Já não se fazem mais atrizes como Ruth de Souza. Digna, altiva, dona do próprio nariz, tinha princípios éticos, profissionais e artísticos que botou em prática durante toda sua carreira, construída a ferro & fogo, com muito suor e dedicação.

Ainda menina, sentiu logo o preconceito contra os negros. Provavelmente sem saber, ruminava consigo mesma algo muito parecido com o monólogo do judeu Shylock em O Mercador de Veneza, de Shakespeare: “Como pode haver discriminação se a remela do branco é igual à do negro, as lágrimas são iguais, o sangue do negro é vermelho e do branco também?” E fechava sempre com as mesmas palavras: “Quero ser alguém”.

Ruth nasceu no Rio de Janeiro, bairro Engenho de Dentro, e foi criada numa fazendola em Porto Marinho, divisa do Rio com Minas Gerais. Estudou no Colégio Júlio de Castilhos, escola pública de Copacabana, e ficou interna três anos em um colégio de freiras, o Colégio Santa Margarida, na Tijuca.

O primeiro emprego foi de caixa na Casa dos Estudantes. Nesta época, já fazia parte do TEN – Teatro Experimental Negro. Sua estreia no teatro foi em Imperador Jones, de Eugene O´Neill, interpretando uma escrava, sob a direção de Abdias Nascimento, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Já que haviam conseguido a liberação gratuita da peça, pelo próprio autor, a segunda peça do TEN também foi de O`Neill: Todos os filhos de Deus têm asas, assim como a terceira: O moleque sonhador.

Ruth só teve crítica positiva na terceira peça: “Ruth está perfeita, fazendo seu personagem com muita habilidade, o que é peculiar a essa excelente atriz” e “Com um desempenho brilhante, Ruth de Souza é sempre figura marcante nos espetáculos que participa”.

Em 1947, Lúcio Cardoso escreveu uma peça especialmente para eles: O filho pródigo. Choveram elogios da crítica ao seu desempenho: “Extraordinária intérprete dramática”. Ela foi indicada para o prêmio de revelação de atriz, mas quem levou o prêmio foi Nicete Bruno, por A filha de Iório.

Seguiram-se três filmes: 1947 – Terra Violenta, de E. Bernoudy, Atlântica – 1º. trabalho no cinema, onde atuou ao lado de Cacilda Becker, Ziembinsky, Margarida Rey, Maria Della Costa, Jardel Filho; 1948 – Também somos irmãos, de José Carlos Burle – fazia a namorada do Grande Otelo e ainda em 1948 Falta alguém no manicômio, com Oscarito e Grande Otelo.

Nesse mesmo ano, a Fundação Rockfeller ofereceu bolsas de estudos para artistas negros e o Paschoal Carlos Magno indicou seu nome. Foi e estudou em Nova Iorque, Cleveland e Washington. Na Escola de Cleveland, fez o papel principal em Dark of the Moon, de Howard Dixon Richardson, no Teatro Kamuru House. Aprendeu tudo de teatro, desde a bilheteria, passando pelos bastidores e chegando ao palco.

Na sequência, Ruth foi convidada pela Cia. Cinematográfica Vera Cruz para fazer Terra é sempre Terra, de Tom Payne, em 1950, quando recebeu os Prêmios Saci e Governador do Estado; depois Ângela, do mesmo diretor, com mais dois prêmios: Associação de Críticos Cinematográficos do Rio de Janeiro e Associação de Críticos de São Paulo.

Não parou mais. Críticas elogiosas, convites, prêmios. Em 1951, fez o filme Sinhá Moça, de Tom Payne, e recebeu os Prêmios Saci, Índio e Governador do Estado, e disputou o prêmio de melhor atriz internacional com Katharine Hepburn e Lili Palmer (ganhou a Lili) no Festival de Veneza de 1954, aparecendo na tela somente 15 minutos.  A Eliane Lage era a protagonista e Ruth fazia uma escrava. O filme ganhou prêmio de direção.

A esta altura, sua carreira já era sólida o suficiente para engatar um filme atrás de outro, trabalhando sob a direção Abílio Pereira de Almeida, D.A. Hamza,  Rubens Biáfora, Flávio Rangel, César Mensolo e Walter Hugo Khoury.

Voltou ao teatro com Quarto de Despejo (direção de Amir Haddad), baseado no livro de Carolina Maria de Jesus, Réquiem para uma negra, de William Faulkner (com Fulvio Stefanini, Carlos Zara, Nídia Lícia) e A Cabana do Pai Tomás (1969) com a Companhia de Sérgio Cardoso e Nídia Lícia.

Para interpretar a personagem em Quarto de Despejo, Ruth fez laboratório no meio das ruas, vestida de mendiga e catando papéis na rua. Considerava este um dos mais importantes papéis de sua carreira, embora a peça não tenha atraído muita gente para o teatro.

Resumindo a conversa: em seus 70 anos de carreira, Ruth fez 30 peças de teatro, 30 filmes e 40 novelas, sempre (se é que isso é possível) humilde e altiva. Era uma perfeccionista em sua arte, estudou, aperfeiçoou-se, manteve alta sua autoestima, mas sabia que era uma rainha sem trono, pois ele sempre foi ocupado por brancos.

A atriz morreu em 28 de julho de 2019, aos 98 anos.