A bem-vinda estreia da revista TEATRO HOJE coincide com o final do já histórico processo eleitoral de 2019 para a diretoria do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos e Diversões do Estado do Rio de Janeiro. Aquilo que parece coincidência na verdade revela uma mesma necessidade de estabelecer pontes e juntar pedaços. A proposta da revista é informar o público e fomentar assim sua ida ao teatro, que obviamente precisará dele para sair da crise atual. O objetivo do movimento de renovação do sindicato, através da criação de uma chapa de oposição à atual diretoria, é retomar as lutas do teatro e da cultura, agora sob o ponto de vista do trabalho.

Na última década, o Rio de Janeiro tem visto o surgimento de diversos movimentos sociais da cultura, que abrangem pautas, territórios e métodos bastante variados. Esses movimentos lutaram contra o fechamento de teatros, secretarias, ministérios. E ainda lutam por transparência, democratização e aumento de verbas públicas para o setor cultural, por inclusão e integração de zonas consideradas periféricas ao circuito cultural da metrópole, por políticas públicas de longo alcance e duração etc.

Mas de 2014 para cá, governos neoliberais e crise econômica reduziram orçamentos de cultura e praticamente extinguiram a ideia de um fomento estatal direto e continuado a produções culturais. O teatro se viu especialmente atingido e, no Rio de Janeiro da crise pós-Copa, pós-Olimpíadas e pós-encarceramento de políticos, a gravidade desses cortes foi ainda maior. Em 2018, uma grande virada já havia se consolidado na relação entre o Estado e a Cultura em todo o Brasil.

2018 reservou ainda um outro ataque institucional às artes da cena. No Supremo Tribunal Federal, a ADPF 293 tentava (e ainda tenta) tirar dos sindicatos e das escolas profissionalizantes o direito de qualificar artistas e técnicos para o exercício de suas funções. Fomos à luta em Brasília, queremos discutir um novo marco regulatório da profissão, mas não no judiciário. Para nossa surpresa, nosso sindicato havia sido pego de surpresa. Fomos ao STF por nossa própria conta.

Acontece que o ataque mais pernicioso que sofremos em 2018 não foi institucional, mas social. E esse nos atingiu em cheio. As irregularidades e o óbvio desgaste da Lei Rouanet foram explicitados e distorcidos em uma campanha eleitoral marcada por um discurso anti-arte e anti-cultura. Grande parte da sociedade passou a carimbar o artista como um esquerdista corrupto. No governo terraplanista da “guerra contra o marxismo cultural”, quem perde com o obscurantismo é a própria sociedade, que fica sem políticas públicas para a cultura. Muitos artistas caíram na armadilha de remar contra essa maré simplesmente defendendo a manutenção da Lei Rouanet como está. Uma armadilha que nos amarra eternamente ao rótulo infame de defensores de boquinha. Além disso, com a sua defesa cega, ajudamos a encobrir o fato de que a Rouanet, por ser um incentivo ao marketing cultural, está longe de ser uma política pública, pois nela o governo não escolhe os projetos culturais, mas apenas paga.

Somente o MATER – Movimento de Artistas de Teatro do Rio de Janeiro passou a se debruçar distanciadamente sobre esse assunto. E o que apareceu em seus estudos foi uma estrutura de altíssima concentração e muita facilidade para o malfeito com verbas públicas. Apenas 5 produtoras ou conglomerados ficam com cerca de metade dos 100 milhões de reais que o teatro recebe em média todo ano através da Rouanet no Rio de Janeiro. Sendo que alguns desses maiores usuários da Lei têm prestações de contas nunca aprovadas por serem indefensáveis.

A partir daí, o MATER sentiu a necessidade de mostrar ao grande público que os trabalhadores do espetáculo, além de obviamente não participarem de malfeitos, vêm sendo gradualmente alijados dos recursos da Rouanet. Hoje, muitos dos grandes espetáculos destinam apenas cerca de 10% do valor captado para os trabalhadores do palco. Estes criam, iluminam, sonorizam, atuam e dirigem com remunerações precárias e sem direitos trabalhistas, mesmo em produções milionárias. Enquanto isso, algumas produtoras, por vezes, ficam com fatias que variam entre 40% a 60% dos projetos, em um festival de notas fiscais referentes a funções administrativas que quanto mais se multiplicam mais se repetem: “diretor de produção”, “coordenador de produção”, “coordenador de projeto”, “diretor geral” (que não é o artístico), “produtor”, “produtor executivo”, “administrador”, “administrador contábil” etc.

