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Arquivos 'As e Os' Monstro - Teatro Hoje https://teatrohoje.com.br/secao/os-e-as-monstro/ Revista digital de Artes Cênicas Mon, 13 Jun 2022 12:14:38 +0000 pt-BR hourly 1 O TEATRO DE ARTAUD – ENTRE A MITOLOGIA E A PESTE https://teatrohoje.com.br/2021/12/30/o-teatro-de-artaud-entre-a-mitologia-e-a-peste/ Thu, 30 Dec 2021 15:36:19 +0000 https://teatrohoje.com.br/?p=100467 Resumo: O artigo tem como objetivo contribuir para uma reflexão sobre o teatro proposto por Antonin Artaud e sua relação com a mitologia e a peste. Se, por um lado, a mitologia pode ser entendida como uma narrativa que explica como o mundo e a humanidade foram construídos para a forma que então conhecemos, convém analisar que em muitos de seus escritos Artaud se manifesta como um verdadeiro iconoclasta, que em sua origem grega eikon (ícone ou imagem) e klastein (quebrar) significa “quebrador de imagem”. Quanto à peste Artaud acredita na sua capacidade de instalar a desordem e provocar conflitos para, assim, permitir a revelação de verdades socialmente insuportáveis, como propunha em seu “teatro da crueldade”. O TEATRO DE ARTAUD – ENTRE A MITOLOGIA E A PESTE Wilson Coêlho Se pensarmos a mitologia como uma narrativa que explica como o mundo e a humanidade foram construídos para a forma que então conhecemos, podemos também concordar com a ideia de que, na tentativa de entender o significado de sua existência, o ser humano sentiu a necessidade de projetar-se para fora de si mesmo. Assim, a origem do mito pode estar no desejo e na necessidade do ser humano de enfrentar o mundo, bem como, para fugir do medo e insegurança frente às forças da natureza que até hoje são assustadoras. De certa forma, a criação dos mitos também pode ser vista como a necessidade de inventar e depositar nos mesmos uma espécie de compensação para a fragilidade dos humanos, ao mesmo tempo que lhe dão a possibilidade de se acreditarem entendendo ao mundo e a si mesmos, como se fora a possibilidade de se acomodarem e se tranquilizarem perante os mistérios da vida. Nesse sentido, a mitologia se sustenta basicamente em dois pilares: a cosmogonia e a teogonia. E, entendendo a cosmogonia como uma tentativa de organização do caos a partir de alguns modelos relacionados à existência com origem no cosmos ou no universo. Trata-se de uma especulação sobre a formação do mundo. A teogonia, por sua vez, se dá na criação de divindades para a representação de fenômenos ou aspectos da natureza, de certa forma, humanizada, para expressar as ideias sobre a constituição de regentes para o universo. Havemos de também convir que tudo isso passa pela cultura, ou seja, que o universo não se trata de um absoluto, considerando que cada povo se organizou a partir da criação de seus próprios universos ou mundos. Assim, existem tantos universos ou mundos quanto existem culturas. Obviamente, muitas delas vem sendo assassinadas a mediante o projeto colonialista e hegemônico do mundo ocidental capitalista. Depois, surge a filosofia como uma necessidade de superação dos mitos e rompimento com a teodiceia. Nessa tentativa de abandonar e superar a crença mítica, a filosofia busca a razão e a lógica como pressupostos básicos para o pensar. Muito embora não devamos nos esquecer que muitas das “civilizações” ou culturas em nosso planeta propõem alguns pensamentos filosóficos ainda ligados à tradição religiosa de seus povos. Mas como situar Antonin Artaud nesse contexto? Primeiramente, acredito que o passo fundamental é desmitificar o próprio Artaud e trazê-lo para o plano humano, para que sua obra seja entendida nessa condição e não como mito que é o espaço do inalcançável. Não que sua obra seja de fácil apreensão, mas que é resultado de uma vivência e de experiências realizadas dentro de um contexto histórico e que se produziu a partir de uma busca e posicionamento contra a cultura e o pensamento de uma sociedade aprisionada e engessada em conceitos em que predomina um modelo escravagista e tirano em prol de um establishment que, para além do humano, têm