Parece óbvio declarar que o teatro é uma coleção de criações. Quando nos é oferecido por gente cuidadosa e fértil, então, esta quase obviedade nos entretém, ilustra, entupindo-nos de prazer. O ator, seu agente principal, visita os limites de sua personalidade para viver alheias, em seu tirocínio profissional – cada vez menos cotidiano – com o qual nos bagunça, suavizando as balbúrdias morais do além-palco, em regra fazendo-as palatáveis. Delícia que se renova, e que há milênios prezamos, alocando recursos capazes de mantê-lo atento e pulsante. Em seu papel.

Em certa época, já “capitalistas”, instituímos a primeira parcela dos (desde sempre) controvertidos direitos autorais, nascidos visando proteger, a princípio, autores de textos. Pouco depois, o uso teatral desta modalidade de obra suscitou, em 1777, a primeira sociedade de autores, ainda antes da Revolução que, também na França, visava substituir Deus pelo Homem no protagonismo de nossa montagem social. O antropocentrismo, catalisado por iluministas, cravava (ao menos no roteiro) o seu meta-propósito: seria por nós mesmos que brincaríamos de prosperar. “Quem somos” tornava-se a chave da deificação pelos aplausos, embora tantos, até hoje, creiam que o jogo da cena nascia apenas para desviar do proscênio os que, humanamente, já se sentiam divindades no teatro da acumulação, e davam luz a outras. No papel fixo de merecedores, ainda que igualmente submetidos ao insofismável limite de recursos disponíveis, subtraíam a humanidade dos demais. Ainda que alterássemos as taxas de câmbio.

O mundo mudou, e dos atributos de Thomas Edison os sacerdotes extraíram a música como o distrativo mais eficaz, “massificável”. Adiante, imagens em movimento a adotaram como escada, e a digitalização as tornou ubíquas. Os direitos autorais, com o sistema de sua gestão, para elas hoje se deslocaram, legando ao Teatro figurar como mera origem. Se ainda há quem note o seu papel introdutor, a sua sagrada porção formadora dos que vestem ou parametrizam as superproduções, gritando a sua função primigênia de representar vida, o suprassensível sistema não se furta a desdenhar de seu alcance, mensurando-o apenas pelas cifras imediatas, invisíveis às bolsas. Assim o mantém adstrito ao texto dramático, do qual é, por pior que seja, o seu enorme desdobramento, arrogantemente ilimitado. Inalcançável por maior que sejam sample rate, número de linhas, cores, bit depth ou largura de banda. Soberanamente lúdico, inatingível. Protegido por bordados contra as tecnologias toscas dos terabites, às quais parece ter sucumbido o nosso Direito, cego às verdades do outro Festival de Farsas de Curitiba, o anual. Não o “power-pontual”, que nos vem sendo trágico.

 

Os protagonistas esquecidos

Mas o teatro resiste. Em sua magia, o iluminador, da arte das luzes, efêmeras, seguirá criador, autor de obra reconhecida e adorada pelos dionisíacos, embora invisível ao sistema legal. Em sua força igualmente plástica e visual, os figurinistas fazem arte própria que, fosse naturalizada pelo Direito (que só a admite enquanto hipótese), talvez levasse seus autores a usufruir de um naco mais justo do aproveitamento econômico universal da criação para a qual contribuíram. O cenógrafo jamais pôde ser apenas arquiteto, e a arte que nos proporciona pela cena, desmembrada ou não em adereços, esculturas e ilustrações, ou agregada na direção de arte, será também economicamente invisível à trajetória do que tanto trabalhou para erguer. O coreógrafo, autor do conjunto de movimentos que optar por tratar como obra, prevista na lei, raramente o faz, exceto, por vezes, em espetáculos “de dança”. Amiúde, sequer identifica a hipótese.

Seus contratos não os veem, uma vez que seus contratantes raramente os querem ver, e já se habituaram apenas ao espaço sob a ribalta. “Não entendemos disso”. Não que seja pequeno, mas o trabalho havido na assídua, pontual e cuidadosa planilha do produtor, por algum motivo, parece não lhes servir, talvez porque risco e prêmio precisem ser embaralhados no discurso farsesco da fragilidade que se quer protagonista entre as justificativas para o incentivo. Em jogo, a mágica da oportunidade que, se perdida, transforma-se em prejuízo; o “vira-latismo” da sobrevivência na arte a qualquer preço, ditada pelos barões da comunicação pública subserviente ao capital financeiro.

