“Por que não vivemos?”

 

Por que não vivemos?Vamos ser sinceros: não existe outro autor que destile o tédio e a ociosidade da burguesia russa com tanta propriedade quanto Tchekhov. Os personagens se embebedam, comem muito, vagabundeiam, há os que procuram trabalho sem muita convicção, distribuem generosas doses de bílis pelo ambiente e todos ruminam sobre o sentido da existência. Nos intervalos, alfinetam-se mutuamente por razões que, na maior parte das vezes, nos escapam por entre os dedos.

Por outro lado, devido a motivos que ainda carecem de uma reflexão mais acurada, não há outro autor que sofra tanto com a liberdade que os diretores tomam na encenação de seus textos. Provavelmente, por ser considerado o precursor do modernismo, todo mundo se acha no direito de modernizá-lo ainda mais.

     Por que não vivemos? é baseado em Platonov (1878), uma obra inacabada da juventude do autor de quando ele tinha apenas 18 anos. Portanto, pode-se imaginar a festa que Márcio Abreu armou na sua concepção dramatúrgica.

Esta versão tem duas partes distintas: na primeira, vemos os personagens ainda se construindo; eles interagem segundo formas de ação libertas de quaisquer amarras; são fiapos de monólogos que (supõe-se) receberão (no andar da carruagem) algo parecido com um enredo que interligará tudo. Mas isso demora. Tchekhov não é fácil. Como o texto (segundo informações) foi reconstruído a partir de fragmentos encontrados em 1920 de onze cadernos manuscritos, com anotações feitas pelo autor em três épocas diferentes, há vários enigmas nessa pesquisa: faltava o início do primeiro ato e a peça nem mesmo tinha título, pois não havia capa. Por dedução (ou conveniência), foi batizada como Platonov, nome do personagem principal.

Na medida em que esse tédio de uma classe decadente e ociosa foi interpretado como indício precursor de mudanças sociais e de um estágio pré-revolucionário, o diretor entendeu que a porteira estava aberta a experiências sensoriais.

Em virtude disso, a primeira parte se parece com um happening de Julian Beck e Judith Malina em plena década de 70, um exercício com direito a raves bombásticas, repetições à exaustão de cenas hipoteticamente engraçadas e pantomimas de todo grau & calibre beirando a comédia pastelão, que culmina num show à la Beyonce, com farta distribuição de cervejas para o público numa bandalheira libidinosa de fartar a plateia. Muito riso, muita alegria, muito clown no salão. Uma orgia tropical que contrasta bastante com o tom sempre sóbrio dos diálogos de Tchekhov.

Para envolver o público de forma total, o diretor concebeu uma estrutura que abrange toda a sala de espetáculo: atores e atrizes se espalham pelas laterais e corredores, imiscuindo-se inclusive na plateia, o palco servindo apenas como núcleo central da ação; há vozes que vêm de todos os lados, com direito a torcicolos, pois flagrar de onde provêm às vezes se torna um empecilho árduo.

A partir de determinado ponto da trama, Platonov resolve rodar a baiana e se insurge em assédios nas três personagens femininas, esbanjando sua pretensa sensualidade, mas sempre advertindo que elas se darão mal, pois sua inconstância é latente. Apesar de seus discursos aparentemente lúcidos e instigantes, é um homem promíscuo: levanta teses reflexivas sobre a precariedade dos relacionamentos, coloca em xeque a relatividade da vida e da morte; e pergunta: Afinal, por que não vivemos?

Rola o intervalo, que vem em boa hora, tanto para a parcela mais progressista da plateia que pode digerir tudo que viu e ouviu, quanto para os mais conservadores, que podem se purgar dos excessos lisérgicos e retomem o fôlego para o que ainda virá.

A segunda parte volta para as estepes, numa pegada mais tosca e rude: o cenário é desconstruído, o palco retorna às suas origens, com o fundo mostrando a aridez real da situação. São projetados vídeos dos personagens em ação, ao mesmo tempo que uma infindável série de fade in e fade out focaliza apenas os rostos dos personagens ao vivo. Há uma brilhante interação entre eles e os fiapos de narrativa apenas esboçados na primeira parte agora (para os que gostam de um teatro mais clássico) têm uma sequência lógica e formal, mas que ninguém se iluda: o diretor não abriu mão de suas ousadias. Elas continuam em doses homeopáticas.

Para desmoralizar (ou parodiar) a clássica frase do autor em relação à presença de uma arma em cena (que ela teria que, em algum momento, disparar e matar alguém), Márcio Abreu foi cínico: bolou um expediente ao mesmo tempo genial e engraçado: no assassinato de Platonov, os atores dizem as rubricas: O revólver dispara, ele cai no chão, alguém corre, ouve-se um grito etc.. Resultado: as cenas somem nas brumas, os atores saem de seus personagens e não se ouve o tiro.

O elenco todo está afinado, com ligeira predominância de Camila Pitanga como Anna e principalmente de Rodrigo dos Santos no papel de Platonov. Seguro, dicção perfeita, senhor das ações, ele se sobressai tanto nos monólogos (que não são poucos) como na interação com os outros personagens. Sua voz é ouvida do fundo da plateia como trovões que ribombam das estepes russas. Cris Larin (perdoando-lhe alguns excessos bizarros) está bem, assim como Edson Rocha, Josi Lopes, Kauê Persona, Rodrigo Bolzan e Rodrigo Ferrarini.

 

Por que não vivemos?

CCBB – Centro Cultural Banco do Brasil, rua Primeiro de março, 66, Centro. De quarta a domingo, 20 h. Até 18 de agosto.

Furio Lonza é um escritor, dramaturgo e jornalista ítalo-brasileiro.