as preocupações voltadas para uma ordem ideológica e  política que constitui uma elite tanto econômica quanto intelectual através do controle de um Estado. Nesse sentido de desmitificar Artaud, podemos creditar à Florence de Méredieu um certo pioneirismo desta tarefa, considerando a grande e imprescindível obra C’était Antonin Artaud (publicada no Brasil pela Perspectiva sob o título Eis Antonin Artaud). Com essa edição, podemos dizer que a França resgata uma dívida com o escritor, dramaturgo, poeta, missivista, roteirista, encenador, ator de teatro e cinema, figurinista, cenógrafo, desenhista, pensador e criador do “Teatro da Crueldade”. E, voltando a Artaud, a partir dele mesmo, podemos citar a sua conhecida Carta aos Reitores das Universidades Europeias, onde começa dizendo: “Na estreita cisterna que os Senhores chamam de “Pensamento”, os raios espirituais apodrecem como a palha. Chega de jogos de linguagem, de artifícios da sintaxe, de prestidigitações com fórmulas, agora é preciso encontrar a grande Lei do coração, a Lei que não seja uma lei, uma prisão, mas um guia para o Espírito perdido no seu próprio labirinto. Além daquilo que a ciência jamais conseguirá alcançar, lá onde os feixes da razão se partem contra as nuvens, existe esse labirinto, núcleo central para o qual convergem todas as forças do ser, as nervuras últimas do Espírito. Nesse dédalo de muralhas móveis e sempre removidas, fora de todas as formas conhecidas do pensamento, nosso Espírito se agita, espreitando seus movimentos mais secretos e espontâneos, aqueles com um caráter de revelação, essa ária vinda de longe, caída do céu”. Numa outra de suas cartas, consideradas com uma de suas marcas, Artaud escreve Aos Diretores de Asilos de Loucos, e começa afirmando que: “As leis e os costumes, concedem-lhes o direito de medir o espírito. Esta jurisdição soberana e terrível, vocês a exercem segundo vossos próprios padrões de entendimento. Não nos façam rir. A credulidade dos povos civilizados, dos especialistas, dos governantes, enfeita a psiquiatria de inexplicáveis luzes sobrenaturais. A profissão que vocês exercem está julgada de antemão. Não pensamos em discutir aqui o valor dessa ciência, nem a duvidosa existência das doenças mentais. Porém para cada cem pretendidas patogenias, onde se desencadeia a confusão da matéria e do espírito, para cada cem classificações, onde as mais vagas são também as únicas utilizáveis, quantas tentativas nobres se contam para conseguir melhor compreensão do mundo irreal onde vivem aqueles que vocês encarceraram? Quantos de vocês, por exemplo, consideram que o sonho do demente precoce ou as imagens que o perseguem são algo mais que uma salada de palavras? Não nos surpreende ver até que ponto vocês estão empenhados numa tarefa para a qual só existem alguns poucos predestinados. Porém nos rebelamos contra o direito concedido a certos homens – capazes ou não – de dar por terminadas suas investigações no campo do espírito com um veredito de encarceramento perpétuo. E termina dizendo: “Esperamos que amanhã de manhã, na hora da visita médica, recordem isto, quando tratarem de conversar sem dicionário com esses homens sobre os quais – reconheçam – os senhores só têm a superioridade da força”. Ainda em relação ao seu desafio sobre a ideia de sanidade e loucura, Artaud faz o seu desafio: “Senhores! E o que é um autêntico louco? É um homem que preferiu enlouquecer no sentido em que a sociedade entende a palavra em vez de trair uma determinada idéia superior de honra humana. Assim, a sociedade mandou estrangular nos seus manicômios todos aqueles dos quais queria se desembaraçar ou se defender porque eles se recusavam a ser cúmplices em certos atos de suprema sujeira. Pois o louco é também o homem que a sociedade não quis ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades insuportáveis”. Na obra Para acabar com o julgamento de deus (que, inclusive, faz questão de escrever deus com letra minúscula), Artaud se insere contra a mitologia cristã via colonização europeia. Num dos trechos dessa obra radiofônica ele