Criado por Tim Rescala (adaptação, letras e música) e dirigido por Miguel Vellinho, este espetáculo dá ênfase à linguagem visual de circo, tanto nos figurinos, quanto nos cenários e no visagismo. Ao criar este universo múltiplo, o diretor dá o pontapé inicial para seu voo através das várias e diversificadas interpretações que é possível dar ao texto, restituindo ao original de Collodi sua real intenção.

PinóQuio é teatro de verdade, com pesquisa prévia, ensaios exaustivos, soluções inovadoras, performances ricas, enérgicas e fascinantes. O fervor e o ímpeto com que os atores mergulham no texto é comovente, narrado por uma soprano e um barítono que dão o toque operístico à trama, mas sem deixar o coloquialismo de lado.

Esta versão da PeQuod traz uma lufada de ar fresco a uma modalidade de teatro normalmente conduzida de forma negligente e enfadonha. o teatro infantil que privilegia os adultos, trazendo piadas que as crianças passam batido, pois, afinal (pensam os produtores), são eles que levam os filhos ao teatro e é necessário evitar bocejos; o teatro infantil que se fixa em correrias e tombos, visando a criança que está acostumada aos humorísticos de baixo nível da TV; há espetáculos infantis que chegaram à conclusão que adaptar um clássico para o teatro significa trocar as palavras difíceis, pois pressupõem que a criança é burra; e há os poucos que entendem o teatro como a melhor forma de entreter, formar e educar quem amanhã tomará os rumos da Nação. É o caso deste Pinóquio da PeQuod, que lembra de perto os espetáculos medievais da Commedia dell`Arte, salpicado de citações de Fellini (tanto na música quanto nos movimentos clownescos de seus artistas).

Mas chega um momento em que o espetáculo, apesar de muito bem dirigido e da excelência das interpretações, exige um personagem mais serelepe, transgressivo e irreverente: é quando entra em cena Liliane Xavier no papel de Pinóquio quando ganha vida. Ainda é um boneco, mas que se mexe, corre, faz estripulias, argumenta e põe em dúvida a honestidade dos seres humanos, mesmo os que se travestem de bichos metafóricos.

No palco, Liliane é uma festa: consegue articular movimentos faciais como se seu rosto fosse de plástico; um simples menear de sobrancelhas pode ter mil significados. Não há um mínimo instante em que ela não sirva ao conteúdo do espetáculo dezenas de acepções e conceitos que enriquecem a essência da obra de Collodi. Em outras palavras: Pinóquio é o próprio brasileiro, com malandragem e jogo de cintura, suficientes para se safar de todas as arapucas com as quais se depara pelo caminho. Mesmo tendo aprendido a filosofia das ruas, possui uma escala de valores ética que o acompanha durante toda sua trajetória, pois mistura malemolência com safadeza, o que tira o maniqueísmo do personagem e enriquece o final, quando a fada o torna um ser humano de verdade: mesmo depois de conhecer tantos traidores, vagabundos e ociosos, ele acha que vale a pena fazer parte deste mundo, perdoando a todos.

Enfim, uma peça de grandeza indiscutível (inclusive no tamanho) que merece ser vista por adultos e crianças, homens e mulheres, idosos e jovens de todas as crenças, opções de gênero e etnias.

Resenha com informações, ficha técnica, horários e preços de ingressos no link:  https://teatrohoje.com.br/2021/11/27/pinoquio-2/

Para ler a crítica de Furio Lonza na íntegra, link: https://teatrohoje.com.br/2021/12/16/pinoquio-um-teatro-de-verdade/

Maria Alice Silvério é produtora e faz parte da redação de Teatro Hoje.