A partir das crises da ADPF e da Lei Rouanet, ficou claro que é preciso retomar a ideia da produção artística enquanto trabalho voltado ao público, e não apenas como empreendedorismo e captação de recursos. Artistas consagrados e ameaçados pelas demissões nas TVs precisam se unir com quem perdeu o apoio e com quem sempre produziu sem nenhum apoio. A partir dessa união, novos modelos de fomento e manutenção precisarão surgir do esgotamento dos modelos anteriores. Para tanto, vamos precisar encontrar denominadores comuns para as pautas dos diversos movimentos culturais da cidade e do Estado. Nosso individualismo nos levou aonde estamos agora. Nosso afastamento de nosso próprio sindicato é apenas um sintoma disso.

Com a entrada em curso de grandes corporações transnacionais ao meio audiovisual brasileiro e a consequente internacionalização de seu mercado através do streaming, várias oportunidades se abrem, ao mesmo tempo em que grandes perigos aparecem.

Trabalhadores sem representação e sob uma regulamentação antiquada negociam individualmente contratos leoninos de trabalho. Isso pode estabelecer um mercado de terra arrasada onde empresas internacionais vêm aqui recrutar mão-de-obra excelente e barata para produtos de consumo interno e externo. Essas condições ameaçam o patrimônio imaterial performático e interpretativo que século e meio de uma teia de artistas, professores e trabalhadores do teatro, circo e TV ajudaram a construir no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro. Tal patrimônio tem garantido a qualidade de nossos espetáculos e de nossa produção audiovisual. E é justamente esse patrimônio que empresas como Amazon e Netflix estão interessadas em explorar à exaustão.

A Chapa 2 – “Renovação e Transparência” tenta mudar a estagnação de décadas do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Diversão do Estado do Rio de Janeiro. A partir do SATED, o que se pretende é criar uma nova maneira de se lutar por toda essa diversidade de pautas. Fazer com que artistas estabelecidos e bem pagos pela televisão participem da luta dos grupos e movimentos de teatro de negros ou da baixada fluminense. E que esses, por sua vez, engrossem a luta por novos marcos regulatórios democratizantes para o audiovisual. Novas políticas e novos modelos serão propostos a partir dessa mobilização conjunta.

Vamos precisar, por exemplo, convencer esses novos “invasores” de nosso mercado audiovisual de que eles precisam ter uma relação ecológica com o meio que “invadem”, sob o risco de exaurirem suas principais fontes de recursos. Se daí conseguirmos criar, por exemplo, uma lei em que uma milionésima fatia dos lucros da Netflix alimente um fundo de sustento da base da cadeia teatral, já estaremos partindo para um novo modelo de fomento no país. Não mais um modelo onde um banco ou outra empresa pouco interessada em cultura financie projetos somente para aproveitar a gratuidade de um marketing pago pelo governo. Mas onde empresas de cultura muito capitalizadas terão todo o interesse em financiar o desenvolvimento da cadeia cultural que garante a base de seu próprio sustento e de seu lucro.

Os caminhos são muitos e estão abertos. Trabalhadoras e trabalhadores da cultura precisam se unir se quiserem tomar parte nas discussões sobre os novos rumos da indústria e do fazer cultural. Para além do resultado das urnas, o meio artístico nunca mais será o mesmo depois da campanha da Chapa 2 – “Renovação e Transparência”. Tomamos consciência de que todos precisam de todos. Sem sentirmos, e sem saber bem quais são, já iniciamos as mudanças que poderão garantir a continuidade do nosso fazer enquanto meio de trabalho e força criativa.

Agora já é impossível voltarmos atrás desse primeiro passo.

Gustavo Guenzburger Artista, produtor e professor de teatro. É integrante do MATER, Reage, Artista! e Coletivo Orçamento & Cultura. Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UNIRIO, onde desenvolve a pesquisa “Teatro, Estéticas e Políticas de Fomento”, com bolsa do Programa Pós-Doutorado Nota 10 da FAPERJ.