diz que: “E de onde vem essa objeção à imundície? Do fato de que o mundo não é ainda constituído, ou de que o homem não tem mais que uma pequena idéia do mundo e que ele quer eternamente guardar? Isso vem do que um homem, um belo dia, tem concluído a ideia de mundo. Duas rotas se oferecem a ele essa do infinito exterior essa do ínfimo interior. E ele tem preferido o ínfimo interior. Lá onde ele não tem que comprimir… o rato a língua o ânus ou a glande. E deus, ele mesmo apressou o movimento. Deus é um ser? Se ele é, é merda. Se ele não é ele não é. Ora, ele não é, mas como o vazio que avança com todas as suas formas”. Uma das questões mais interessantes que podemos notar nessa obra Para acabar com o julgamento de deus, é sua preocupação com uma cultura que, de alguma forma, ele acreditava estar livre do pensamento ocidental, em especial, o europeu. Trata-se do seu encontro com os Tarahumaras no México, quando os visitou em 1936. Obviamente, ele se decepcionou em algum sentido, considerando que os mesmos já estavam afetados pelos invasores europeus. E, baseado nisso, regata o Ritual do Tutuguri ou o Rito do Sol Negro, onde coloca em questão o encontro das culturas. E nessa obra ele cria a sentença do Corpo Sem Órgãos que muita gente tem se debruçado em explicar, infelizmente aos olhos da psicanálise ou da sociologia, perdendo assim a possibilidade de compreender o grito de seu espírito em busca de uma poética originária. Para Artaud, o Corpo Sem Órgãos significa submeter o homem a uma cirurgia. Mas não se trata de uma cirurgia medicinal e – sim – de uma operação ontológica, onde o homem deveria raspar toda a sua carne e recriar-se a partir do seu osso. Limpar-se de todos os desejos construídos pelos psicologismos e pelo mito da chamada civilização. Uma abolição dos desejos em prol da vontade, daquilo que está em potência nesses seres originários. De fato, a verdadeira obsessão de Artaud é a pureza. E, para alcançar essa pureza ele necessita destruir a imundície, mas para destruí-la ele precisa fazer com que ela apareça ao dia em toda a sua imensa sujeira, tirá-la do estado enrustido ou recalcado como instrumento de defesa e trazê-la à tona para despedaçá-la. Por isso, muitas vezes, o exercício da obscenidade, da porcaria, espalhando a fecalidade em abundância. A vontade de Artaud era fazer voar em explosão a antiga ordem criada por “deus”, para reedificar um corpo novo, como assim ele disse em alto e bom som: – “eu reconstruirei o homem que sou” – e enfim puro. Mas ele também acredita que essa reconstrução do corpo passa por uma reinvenção da linguagem. As palavras estão gastas e organizadas em silogismos de uma lógica formal. E nesse sentido ele acredita que o sentido de palavra se dá na não-palavra, ou seja, para que a palavra exista, faz-se necessário que a mesma se despoje de sê-la enquanto tal. Em certo sentido, dá-se como um existencialismo, considerando que, ao se fazer palavra, a palavra não se sustenta de uma função ou um significado a priori. A palavra é uma pá que lavra, é uma pá diante do terreno baldio e desconhecido da existência, onde se cria sulcos para uma tentativa de conhecimento e apreensão disso que não sabemos o que é, desse vir a ser do espírito que se manifesta, mesmo através de recursos da glossolalia, como, por exemplo, ainda em Pour en finir avec le jugement de dieu (Para acabar com o julgamento de deus): O reche modo to edire di za tan dari do padera coco.     Para Artaud, essas glossolalias, ou seja, essas palavras-gritos são os gritos-sopros que certamente surpreenderão, não como mero espanto, mas como possibilidade de se perceber a potência dos ritmos e a fabulosa riqueza da invenção silábica, da liberdade do espírito para criar e colocar-se no mundo. Mas para se ter essas experiências, principalmente, no que se diz respeito ao teatro, Artaud acreditava que seria preciso Acabar com as obras primas, um dos capítulos de O Teatro e seu Duplo, pois – para ele – de alguma maneira nós somos culpados por acreditarmos que o que está escrito ou pintado ou formulado já fosse uma questão