, que ganhou todos os prêmios de 2007 e ficou em cartaz por seis anos, e de Cauby! Cauby!, você deu um tempo no teatro adulto, fez telenovelas e filmes e dedicou-se mais a produzir que a atuar. O que aconteceu? Decepção com a área ou foi circunstancial, um desvio de rota?

 

Realmente, vinha de uma temporada longa com o Ensina-me a Viver onde não existia espaço para fazer trabalhos, paralelamente, em outros veículos. A Glória Menezes até conseguia, mas ela é a Glória né, conseguia não gravar de quinta a domingo para fazer teatro, mas eu não tinha como abandonar um projeto que por tanto tempo idealizei e lutei pra fazer. Na época, tive que negar alguns convites, mas em 2013, quando nós paramos, veio a proposta para fazer um espetáculo infantil, O Jardim Secreto. Nunca esperei que uma peça para crianças me trouxesse outros trabalhos como ator, mas foi o que aconteceu. Esse trabalho puxou outro, que puxou mais outro e quando, em 2015, voltamos com o Ensina-me a Viver, percebi que meu desejo de fazer o personagem já tinha sido realizado, mesmo tudo sendo sempre incrível. Como ator, precisava de outros desafios. Aí o cinema se abriu com alguns convites e depois mais trabalhos na TV. Foi muito bom, fiz novos amigos, expandi minha visão para o audiovisual e estava mais maduro. Isso também me salvou de uma rasteira muito suja que Glória Menezes e eu passamos com o Ensina-me a Viver; uma decepção muito grande pra mim e pra ela que nos trouxe um medo de não poder acreditar mais nas pessoas. Ser passado para atrás no seu próprio projeto é uma tristeza. Essa sensação, felizmente, passou quando voltei ao teatro na turnê de As Aventuras do Menino Iogue pelo o interior de São Paulo. O teatro me trouxe de volta a confiança no outro.

 

Não se pode dizer que você seja um neófito no teatro infantil, pois já dirigiu As aventuras do Menino Iogue em 2015, que também colecionou uma série de prêmios. Com Ombela – A Origem das Chuvas, você volta para o teatro infanto-juvenil. O que te encantou neste texto de Ondjaki? Como foi o processo de construção do espetáculo, desde a escolha dos atores até a produção final?

 

Uma amiga e produtora, Joana D’Aguiar, me procurou depois que assistiu As Aventuras do Menino Iogue para fazer uma proposta de parceria onde ela produzisse e eu dirigisse um novo espetáculo infantil. Trouxe, então, esse livro do Ondjaki, me perguntou o que achava e, claro, adorei. Pensei que seria incrível, depois de falar sobre a Índia, trazer a África com poesia para as crianças. Esperamos quase três anos por um patrocínio, até que no ano passado fomos contemplados no edital Oi Futuro. O trabalho de fato começou em janeiro, busquei quem faria a adaptação, queria uma mulher negra para dialogar com a obra do Ondjaki e cheguei no nome da diretora e roteirista Mariana Jaspe que amou o convite e trouxe seu parceiro, Ricardo Gomes, para essa transposição de livro para peça. Convidei também a escritora Vilma Piedade para cuidar de toda nossa pesquisa, trazendo o conceito de africanidade para o projeto. Resolvemos então fazer audições para encontrarmos nosso elenco. Foi incrível poder ver e conhecer tantas pessoas talentosas. Claro que a decisão foi algo muito difícil para mim, que sou do signo de peixes com ascendente em peixes e lua em câncer. Eu queria aprovar todas as pessoas, mas não temos verba para isso e nem personagens. Nesse momento, junto com os nossos diretores musicais, Maria Clara Valle e Jonas Hocherman, estamos fechando as músicas que estão sendo escritas pelo o próprio Ondjaki. Os ensaios começam agora em julho. Temos uma equipe linda e digo com o maior orgulho que é formada por 16 mulheres e 8 homens. Eu amo trabalhar com as mulheres e todas que estão nesse projeto são incríveis!

 

Qual a história contada nesta peça e de que maneira ela contribui para abrir a cabeça do público infantil?

