Will & friends, a atriz inglesa Ellen Terry encarnando Lady Macbeth na montagem de 1888, o busto de Shakespeare e a maquete do teatro Globo de Londres

Através dos séculos, um espectro enorme de escritores produziu dezenas de milhares de peças teatrais; uma quantidade tal que tornaria necessária a existência de milhares de bibliotecas apenas para abrigar todo este material. Apesar disso, poucos autores conseguiram atravessar os séculos e ainda serem encenados nos dias de hoje. William Shakespeare é um deles.

As peças de Shakespeare são produzidas em japonês, chinês, português, yorubá, árabe e em todo e qualquer outro país onde aconteça uma performance teatral. Shakespeare, além disso, é citado em discursos políticos e também em tribunais de justiça. Seus versos são usados por marxistas, budistas, católicos, luteranos, judeus, palestinos, monarquistas, feministas, animistas, agnósticos e toda sorte de “istas” que podem ser listados. Shakespeare fala através dos séculos, a despeito de raças, classes e credos. Será que desde que ele se tornou um autor de teatro foi assim?

É oportuno lembrar que Shakespeare na sua época não era um clássico (o que aliás esquecemos quando lemos ou montamos suas peças), mas um autor contemporâneo que sobrevivia de seu ofício. Clássicos eram Ovídio, Sêneca, Plauto, Maquiavel, Aristóteles (traduzido em Latim), entre outros. Por que a sua importância só foi percebida séculos depois? Seus pares foram incapazes de notar que Shakespeare era excepcional?

A questão reside em saber o que significava ser “excepcional” na época de Shakespeare. Certamente, um guardador de cavalos que se tornou ator e que depois virou autor e que, além de tudo, nem instrução universitária tinha, estava muito longe deste perfil. Com um currículo pouco acadêmico e escrevendo para um veículo (teatro) considerado menor pela intelectualidade em geral, Shakespeare jamais engrossaria as fileiras da Academia Inglesa de Letras ou algo parecido. Os literatos de prestígio escreviam poesia, gênero considerado de alta grandeza e digno de louvor. Com o fechamento dos teatros em 1592, por causa da peste, Shakespeare produz dois poemas narrativos longos – Vênus e Adonis, O rapto de Lucrecia – que se tornaram sucessos de publicação e deram prestígio intelectual e artístico ao bardo – no caso de Vênus e Adonis, o poema foi reeditado pelo menos dez vezes ao longo de sua vida. Apesar deste fato, assim que as casas de espetáculos foram reabertas, Shakespeare se volta exclusivamente para o teatro. Uma atitude que pode ser considerada quase que excêntrica, pois a profissão de dramaturgo era pouco estimada e sua prática, mesmo bem-sucedida, conquistava pouco respeito crítico. O que Shakespeare encontrou no teatro?  

Só podemos entender ou apreciar a extraordinária realização de Shakespeare se estivermos preparados para reconhecer que ele não estava escrevendo poesia para ser guardada na biblioteca ou para ficar na mesa de cabeceira de uma cama, mas que ele escolheu escrever para o teatro para fazer poesia através de histórias que revelavam o que pessoas diziam e faziam. Shakespeare percebeu na mecânica do fazer teatral a possibilidade de se construir um cosmos com forma e conteúdo que espelhasse o mundo daqueles que estavam assistindo às suas peças. 

Observando seus textos e conhecendo o palco onde foram montados pode-se ter uma ideia das encenações produzidas pelos artistas da época. O edifício teatral elisabetano, um modelo arquitetônico com três palcos em planos diferentes, proporcionava ao espetáculo uma ação contínua, com música ao vivo pontuando o espetáculo. Uma imensa plateia circundava o palco principal, em geral composta pelo público mais pobre, que ficava de pé. Um público ávido por ver e ouvir teatro. Assistir ao ator e saborear a linguagem poética.

Não foi à toa que, no período de ouro do teatro elisabetano, de 1567 até o fechamento dos teatros pelos puritanos 75 anos depois, calcula-se que as casas de espetáculo tenham atraído 50 milhões de espectadores pagantes, algo como dez vezes o total da população da Inglaterra no tempo de Shakespeare. Para o empreendimento teatral londrino lucrar, os teatros tinham que atrair 2 mil espectadores por dia – mais ou menos 1% da população da cidade – em torno de duzentas e tantas vezes ao ano, e fazer isso repetidamente, enfrentando uma dura competição. Além disso, era necessário mudar de espetáculo com frequência para assegurar o retorno do público. As companhias apresentavam pelo menos cinco peças diferentes por semana e deviam usar o tempo livre que dispunham para ensaiar os novos textos que eram preparados.