esgotada e que não fosse necessário romper com elas e começar de novo. Nesse capítulo, Acabar com as obras primas, ele diz que: “É preciso acabar com a ideia das obras-primas reservadas a uma assim chamada elite e que a massa não entende; e admitir que não existe, no espírito, uma zona reservada, como para as ligações sexuais clandestinas. As obras-primas do passado são boas para o passado, não para nós. Temos o direito de dizer o que foi dito e mesmo o que não foi dito de um modo que seja nosso, imediato, direto, que responda aos modos de sentir atuais e que todo o mundo compreenda.” Artaud acredita que se o povo se desacostumou e não lhe interessa ir ao teatro e considerá-lo como uma arte inferior e usado meramente como uma saída para nossos maus instintos, é porque fomos habituados desde a Renascença a pensar no teatro como puramente descritivo, como uma mentira e uma ilusão que não faz outra coisa senão tentar narrar a psicologia do nosso tempo. E, da psicologia, ele acredita que ela cumpre o vergonhoso papel de reduzir o desconhecido ao conhecido. Da mesma forma como o teatro vem cumprindo essa tarefa de fazer viver em cena seres plausíveis, com o espetáculo de um lado e a plateia do outro, sem o ritual onde todos estão incluídos. E novamente ele se manifesta iconoclasta, primeiro, com Sófocles: “É idiotice censurar a massa por não ter o senso do sublime, quando se confunde o sublime com uma de suas manifestações formais que são, aliás, e sempre, manifestações mortas. E se, por exemplo, a massa de hoje já não compreende Édipo rei, ouso dizer que a culpa é de Édipo rei e não da massa. Em Édipo rei há o tema do Incesto e a ideia de que a natureza zomba da moral; e que em algum lugar há forças errantes com as quais seria bom tomar cuidado; que se dê a essas forças o nome de destino ou outro qualquer. Além disso, há a presença de uma epidemia de peste que é uma encarnação física dessas forças. Mas tudo isso sob disfarces e numa linguagem que perderam qualquer contato com o ritmo epiléptico e grosseiro deste tempo. Sófocles talvez fale alto, mas com modos que já não são desta época. Ele fala fino demais para esta época, e parece que ele fala de lado”. E, depois, com o famoso bardo inglês: “O próprio Shakespeare é responsável por esta aberração e degradação, por essa ideia desinteressada do teatro que quer que uma representação teatral deixe o público intacto, sem que uma imagem lançada provoque qualquer abalo no organismo, imprimindo nele uma marca que não mais se apagará. Se em Shakespeare o homem às vezes se preocupa com aquilo que o ultrapassa, trata-se sempre, definitivamente, das consequências dessa preocupação no homem, isto é, a psicologia. (…) Se Shakespeare e seus imitadores nos insinuaram através dos tempos uma ideia da arte pela arte, com a arte de um lado e a vida do outro, podíamos ficar tranquilos com a ideia ineficaz e preguiçosa enquanto a vida lá fora se mantinha. Mas agora vemos muito bem os sinais indicadores de que o que nos mantinha vivos já não se mantém, de que estamos todos loucos, desesperados e doentes. E eu nos convido a reagir”. No que diz respeito à filosofia, também parece importante localizar Artaud neste suposto “amor à sabedoria”. De imediato, podemos afirmar que – apesar de demonstrar ter lido obras de Platão, Aristóteles, Sören Kierkegaard e alguns outros – suas grandes influências ou talvez coincidência, considerando sua postura de rebeldia contra o instituído – dois filósofos que marcadamente estão presente em sua obra são Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietsche. De Schopenhauer podemos nos ater em As dores do mundo, quando o filósofo nos apresenta uma série de reflexões sobre a existência, propondo uma nova forma de se pensar a dor e a felicidade, embora essa última não seja um tema muito comum ao discurso de Artaud. Mas coincidindo com Artaud, os dois defendem a ideia de que ao contrário do bem, o mal é que deve ser considerado positivo, uma vez que somente ele se faz, de fato, sentir. A outra obra de Schopenhauer que também nos aproxima de