O que os ensinamentos de Paulo Freire têm a ver com Peter Brooks? Um professor da UNIRIO resolve essa equação.

 

     Um grande desafio enfrentado pelos que se dedicam ao ensino superior do teatro é a sensação, muitas vezes manifestada pelos estudantes, de uma distância entre os saberes consolidados na “academia” e a realidade da cena teatral a que esses estudantes têm acesso. 

     Eles têm dificuldade em reconhecer qual a relação entre o que se vê, e que, eventualmente, eles mesmos produzem nos espaços possíveis, e aquilo que se pretende “ensinar” em salas de aula. De um lado a História, as estéticas, os grandes nomes, as práticas e as obras incontestáveis. Ou seja, o passado. De outro, as realidades múltiplas e quase inconciliáveis dos estudantes. Suas curiosidades, suas urgências, seu encanto com a vocação recém descoberta e a natural tendência de afirmar o novo, o presente. 

     É preciso levar em conta que quem chega até nós já foi capturado por uma certa ideia de teatro. Nosso trabalho é habilitá-los a concretizar seus sonhos. Tento sempre explicar que a função de conhecer os modos do fazer teatral através da História não é reproduzir esses modos, mas entender como eles se impuseram, cada um a seu tempo. E como significaram rupturas para o novo. Isso para que eles possam descobrir como impor seus próprios modos, porque são eles que precisam se impor. 

     É para isso que pode servir a experiência deles na universidade. Mas é preciso muito mais do que explicações e justificativas. É preciso dar voz aos que vêm do futuro. E espaço para suas experimentações. Esta pode e deve ser a função dos projetos de pesquisa institucional em arte. É a isso que se propõe o projeto intitulado Teatro e Fundamentalismo, por mim coordenado no Curso de Direção Teatral da UNIRIO. Procuro fazer desse encargo institucional – a obrigação da pesquisa – um espaço para a construção de pontes que possam facilitar o trânsito entre os saberes consolidados e os saberes em construção. Essa pesquisa se organiza em dois eixos básicos: primeiro, a tentativa de reconhecer a presença, na contemporaneidade, dos choques históricos entre o que se pode chamar de “matrizes explicativas” da realidade e da subjetividade – a ciência, a filosofia, a religião – os mecanismos de construção da “verdade” e sua influência na sustentação dos fundamentalismos políticos; segundo, testar os procedimentos de conhecidos como processos colaborativos e de criação coletiva, com vistas a alcançar uma pedagogia da cena. 

     Convém ajustar um entendimento sobre os termos essenciais: o termo “fundamentalismo” surgiu no início do século XX, utilizado pelos protestantes norte-americanos a partir da publicação, entre 1910 e 1915, de uma série de doze panfletos intitulada The Fundamentals: a testimony to the Truth, onde teólogos conservadores refutavam a liberdade de interpretação da bíblia e enfatizavam a importância da difusão da verdade dos evangelhos. O uso do termo se expandiu para todas as áreas do conhecimento e serve atualmente para identificar todo o radicalismo atuante nas relações sociais e políticas. As criações coletivas derivam de um regime de trabalho adotado por grupos teatrais que se baseava na diluição da autoria de uma encenação por todos os integrantes do grupo. Eliminava-se a divisão rígida entre as funções artísticas e, frequentemente também entre as funções técnicas, e privilegiava-se, exigia-se mesmo, a contribuição de cada componente do grupo para a consecução do empreendimento. 

     Assim, em suas encenações, os grupos elegiam, por processos internos de seleção, os temas a serem abordados, os personagens e situações em que esses temas seriam tratados, elaboravam sua própria dramaturgia, a linguagem cênica apropriada e, finalmente, mantinham o controle sobre o destino de suas criações e de seus frutos materiais e artísticos. Os processos colaborativos podem ser entendidos como a adoção desses procedimentos pela investigação acadêmica. 

