No mês passado, o Rio de Janeiro pôde assistir pela primeira vez o texto completo de Angels in America, do dramaturgo americano Tony Kushner, com cinco horas de duração, pela Companhia Armazém, com direção de Paulo de Moraes. A primeira parte, intitulada O Milênio se Aproxima, foi encenada por Iacov Hillel em 1995, tendo Rodrigo Santiago e João Vitti no elenco, mas a segunda, Perestroika, permanecia inédita por aqui. A peça de Kushner, definida por ele mesmo como “uma fantasia gay sobre temas nacionais”, toca em assuntos como homossexualidade, AIDS, opressão religiosa, política, nacionalismo, mudança, tudo envolto numa aura apocalíptica de fim de milênio. Me lembro com clareza do espetáculo de 1995, que me impactou muito, e da minissérie produzida pela HBO, dirigida por Mike Nichols. E me ponho a pensar em como a dramaturgia gay americana (um termo redutor, sem dúvida, mas que serve, no momento, para nos referirmos a textos que trazem a homossexualidade como elemento importante de sua construção) abordou o tema ao longo dos anos, sempre refletindo coerentemente o contexto político e social de cada período histórico.

Me vem primeiro à cabeça a peça The Children’s Hour, de Lillian Hellman, escrita em 1934. No Brasil, foi montada três vezes sob o título de Calúnia (em 1958, com Tônia Carrero e Margarida Rey nos papéis principais, e dirigida por Adolfo Celi; em 1981, direção de Bibi Ferreira, com Ariclê Perez e Sylvia Bandeira, e outra em 2006, com Janaína Mendes e Michelle Catunda e direção de Eduardo Wotzik). Duas professoras de um colégio de meninas são “denunciadas” por uma aluna que insinua que há, entre elas, uma relação amorosa. A menina que conta pra tia sobre as professoras está mentindo ou, na melhor das hipóteses, confundindo as coisas. As professoras Martha e Karen não são amantes, mas amigas. O escândalo que se segue à denúncia acaba tendo um efeito devastador sobre a vida das duas e Martha, demitida do colégio, se suicida. Mas não foi a perda do emprego nem a difamação a causa de seu gesto extremo. O que faz Martha desistir de viver é a percepção de que realmente é apaixonada por Karen. E é com esse sentimento que ela não suporta conviver. Martha se sente suja, monstruosa, indigna. E, após confessar seu amor a Karen, se enforca. Talvez seja a primeira vez que o assunto é abordado de forma tão clara e direta numa peça americana, ainda que relacione a homossexualidade à tragédia e à punição. A descoberta por Martha de seus desejos homoeróticos é motivo de culpa e vergonha para ela, que não vê outra saída a não ser se matar. Até meados dos anos 60, esta será a abordagem clássica do tema (tanto no teatro como no cinema), sempre associado à infelicidade e à vergonha. E mais, personagens homossexuais deveriam ser definitivamente punidos.

Nas conservadoras décadas de 40 e 50, o tema deixa de ser tratado de forma direta ou de ser o centro da ação, mas Tennessee Williams continua tocando no assunto, de forma às vezes mais, às vezes menos sutil, mas sempre com a mesma necessidade de punição aos que ousam desafiar a moral vigente. O marido de Blanche, em Um Bonde Chamado Desejo, ao ser flagrado por ela com outro homem, se mata com um tiro na cabeça. Quando Maggie, em Gata em Teto de Zinco Quente, confronta Skipper sobre a verdadeira natureza de sua amizade com o marido dela, ele foge e, depois de se embriagar, morre em um acidente de carro. No último ato de De Repente, no Último Verão, Catherine revela finalmente as circunstâncias que envolvem a morte do primo Sebastian, testemunhada por ela: ele foi perseguido, despedaçado e devorado por rapazes pobres e famintos que ele costumava assediar, valendo-se de sua posição financeira privilegiada. É interessante notar que nenhum desses personagens está presente em cena, seus dramas e histórias são contados por outros personagens. Williams, ele mesmo gay assumido, parece ter tido extrema consciência dos limites que poderia tangenciar em sua época. Ele aborda a questão homossexual, mas não faz dela o centro da ação, nem a materializa frente ao espectador.

Em 1968, as coisas começam a mudar. Sintonizado com o início da luta pelos direitos civis e pela afirmação do orgulho homossexual, Mart Crowley escreve Os Rapazes da Banda (The Boys in the Band), um marco histórico na dramaturgia gay e ponto de virada na abordagem do tema. Pela primeira vez, os homossexuais são representados como gente comum, com conflitos e crises inerentes a qualquer pessoa, independentemente de sua orientação sexual. Não há mais vergonha, nem culpa, nem punição, nem tragédia. O que move os nove personagens da peça é a busca de afeto, a necessidade de aceitação pelo próprio grupo, o fortalecimento da autoestima. Montada no Brasil por Maurice Vaneau, em 1970, com Raul Cortez, Otávio Augusto e Paulo César Peréio no elenco, foi um tremendo sucesso e ficou dois anos em cartaz. Ainda que hoje parte dos diálogos possa parecer datada, Os Rapazes da Banda é uma pedra fundamental na construção de uma nova identidade, de uma nova forma de representação dos homossexuais na dramaturgia. Em 2020 estreará uma nova versão cinematográfica da peça, produzida por Ryan Murphy (a primeira versão é de 1970 e foi dirigida por William Friedkin). Será interessante perceber que reverberação o texto terá hoje, mais de 50 anos depois.

Em 1981, outro texto importante da dramaturgia gay se torna um grande sucesso mundial. Bent, de Martin Sherman, aborda a homossexualidade na Alemanha nazista, e mais especificamente no cotidiano dos campos de concentração. Não me recordo de nenhuma outra obra de ficção, em teatro ou cinema, que tenha tocado no assunto antes de Bent. Até então, a perseguição aos judeus sempre foi o objeto de interesse quando se abordava o regime nazista. Sherman inaugura, no começo da década de 80, o olhar dramatúrgico sobre o passado. Como se, após ter sido incorporada e, de certa forma, naturalizada na sociedade, a homossexualidade precisasse agora se rever historicamente, com um olhar que redimensionasse e valorizasse a luta dos gays por dignidade e cidadania. Nessa mesma vertente dramatúrgica temos, de 1985, O Coração Normal (The Normal Heart) de Larry Kramer, ainda inédita no Brasil (mas o filme, ótimo, está por aí, nos serviços de streaming). Voltada para um passado então recente, conta a mobilização organizada por um grupo de homossexuais durante o surgimento dos primeiros casos de AIDS, quando o governo e a política de saúde americana minimizaram o caráter epidêmico da síndrome.

Angels In America *, a peça cronologicamente mais recente das citadas aqui (ainda que tenha sido escrita há mais de vinte anos), desviaria da tradição realista/naturalista do teatro americano e misturaria todos os elementos que compõem o histórico de representação da homossexualidade na dramaturgia do século XX: culpa, orgulho, não aceitação, tragédia, afirmação de identidade, punição, historicidade, política. E acrescentaria mais um: perplexidade. Era o milênio que se aproximava.

* A versão da Companhia Armazém voltará em outubro.

Leonardo Netto é ator, diretor e dramaturgo.