uma análise sobre Artaud, está em O mundo como vontade e representação, quando o filósofo afirma a superioridade da vontade em detrimento da razão, inclusive, pela ideia de que toda a vida é vontade e que razão serve somente para justificá-la ou reprimi-la, considerando que toda essa substância primordial chamada Vontade se estende a todos os demais seres, concebendo-a, assim, como essência não só do homem, mas do mundo. No caso de Nietsche, independente de outras obras que Artaud tenha lido desse filósofo, podemos nos amparar, levando em conta o tema do teatro, em O Nascimento da Tragédia. Mas apesar de supostamente a crueldade de Artaud parecer uma derivação da crueldade dionisíaca de Nietsche, em muito eles se diferem. Se, para Nietsche, em O Nascimento da Tragédia, os gregos conheceram e sentiram a angústia e os horrores da existência a partir de uma perturbação do homem perante os poderes titânicos da natureza, representados por Moira, Prometeu, Édipo e tantos outros fazendo aparecer o espírito apolíneo como uma possibilidade de reagir em prol da vida, projetando as imagens luminosas sobre essa “parede obscura” que representa “uma visão profunda do horrível da natureza”, Artaud as renega para reencontrar o trágico na sua pureza, ou seja, entender a violência como algo que é natural. De certa forma, Nietsche diante de Artaud parece apenas ser dialético. Mas o que é a dialética senão a busca de uma síntese da contradição de dois lados de uma mesma moeda? Se a dialética é a arte do diálogo, esse somente se realiza dentro de um mesmo plano, ou seja, só consegue entender a diferença entre os iguais. Em termos de filosofia, assim como dizia Karl Marx, que “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo”, poderíamos dizer que Artaud propõe colocar em xeque a própria ideia de interpretação do mundo, considerando que, para ele, o verdadeiro pensamento é aquele que não se reduz à reiteração das categorias pré-existentes, tendo em vista que acredita que o pensamento criador nasce nos vácuos e nos novos espaços e a própria inquietude humana inaugura na tentativa de compreender a existência. Podemos dizer que Artaud se dissocia dessa herança da filosofia de um pensamento que pensa somente em torno de si mesmo, na medida em que ele propõe a uma espécie de não-pensar. Mas esse não-pensar é não pensar sobre o pensado e, sim, pensar o não pensado, ou seja, dar voz à própria existência ao espírito do ser que não se sente contemplado diante da racionalidade de um mundo conceitual e impostor. Finalmente, levando em conta o momento atual e a pandemia, soa plausível pensar em O Teatro e a Peste, um capítulo do livro O Teatro e seu Duplo, de Antonin Artaud. Neste texto, Artaud se refere à peste de 1947, em Florença, e a de 1720, em Marselha. Apesar de acontecimentos de uma certa forma datados, para Artaud, os acontecimentos em si mesmos não são o mais importante. Conforme sua proposta na formação do Teatro Alfred Jarry, ele diz: “Mas diriam, um teatro tão afastado da vida e dos fatos das preocupações atuais das preocupações e dos acontecimentos no que elas encerram de mais protundo e que é o atributo de alguns. Porei em cena acontecimentos e não homens. E será o assunto escolhido devido à sua atualidade e por todas as alusões que ele comporta. O que interessa nos acontecimentos atuais não são os acontecimentos em si mesmos, mas o estado de ebulição moral no qual eles mergulham o espírito dos homens. O grau de tensão extrema é o estado de caos consciente no qual não cessam de nos envolver. Pois bem, é dessa atualidade patética e mítica que o teatro se desviou e é com justa razão que o público se desinteressa de um teatro que ignora a realidade a esse ponto.” Por isso, faz uma ácida crítica ao teatro convencional, do qual não comunga e até combate e, com Robert Aron e Roger Vitrac, depois de ter rompido com o movimento surrealista de André Breton, pronuncia: “O teatro convencional serve aos idiotas loucos invertidos indivíduos com instrução primária e antipoetas positivistas ocidentais, pois este teatro fede