     A diferença é que um coletivo de criação é arregimentado para “colaborar” com um investigador que será o estimulador e coordenador dessas atividades. A criação coletiva se destinava a “montar peças”. O processo colaborativo, a investigar procedimentos. Pedagogia da encenação não é exatamente aprender fazendo, mas deixar que as questões enfrentadas no processo criativo indiquem o conhecimento a ser assimilado. Do primeiro eixo, surge a abordagem dos grandes temas que afetam nossa convivência diária: o racismo, a homofobia, a transfobia, o machismo, o feminismo, a intolerância disseminada. Do segundo, a liberdade para abordar essas temáticas a partir das vivências individuais, coletivas, dos relatos jornalísticos, da literatura e da própria dramaturgia. Basicamente, os procedimentos são: 

Contar histórias. O exercício de procedimentos narrativos é obrigatório quando se trabalha em regime de criação coletiva e colaborativa. Isso porque, ao estimular os performers a aportarem material referente a suas vivências ou preferências, ainda que associadas a material literário prévio, instala-se um caráter épico na linguagem da cena. Para processar esse material na sala de ensaios, o “contar histórias” é ferramenta essencial para a criação dos extratos verbais da encenação. O recurso narrativo por excelência é a introdução de um narrador que, situando-se à margem do desenrolar da ficção, cumpre algumas funções análogas às de um autor presentificado. Conta trechos da história que não serão representados em cena, resume episódios, apresenta fatos pretéritos ou circunstâncias gerais, atmosferas e características de personagens difíceis de visualizar, e outras tantas funções. Fatos reais tratados cenicamente. É parte fundamental dos experimentos realizados no âmbito do universo do Fundamentalismo, a inclusão, na obra ficcional produzida, de fatos da vida real que não apenas guardem alguma relação com os temas da pesquisa, mas que ajudem a desvendar os modos como uma ação fundamentalista pode ser reconhecida na estrutura social e política nos dias de hoje. 

     Para tanto, os estudantes pesquisam e selecionam relatos de fatos reais registrados em documentos variados, noticiados pela imprensa ou mesmo que sejam do conhecimento de um grupo grande ou restrito de pessoas. Esses relatos recebem um tratamento dramatúrgico, cênico, e transformam-se em cenas independentes que compuseram o roteiro final. No último experimento, foram tratados, entre outros, quatro casos de ampla repercussão nacional: o do imigrante sírio, vendedor de esfihas, hostilizado por moradores do bairro de Copacabana/RJ; o relato do vandalismo que vitimou casas de Candomblé na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, por grupos de traficantes evangélicos; a tragédia ambiental na cidade de Mariana/MG ocasionada pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco e o caso da professora Márcia Briggi, brutalmente agredida por um aluno em uma escola de segundo grau em Santa Catarina. Houve também uma cena construída a partir de um caso (fictício) de amor entre dois soldados no front da segunda guerra mundial. 

Roteirização. O trabalho de roteirização do material ficcional, trazido pelos próprios pesquisadores ou criado por eles em laboratório, é um trabalho que vai além das questões técnicas e estéticas que seriam observadas normalmente por um autor teatral. É preciso atenção para a sala de ensaio. Ou seja, recolher as contribuições que o coletivo constrói em suas tentativas de composição de personagens, indicações de modos expressivos próprios, dinâmicas corporais peculiares e mesmo simples preferências por este ou aquele episódio ou acontecimento narrado. O texto final de cada cena é construído simultaneamente aos trabalhos de improvisação, em um procedimento habitual dos processos colaborativos. 

O tratamento do espaço. Todas as encenações propostas no âmbito desta pesquisa foram construídas para o espaço de representação conhecido como Corredor Espanhol. Trata-se, sumariamente, de um corredor largo e comprido, ladeado por plateias dos dois lados, em formato de arquibancada. Essa configuração permite múltiplos pontos de vista da cena por parte do espectador já que, de acordo com a distância em que se encontra de um ou outro performer, a percepção da ação se altera. Nessa espacialização é especialmente indicada a utilização de dispositivos cenográficos que fujam da frontalidade única do espaço à italiana. Além disso, propõe um desafio aos performers, pois operar com várias frontalidades exige uma consciência expandida do espaço cênico. O resultado esperado com esse tipo de envolvimento com o ensino é possibilitar que os estudantes se sintam sujeitos do ato de construir conhecimentos. Que percebam o aprendizado dos percursos históricos de sua arte como ferramenta para a expansão de suas possibilidades de escolha. Sem tentar reproduzir “fundamentalismos” ou dogmas, mas aproximando uma frase do educador Paulo Freire: “Educar é gerar convivências”, com outra do diretor britânico Peter Brook: “No teatro, as ideias não valem o papel onde foram escritas, o que importa é a qualidade dos encontros que elas proporcionam”.

Angel Palomero é professor de Direção Teatral da UNIRIO.