Se foi captado o incentivo suficiente para o esforço material da criação, portanto reduzindo-se os riscos, tornou-se regra desfazer as relações autorais com a equipe, por princípio titular dos frutos gerados pelos usos de suas criações. Advoga-se pelo desmerecimento do lucro por outro que não seja quem coordena o esforço de obtenção e alocação dos recursos. Quando sob equipe menos servil, surgem queixas por complexidade, como se alheios ao jubileu da Apolo 11. O imperativo da autorização expressa e prévia se desmancha na deturpação vil do “mercado”. A criação conjunta é transformada em agregado de auxílios técnicos, em relações de emprego mendigado, em que se erguem louros às funções gerenciais e às idealizações, como se suscetíveis à proteção antes da materialização. Criadores estruturantes, autores e intérpretes deixam de ser reconhecidos em prol da atividade empresária que se quer tão, tão solista que o seu monólogo, na prática, se pretende absorvendo os efeitos econômicos de todo o corpo de criações. Se desembolsasse, talvez, mas sob subsídios? Silencia, quando só, quanto às margens para o “entre-produções”, mesmo sob verbas públicas. Afinal, o fato gerador do tributo cria no devedor a circunstância de fiel depositário do Estado, credor, que abre mão de recebê-las em troca de um certificado de captação, trocado por verbas a projetos aprovados pela autoridade cultural. Faz lobby pró-antolhos aos corregedores. Vê obras e artistas como insumos flácidos, quando de fato são sua condição ôntica. Um papelão.

 

O paradoxo dos direitos conexos

Em termos de categorias autorais, o paralelo entre as obras audiovisuais (AV) e a encenação teatral é inevitável. Afinal, quantas são as que se tornam cinema? A diferença marcante será a fixação, que se vê explorada por redes de exibição de maior ou menor alcance, embora sempre superior à lotação da maior casa. Entretanto, também na obra AV algumas funções seguem irrelevantes para os direitos autorais, e só desfrutam de reconhecimento endógeno: Oscar, Emmy e tais projetam cenógrafos, figurinistas e editores, enquanto o sistemão dos autorais faz vista grossa e, claro, resiste a mais bocas para dividir o bolo, alheio ao quanto mina, assim, a própria credibilidade do instituto. Permanece enorme a resistência à integração dos “insuportáveis” direitos conexos, com esse “mundo de intérpretes”, ou mesmo a dos legalmente reconhecidos diretores, roteiristas e autores de desenhos animados, criadores que, quase 50 anos depois de integrados à lei, no Brasil ainda não desfrutam dos direitos gerados pela execução pública do que criam. Detalhe: os mais rentáveis. Outro detalhe: vão só para a música.

O argumento prevalecente contrário ao reconhecimento do sistema aos demais criadores da encenação teatral deriva, basicamente, da alegação de que o princípio da participação econômica nas receitas é atendido pela partilha da venda dos ingressos. Entretanto, malgrado o art. 76 da lei de regência autoral [1] a mantenha como impenhorável, assim como o art. 13 da lei que regulamenta o trabalho dos artistas e técnicos de espetáculos [2] proíba a cessão ou promessa de cessão de direitos de autor e direitos conexos decorrentes da prestação de serviços profissionais, não há dispositivo que promova o seu enforcement de modo a evitá-la, regularmente em prol de um produtor que só colocou em risco o seu próprio nome, o mesmo que artistas e criadores da montagem, em regra com muito maior exposição.