e, inacreditalvemente, ao homem provisório material eu diria até que fede a carne putrefata e homem. O teatro tradicional está num adiantado estado de decadência. Imita uma sinistra realidade e ao realizar peças estórias de interesse humano cenas íntimas das vidas de alguns títeres converte o público em fantoches e bisbilhoteiros.” Nesse sentido, para Artaud, a peste parece um mal necessário, considerando que para ele, o teatro, assim como a peste, é uma condição decisiva, ou seja, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura. Ele acredita que sob a ação do flagelo os princípios que norteiam a sociedade se desfazem e a ordem até então acreditada como o melhor dos mundos possíveis se desmoronam. Como ele afirma em O teatro e a Peste: “Mesmo destruído, mesmo aniquilado e pulverizado organicamente, e queimado em suas entranhas, ele sabe que não se morre nos sonhos, que neles a vontade atua até o absurdo, até a negação do possível, até uma espécie de transmutação da mentira com a qual se refaz a verdade”. De algum modo, nesse texto, Artaud referenda o teatro para além de uma mera representação platônica do mundo, dividido entre o mundo das ideias e o mundo dos sentidos, assim como refuta o maniqueísmo que separa o mundo do bem do mundo do mal. Artaud descontrói essas fronteiras, assim como, também desafaz os discursos apolíneos da arte como a beleza que não passa de um acordo estético. Para ele, o teatro não só é uma possibilidade de destruição desse mundo conformado com as tragédias como se fora meramente um desígnio dos deuses, mas também propõe a construção de uma nova forma de nos organizarmos a partir do caos que é muito mais verdadeiro e honesto com a vida do que os tempos de bonança. Daí, tira proveito da peste: “A peste toma imagens adormecidas, uma desordem latente e as leva de repente aos gestos mais extremos; o teatro também toma gestos e os esgota: assim como a peste, o teatro refaz o elo entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o que existe na natureza materializada. O teatro reencontra a noção das figuras e dos símbolos-tipos, que agem como se fossem pausas, sinais de suspensão, paradas cardíacas, acessos de humor, acessos inflamatórios de imagens em nossas cabeças bruscamente despertadas; o teatro nos restitui todos os conflitos em nós adormecidos com todas as suas forças, e ele dá a essas forças nomes que saudamos como se fossem símbolos: e diante de nós trava-se então uma batalha de símbolos, lançados uns contra os outros num pisoteamento impossível; pois só pode haver teatro a partir do momento em que realmente começa o impossível e em que a poesia que acontece em cena alimenta e aquece símbolos realizados. Esses símbolos que são signos de forças maduras, mas até então subjugadas e sem uso na realidade, explodem sob o aspecto de imagens incríveis que dão direito de cidadania e de existência a atos hostis por natureza à vida das sociedades. Uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido, leva a uma espécie de revolta virtual e que aliás só poderá assumir todo o seu valor se permanecer virtual, impõe às coletividades reunidas uma atitude heroica e difícil”. Concluindo, considerando a proposta de falar sobre O Teatro de Artaud – Entre a Mitologia e a Peste, cabe ressaltar Artaud como um iconoclasta e adepto de um sentido de vida que ainda está para ser conhecido, inclusive, para livrá-lo da mitologia entendida como a construção de um mundo cujos mitos exercem o papel de superação das fraquezas humanas, creio que para situá-lo no tempo e no espaço, está mais para a utopia como o “ου” (não) e “τοπος” (lugar), na etimologia grega, o não-lugar, ou seja, um lugar que não existe na realidade. Mas para Artaud a utopia é o não-lugar que precisa ser construído pelo teatro. Não é por acaso que ele afirma num de seus textos: “É preciso acreditar num sentido renovado pelo teatro onde o homem impavidamente torna-se senhor daquilo que ainda não existe e o faz nascer e tudo que ainda não nasceu vir a nascer contanto que não nos contentamos com ser simples órgãos de registro.  