É neste universo que o futuro autor de uma das obras mais conhecidas do teatro universal se depara quando chega a Londres no final da década de 1580. As casas de espetáculos já se espalhavam pela cidade e continuariam a aparecer ao longo de toda a sua carreira. A atividade teatral na época era por vezes incerta: os edifícios teatrais eram usados também para outros eventos, como concursos de esgrima e lutas de animais com o intuito de aumentar os seus lucros. Segundo biógrafos e historiadores, a única exceção a isso era o Globe Theatre, mencionado como um lugar construído por atores, para atores. A forma de diversão e apreciação artística da maioria dos cidadãos da época consistia em frequentar o teatro. Então, é curioso imaginar que a plateia elisabetana era capaz de ir às lágrimas com uma récita de Doutor Faustus, de Christopher Marlowe, e no dia seguinte voltar ao mesmo lugar para se divertir com a morte de animais indefesos. É neste contexto que Shakespeare vai produzir suas obras: teatros que precisavam gerar lucro e uma plateia que num dia consumia sangue e no outro derramava lágrimas.                                                 

Sabe-se que nestes espetáculos não havia cenário e nenhum recurso de iluminação, ou seja, não se distinguia o dia da noite, a neblina do brilho do sol, o campo de batalha do quarto de amor, a não ser através das palavras. As cenas eram desenhadas ou “cenografadas” pela palavra dita pelos atores e, é claro, pela imaginação da plateia, que completava a história contada pelo autor. Se Oberon e Próspero se declaravam invisíveis então assim ficavam. Macbeth saía de um imenso campo de batalha para encontrar bruxas numa pequena charneca. E o público acompanhava tudo isso imaginando e ouvindo as narrativas e as aventuras dos personagens através da prosa, do verso e do jogo dos atores. 

A vida das peças shakespearianas residia na palavra. Sentimentos e emoções eram liberados no momento da fala. A plateia elisabetana devia vibrar com a pulsação, o ritmo, as formas sonoras, sons e significados contidos nos pentâmetros iâmbicos dos versos brancos em inglês. Em primeiro lugar, a despeito de tudo, era uma plateia que gostava de ouvir. 

Um fato histórico relevante: na época, a língua inglesa estava se modificando rapidamente, lutando para ganhar respeitabilidade, já que o Latim ainda era a língua dos documentos oficiais e das obras mais sérias de literatura e ciências. Várias publicações importantes como, por exemplo, Principia mathematica, de Isaac Newton, foram escritos em Latim. A biblioteca de Oxford, em 1605, possuía mais de 6 mil livros e, desses, apenas 36 eram em inglês. Graças à obra de Shakespeare e de seus contemporâneos, o inglês começa a adquirir status no país de sua criação. Os ingleses apaixonados por sua própria língua iam ao teatro para ouvir as palavras soando em inglês. E muitas delas eram novas, criadas por estes autores para melhor expressar o que se passava em cena. Segundo estudiosos e professores, Shakespeare, sozinho, teria cunhado 2035 vocábulos, sendo que só Hamlet proporcionou ao público 600 vocábulos que nunca tinham sido ouvidos antes. Ele produziu uma torrente de palavras e significados novos que muito deles, como o linguista Otto Jespersen observou, talvez não fossem entendidos com clareza pelo próprio autor. É o poeta revelando o que está velado, nomeando o ainda não-nomeado, pois, ao escrever, Shakespeare estava se relacionando com o desconhecido, com o que ele ainda não sabia, mas com o que estava buscando. 

Muitas dessas palavras criadas por Shakespeare não vingaram, mas um número bem grande efetivamente passou a ser usado e cerca de 800 ainda são empregadas nos dias de hoje. De qualquer forma, obviamente a questão não é a quantidade de palavras que ele utilizava e cunhava, mas o que fazia com elas. O que diferencia Shakespeare dos outros todos é a sua habilidade em iluminar tanto o que vai dentro das almas dos personagens como a sua realidade cotidiana mais comezinha. E isto aconteceu porque ele percebeu a força que pode alcançar um idioma. Shakespeare, inventor de sua língua, desvela o cerne do comportamento humano através de uma linguagem poética. E é pela palavra que ele captura e conserva perene a humanidade de seu tempo. 

Um fato digno de nota: Shakespeare, poeta e criador de sua língua, quando nasceu, podia-se ler o seu registro em Latim, mas na época de sua morte o que encontramos é “William Shakespeare, gentleman (cavalheiro)”, no idioma inglês. Uma mudança de status da língua revelando em que medida a obra de Shakespeare e seus contemporâneos instauraram uma nova linguagem, erigindo um mundo. A obra shakespeariana abriu e abre mundo. Como na inscrição do Globe Theatre: 

 

Totus mundus agit histronem

The whole world is a playhouse

O mundo inteiro é um palco

Artista de teatro, professora e pesquisadora.