 

A história do livro é sobre uma deusa africana, uma menina, que sofre com seus sentimentos e, ao chorar, não entende para onde suas lágrimas vão. O pai de Ombela, também um deus, explica que é importante sentirmos todos as emoções, pois fazem parte da evolução, e não se deve reprimir esse sentimento. Ela também não sabe que suas lágrimas dão origem aos nossos mares e rios e as perguntas seguem na sua cabeça. Na nossa adaptação, Ombela é mais curiosa e inquieta e quando percebe que seu pai está diminuindo de tamanho por conta de sua tristeza, decide partir do Orum até o Ayé (céu e Terra em yoruba), no futuro, em outro tempo, com o intuito de buscar as respostas para tantas perguntas que afligem seu coração. Ela encontra no caminho muitas outras divindades africanas que trarão muitos ensinamentos como, por exemplo, praticar a empatia pelo próximo e respirar para controlar sua ansiedade. Junto com a sua inseparável amiga, uma rã, ela vai descobrir a importância desse fenômeno que se chama chuva e encontrará pelo caminho seres humanos que respeitam a nossa natureza e outros que são extremamente desrespeitosos para com o planeta. Queremos assim trazer a discussão para a atualidade e reforçar todos os valores apontados por Ondjaki, conscientizando de forma lúdica e realista todo o público, pois a preservação do nosso planeta é urgente.

 

Você se dá conta que o teatro infanto-juvenil tem uma responsabilidade extraordinária no universo das artes, pois forma o público futuro do teatro adulto? Além de entreter, quais princípios políticos (não necessariamente ideológicos), morais e éticos esta peça pode incutir no público mirim? 

 

Sim, totalmente! Eu tenho na memória algumas peças que assisti quando era criança e acho que foi isso que, em grande parte, me motivou a querer ser artista e recontar histórias para o público. Ombela – A Origem das Chuvas vai falar de amor, de respeito e da tradição de uma cultura que está no fundamento das nossas raízes, com poesia e emoção. Nosso país, é extremamente miscigenado e culturalmente essa mistura faz parte de cada um de nós. Não tem como ignorar as tradições. Se o teatro pode ser transformador para crianças e adultos, a gente tem que utilizar tudo isso para contar um pouco dessa nossa história. Ombela terá também muito humor, músicas originais, além da dança africana, que é muito potente. Queremos trazer uma conscientização para as crianças e para os pais de que o nosso planeta está ficando doente pela quantidade de lixo que produzimos e desrespeito com a natureza. A peça fala sobre rios que morrem atingidos com a lama tóxica, sobre os animais marinhos que morrem ao engolirem pedaços de plásticos nos oceanos ou quando ficam presos em redes de pesca abandonadas por barcos pesqueiros.

 

Dificilmente, o teatro infantil monta mais do que duas ou três peças boas por ano. A grande maioria contempla reciclagens de personagens da Disney e mesmo os clássicos de Esopo e Perrault são transformados em mensagens rasas de conteúdo, flertando mais com desenhos animados de TV do que propriamente com a arte teatral. Como o teu trabalho recente se situa diante desta terra arrasada de ideias e concepções dramatúrgicas?

 

Acredito que a potência do público infantil muitas vezes só é vista como algo mercadológico e não como formação cultural e intelectual. Os filmes da Disney têm o seu valor, mas quando vemos produções caça-níqueis querendo se aproveitar disso, sugando ao máximo o dinheiro das famílias e apresentando um resultado tosco, é triste demais. O teatro infantil é tão potente quanto o adulto. Quando fiz como ator O Jardim Secreto e, como diretor, As Aventuras do Menino Iogue, pude ver crianças e famílias se emocionando e vibrando com o que presenciaram, e eles sempre voltavam para rever, porque queriam sentir aquelas mesmas sensações. Muitas crianças passaram a praticar yoga depois de assistirem ao Menino Iogue e outras depois do Jardim Secreto quiseram correr pra casa para plantarem as sementes que recebiam da peça e criar os seus “jardins”. Para mim, não dá para ser diferente; quero continuar sempre buscando novas culturas e histórias para apresentar ao público e, da mesma forma que o teatro me salvou, quero poder, de alguma forma, ser instrumento para a transformação desse público.

 

Qual o diferencial de Ombela em relação a tudo o que você fez até agora no teatro e o que ela acrescenta à tua carreira como artista?

