Peça já na metade, um grito lancinante de mulher é ouvido na plateia. Os atores param a representação e olham para o local de onde partiu o grito. Desesperada, a mulher acode o marido, que está com a cabeça caída, queixo encostado no peito, aparentemente sem sentidos. Ao invés de acender as luzes do teatro, o iluminador (provavelmente atabalhoado e pego de surpresa) lança um foco de luz no público, tentando localizar o lugar, até que se fixa no casal.

A mulher diz coisas ininteligíveis, ao mesmo tempo que olha em volta, pedindo ajuda, mas se depara com sorrisos emoldurando o rosto dos espectadores, que imaginam que o episódio faça parte de uma trama metalinguística de teatro experimental, possivelmente adaptada daqueles policiais bizarros da Agatha Christie.

Segue-se uma série de atitudes que confundem ainda mais a plateia: os atores  tartamudeiam entre si diálogos que não são ouvidos; a mulher se levanta da poltrona e começa uma diatribe enlouquecida, enfrentando o elenco, alegando desumanidade; o iluminador, por fim, acende as luzes do teatro, apagando o foco de luz localizado; o diretor da peça aparece da coxia e tenta apaziguar a todos, afirmando que aquilo não fazia parte da peça, era talvez um ataque súbito, uma fatalidade, mas nada adianta: a plateia continua sorrindo e esperando a continuação do enredo.

Nisso, a mulher ataca tanto o diretor quanto os atores, levantando uma tese de que fora justamente o texto que tinha matado seu marido. Todos se defendem, dizendo que ela não podia afirmar tamanha leviandade; não tinha provas, não havia nada na peça que pudesse provocar tal embolia sanguínea e que, afinal, tudo não passava de uma ficção.

Alguns sorrisos se apagam, mas a maior parte da plateia ainda aguarda uma continuidade mais condizente com a realidade, tentando entender como aquilo pode ter acontecido numa peça que (embora séria) se propunha apenas a entreter, mas a mulher não se conforma, olha para o marido morto e solta outro grito, numa reação que denota ódio contra o mundo inteiro.

O desconforto é latente. Todos continuam em stand by. O diretor, talvez numa última tentativa de jogar panos quentes na situação, chama a mulher de lado e começa a conversar com ela, mas ninguém ouve nada. Os dois atores se achegam. Aos poucos, os espectadores, desanimados com o rumo da peça, saem pouco a pouco da sala, murmurando, provavelmente rumo à bilheteria para pedir o dinheiro de volta. Na plateia, só fica o morto.

A mulher se exalta, chama o diretor de assassino, aquele texto (na sua opinião) era letal, tinha elementos cruéis; a mulher gesticula muito, dir-se-ia estar representando um papel, vocifera, diz que vai processá-lo, aquilo não ficaria assim. Realmente entusiasmado com a atuação, o diretor lhe pergunta se ela era atriz. Não é possível dizer que ela tenha se sentido lisonjeada, mas também não houve uma reação negativa. Espantada, ela diz que tinha tido alguma experiência sim, mas de forma amadora, no colégio, quando ainda era estudante. E lhe pergunta por que ele tinha dito aquilo. Ele afirma que ela tem potencial, aquela argumentação era de primeira linha, um diálogo digno dos maiores dramaturgos do teatro, uma interpretação soberba. Um raciocínio ponderado & direto, que colocava o antagonista numa sinuca de bico. Tinha uma lucidez poucas vezes vista no palco. Os outros dois atores concordam. A mulher arrefece e, pela primeira vez, se acalma.

Os três a convidam para continuar a conversa nos bastidores. Ela os acompanha, já assumindo uma postura altiva, gingando o corpo como uma veterana atriz da ribalta.

Voz da mulher (em OFF)

Olha só, topo, mas eu gostaria de mudar alguns diálogos.

Sabe-se lá por quais gambiarras dos deuses do Teatro, uma luz azulácea foca o morto na plateia.

PANO, RÁPIDO.

 

Furio Lonza é um escritor, dramaturgo e jornalista ítalo-brasileiro.