Disseminou-se ainda, nesta prática, o uso fraudulento dos MEIs, razoavelmente proibidos de prestar serviços artísticos e intelectuais pelo art. 966, § único do Código Civil de 2002. Isso, não é o de 1916. Tudo sob a miopia oportuna do conferidor de contas público. Também, apesar do § único do Decreto 82.385 [3] determinar que “a exibição de obra ou espetáculo dependa da autorização do titular dos direitos autorais (sic) e conexos”, tais relações poucas vezes são formalizadas, mantendo-se como única atribuição de autoria o nome dos autores junto à “ficha técnica (sic)”. Afinal, em terra em que se naturaliza o auxílio de juízes à parte acusadora, não se poderia esperar suficiente esta proteção, ainda que sob o status de direito fundamental de primeira dimensão. Os contratos, quando existem, poucas vezes são expressos e, menos vezes ainda, são prévios. Como estabelecem as cessões de direitos, proibidas, prescindem da determinação das participações por exibição, que se alegam imprevisíveis, portanto, não inseríveis nos ajustes que a lei exige por escrito, dado o imperativo da interpretação restritiva dos negócios jurídicos envolvendo tais direitos. “Ah, tão difíceis e trabalhosos!” Arriscaria inferir que, na maioria das vezes, sequer identificam as obras envolvidas, muito menos a forma de seu uso. “A estreia é logo ali”, e pra que perder tempo com formalidades entre os, agora, tão amigos? Ah, os antropólogos se fartariam com tão profícuo foco de efeitos deletérios de nossa “genteboíce”. Sim, essa mesma que produz a maior desigualdade de renda e riqueza do planeta, combinando o 9º PIB com um dos piores índices de GINI. Sim, tem a ver. É assim também que o nosso teatro diverte, mesmo sofrendo. Mas poderia educar de outro modo.

 

O domínio público & seus meandros

No Brasil, autores têm protegidas as suas obras ao longo da vida, acrescida de 70 anos contados de 1º de janeiro do ano seguinte ao do seu falecimento. Esgotado este prazo, caso tenha parceiro ainda sob proteção, este absorverá a sua parte e, só quando o último autor o exaurir, a obra entrará em “Domínio Público”. A rigor, a encenação é adaptação de obra literária, da espécie dramática, o que torna o adaptador (em regra, o diretor) autor de obra derivada, neste caso literalmente (com trocadilho) ignorada pelo legislador. Assim como com todas as criações dos coautores que com ele colaboram. Se fizesse exatamente o mesmo registrando em vídeo, alcançaria a hipótese de coautoria prevista em lei, passando a deter direitos morais sobre o resultado. Só que, para a obra encenada no palco, este diretor é praticamente invisível à lei, como se o Hamlet do Gerald Thomas tivesse, exceto no texto, parentesco com o do Moacir Chaves. Embora na obra AV tenhamos o crucial e igualmente injustiçado papel dos editores, a dedicação do diretor teatral à sua montagem é, no mínimo, tão decisiva quanto a do diretor da obra AV: participa de todo o processo até o fim da temporada, e ainda se submete à miríade de intempéries da arte “ao vivo”, como crises no elenco ou danos materiais, para ajustar, aprimorar ou garantir a integridade de sua concepção.

O problema da remuneração inadequada se agrava na medida em que se concentram as verbas incentivadas em pouquíssimos produtores, para pouquíssimas produções, conforme tantos estudos vêm apontando a partir dos mal-acabados registros do sistema federal vinculado à Lei Rouanet. Quadros semelhantes são também percebidos, onde há, nas leis estaduais e municipais, o que aponta uma perspectiva grave para o cenário. Sem dúvida, é a dificílima, desgastante, exauriente partilha das receitas, equilibrável a partir de uma equilibrada planilha de despesas, o que precisa ocupar o papel de antídoto maior, porque ainda acessível e ajustável, frente ao mais recente avanço do poder público contra o potencial transformador das artes, dentre as quais a cênica é das mais vulneráveis. No campo autoral, não obstante a omissão pública diante da regulação ressuscitada pela Lei 12.853/13, que decerto habilitaria o teatro a relações mais justas, alinhava-se neste desgoverno nova alteração da lei de regência em prol de contumazes devedores do sistema que, por carecer de maior justiça, não deve por isso ser desidratado, causando outras ainda maiores. O teatro sobreviverá, porque também é forte, apesar do medo dos patrocinadores, apesar do desajuste em sua Gestão Coletiva, subvertida para se submeter à dos pequenos direitos, ainda mais trôpega, por tantas razões que aqui não cabem. Mas não é da fome literal de seus criadores que extrai os nutrientes que nos alimentam a alma, mas sim de uma existência digna. Que produzirá mais banquetes quando bem tratado.

 

Citações:

[1] Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

[2] Lei 6.533, de 24 de maio de 1978.

[3] Regulamenta a lei 6.533/78.

Alexandre Negreiros é doutorando em Direito na UFF