 

O que estou estudando para encenar o espetáculo já está me transformando e é muito diferente de tudo que já fiz. As mitologias, a mistura das raças e crenças dentro de nossa equipe também é extremamente importante. O contato com profissionais que nunca trabalhei é outro desafio ótimo. Desde as audições, estou na busca de fazer diferente de tudo que já vivi como ator. Um processo que seja acima de tudo respeitoso com todas e todos os envolvidos. A segunda etapa dessas audições trouxe a Vilma Piedade para ministrar uma palestra sobre cultura africana, a Gleide Cambria para dar um preparo de dança afro e a Soraya Ravenle para aquecê-las vocalmente junto com os nossos diretores musicais. Toda essa troca com um número já mais reduzido de pessoas foi muito inspiradora. Eu queria um encontro onde ninguém se sentisse testado, onde todo mundo pudesse se divertir, trocar e aprender. A dança, o canto, a mitologia e o teatro eram os condutores desse encontro junto com os profissionais excelentes que me ajudaram. Foi muito potente e emocionante. Saímos, todos, com a sensação de que, independente do resultado, o dia de trabalho nos enriqueceu. No final, uma das atrizes participantes nos disse: “Hoje, aqui, nós praticamos o Ubuntu, nós fomos Ubuntu”. Ubuntu é um termo africano que quer dizer “Sou o que sou pelo que nós somos”. Para mim, isso resume o motivo de seguir nesse ofício, apesar de todas as dificuldades. Quero, ainda, contar muitas outras histórias, seja como idealizador ou convidado, estando junto das pessoas, formando essa rede para poder crescer, acrescentar e transformar.

 

Algumas pessoas dizem que o teatro infantil deve também atrair os pais, pois, afinal, são eles que levam os filhos ao teatro e não querem se aborrecer ou enfrentar o tédio, mesmo porque tiveram que pagar três ou quatro ingressos que não ficam por menos de 140 reais no total. A tua peça contempla esse viés?

 

Totalmente. Quando penso no teatro infantil, quero que a família que acompanha aquela criança também se divirta e saia transformada. Algumas camadas da adaptação estão ali para dialogar com os pais mesmo. No dia a dia, são eles e elas que conduzem a educação dessas crianças. Por isso, precisam ser contemplados com um bom programa. O espetáculo tem que agradar o bebê de colo que visualmente e musicalmente pode ficar interessado, as crianças de todas as idades, adolescentes que são um público até mais difícil, por serem extremamente exigentes, e os adultos de uma forma geral. Se a peça chega e interessa a todos, aí é uma grande vitória.

 

Costuma-se comentar que teatro infantil é como livro escolar. A instituição de ensino decreta, os pais são obrigados a comprar e o aluno é obrigado a ler. No caso do teatro infantil, ficou estabelecido que é politicamente correto os pais levarem os filhos, que também não apitam nada, quem escolhe o que eles devem ver são os pais. O que você acha disso?

 

Se o pai ou a mãe não forem conscientes sobre qual conteúdo as crianças merecem assistir, isso pode ser perigoso. Hoje, temos famílias cada vez mais conscientes, mas muitas também não são e acabam levando naquelas peças que nada somam e que são programas chatos. O perigo disso é que teatro ruim é muito mais traumático do que um filme ruim, por exemplo. Sempre que assisto a um espetáculo ruim, penso que alguém que nunca esteve no teatro, ao ver aquilo, pode nunca mais voltar.

 

Não é segredo para ninguém que as salas de espetáculo estão ficando cada vez mais vazias por uma série de motivos. Se concorda, liste alguns deles. O que você acha que pode ser aprimorado no teatro para que ele volte a atrair público?

 

Sim, o teatro está cada vez mais vazio. Vivemos uma época de desmonte da cultura, pois os nossos atuais governantes elegem a educação e a cultura como inimigas do Estado. São homens e mulheres infelizes que não puderam ou não se interessaram estar próximos da cultura. Querem manter as pessoas na ignorância. Por isso, os editais diminuíram radicalmente e as chances de novas propostas inteligentes, que se preocupem com todas as categorias de público, ficam cada vez mais raras. Por outro lado, nós também precisamos aprimorar nossos projetos e seguir confiantes para que que encontremos meios de realizarmos essas produções. Sofremos um pouco mais no Rio de Janeiro e muitas vezes deixamos de sair de casa por medo da violência, que está cada vez maior. Os mesmos governantes, que escolhem a cultura como inimiga, abandonam a cidade. Era para o Rio ser potencialmente equilibrado com São Paulo e não é. Enquanto isso, nós artistas precisamos nos reinventar e repensar as formas de trazer o público de volta diante de tantas dificuldades. Grandes ideias, se bem executadas, fortalecem o nosso teatro e trazem a confiança do público. Pelo menos é o que eu acredito. Não vou parar nem um momento de inventar novos projetos e, demorando ou não, eles sairão do papel.