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Resumo: O artigo tem como objetivo contribuir para uma reflexão sobre o teatro proposto por Antonin Artaud e sua relação com a mitologia e a peste. Se, por um lado, a mitologia pode ser entendida como uma narrativa que explica como o mundo e a humanidade foram construídos para a forma que então conhecemos, convém analisar que em muitos de seus escritos Artaud se manifesta como um verdadeiro iconoclasta, que em sua origem grega eikon (ícone ou imagem) e klastein (quebrar) significa “quebrador de imagem”. Quanto à peste Artaud acredita na sua capacidade de instalar a desordem e provocar conflitos para, assim, permitir a revelação de verdades socialmente insuportáveis, como propunha em seu “teatro da crueldade”.

O TEATRO DE ARTAUD – ENTRE A MITOLOGIA E A PESTE

Wilson Coêlho

Se pensarmos a mitologia como uma narrativa que explica como o mundo e a humanidade foram construídos para a forma que então conhecemos, podemos também concordar com a ideia de que, na tentativa de entender o significado de sua existência, o ser humano sentiu a necessidade de projetar-se para fora de si mesmo. Assim, a origem do mito pode estar no desejo e na necessidade do ser humano de enfrentar o mundo, bem como, para fugir do medo e insegurança frente às forças da natureza que até hoje são assustadoras. De certa forma, a criação dos mitos também pode ser vista como a necessidade de inventar e depositar nos mesmos uma espécie de compensação para a fragilidade dos humanos, ao mesmo tempo que lhe dão a possibilidade de se acreditarem entendendo ao mundo e a si mesmos, como se fora a possibilidade de se acomodarem e se tranquilizarem perante os mistérios da vida. Nesse sentido, a mitologia se sustenta basicamente em dois pilares: a cosmogonia e a teogonia. E, entendendo a cosmogonia como uma tentativa de organização do caos a partir de alguns modelos relacionados à existência com origem no cosmos ou no universo. Trata-se de uma especulação sobre a formação do mundo. A teogonia, por sua vez, se dá na criação de divindades para a representação de fenômenos ou aspectos da natureza, de certa forma, humanizada, para expressar as ideias sobre a constituição de regentes para o universo. Havemos de também convir que tudo isso passa pela cultura, ou seja, que o universo não se trata de um absoluto, considerando que cada povo se organizou a partir da criação de seus próprios universos ou mundos. Assim, existem tantos universos ou mundos quanto existem culturas. Obviamente, muitas delas vem sendo assassinadas a mediante o projeto colonialista e hegemônico do mundo ocidental capitalista.

Depois, surge a filosofia como uma necessidade de superação dos mitos e rompimento com a teodiceia. Nessa tentativa de abandonar e superar a crença mítica, a filosofia busca a razão e a lógica como pressupostos básicos para o pensar. Muito embora não devamos nos esquecer que muitas das “civilizações” ou culturas em nosso planeta propõem alguns pensamentos filosóficos ainda ligados à tradição religiosa de seus povos.

Mas como situar Antonin Artaud nesse contexto? Primeiramente, acredito que o passo fundamental é desmitificar o próprio Artaud e trazê-lo para o plano humano, para que sua obra seja entendida nessa condição e não como mito que é o espaço do inalcançável. Não que sua obra seja de fácil apreensão, mas que é resultado de uma vivência e de experiências realizadas dentro de um contexto histórico e que se produziu a partir de uma busca e posicionamento contra a cultura e o pensamento de uma sociedade aprisionada e engessada em conceitos em que predomina um modelo escravagista e tirano em prol de um establishment que, para além do humano, têm as preocupações voltadas para uma ordem ideológica e  política que constitui uma elite tanto econômica quanto intelectual através do controle de um Estado.

Nesse sentido de desmitificar Artaud, podemos creditar à Florence de Méredieu um certo pioneirismo desta tarefa, considerando a grande e imprescindível obra C’était Antonin Artaud (publicada no Brasil pela Perspectiva sob o título Eis Antonin Artaud). Com essa edição, podemos dizer que a França resgata uma dívida com o escritor, dramaturgo, poeta, missivista, roteirista, encenador, ator de teatro e cinema, figurinista, cenógrafo, desenhista, pensador e criador do “Teatro da Crueldade”.

E, voltando a Artaud, a partir dele mesmo, podemos citar a sua conhecida Carta aos Reitores das Universidades Europeias, onde começa dizendo:

“Na estreita cisterna que os Senhores chamam de “Pensamento”, os raios espirituais apodrecem como a palha.

Chega de jogos de linguagem, de artifícios da sintaxe, de prestidigitações com fórmulas, agora é preciso encontrar a grande Lei do coração, a Lei que não seja uma lei, uma prisão, mas um guia para o Espírito perdido no seu próprio labirinto. Além daquilo que a ciência jamais conseguirá alcançar, lá onde os feixes da razão se partem contra as nuvens, existe esse labirinto, núcleo central para o qual convergem todas as forças do ser, as nervuras últimas do Espírito. Nesse dédalo de muralhas móveis e sempre removidas, fora de todas as formas conhecidas do pensamento, nosso Espírito se agita, espreitando seus movimentos mais secretos e espontâneos, aqueles com um caráter de revelação, essa ária vinda de longe, caída do céu”.

Numa outra de suas cartas, consideradas com uma de suas marcas, Artaud escreve Aos Diretores de Asilos de Loucos, e começa afirmando que:

“As leis e os costumes, concedem-lhes o direito de medir o espírito. Esta jurisdição soberana e terrível, vocês a exercem segundo vossos próprios padrões de entendimento. Não nos façam rir. A credulidade dos povos civilizados, dos especialistas, dos governantes, enfeita a psiquiatria de inexplicáveis luzes sobrenaturais. A profissão que vocês exercem está julgada de antemão. Não pensamos em discutir aqui o valor dessa ciência, nem a duvidosa existência das doenças mentais. Porém para cada cem pretendidas patogenias, onde se desencadeia a confusão da matéria e do espírito, para cada cem classificações, onde as mais vagas são também as únicas utilizáveis, quantas tentativas nobres se contam para conseguir melhor compreensão do mundo irreal onde vivem aqueles que vocês encarceraram? Quantos de vocês, por exemplo, consideram que o sonho do demente precoce ou as imagens que o perseguem são algo mais que uma salada de palavras? Não nos surpreende ver até que ponto vocês estão empenhados numa tarefa para a qual só existem alguns poucos predestinados. Porém nos rebelamos contra o direito concedido a certos homens – capazes ou não – de dar por terminadas suas investigações no campo do espírito com um veredito de encarceramento perpétuo.

E termina dizendo:

“Esperamos que amanhã de manhã, na hora da visita médica, recordem isto, quando tratarem de conversar sem dicionário com esses homens sobre os quais – reconheçam – os senhores só têm a superioridade da força”.

Ainda em relação ao seu desafio sobre a ideia de sanidade e loucura, Artaud faz o seu desafio:

“Senhores! E o que é um autêntico louco?

É um homem que preferiu enlouquecer

no sentido em que a sociedade entende a palavra

em vez de trair uma determinada idéia

superior de honra humana.

Assim, a sociedade mandou estrangular

nos seus manicômios

todos aqueles dos quais queria

se desembaraçar ou se defender

porque eles se recusavam a ser cúmplices

em certos atos de suprema sujeira.

Pois o louco é também o homem

que a sociedade não quis ouvir

e que é impedido de enunciar

certas verdades insuportáveis”.

Na obra Para acabar com o julgamento de deus (que, inclusive, faz questão de escrever deus com letra minúscula), Artaud se insere contra a mitologia cristã via colonização europeia. Num dos trechos dessa obra radiofônica ele diz que:

“E de onde vem essa objeção à imundície? Do fato de que o mundo não é ainda constituído, ou de que o homem não tem mais que uma pequena idéia do mundo e que ele quer eternamente guardar? Isso vem do que um homem, um belo dia, tem concluído a ideia de mundo.

Duas rotas se oferecem a ele

essa do infinito exterior

essa do ínfimo interior.

E ele tem preferido o ínfimo interior. Lá onde ele não tem que comprimir…

o rato

a língua

o ânus

ou a glande.

E deus,

ele mesmo

apressou o movimento.

Deus é um ser?

Se ele é, é merda.

Se ele não é

ele não é.

Ora, ele não é, mas como o vazio que avança com todas as suas formas”.

Uma das questões mais interessantes que podemos notar nessa obra Para acabar com o julgamento de deus, é sua preocupação com uma cultura que, de alguma forma, ele acreditava estar livre do pensamento ocidental, em especial, o europeu. Trata-se do seu encontro com os Tarahumaras no México, quando os visitou em 1936. Obviamente, ele se decepcionou em algum sentido, considerando que os mesmos já estavam afetados pelos invasores europeus. E, baseado nisso, regata o Ritual do Tutuguri ou o Rito do Sol Negro, onde coloca em questão o encontro das culturas. E nessa obra ele cria a sentença do Corpo Sem Órgãos que muita gente tem se debruçado em explicar, infelizmente aos olhos da psicanálise ou da sociologia, perdendo assim a possibilidade de compreender o grito de seu espírito em busca de uma poética originária. Para Artaud, o Corpo Sem Órgãos significa submeter o homem a uma cirurgia. Mas não se trata de uma cirurgia medicinal e – sim – de uma operação ontológica, onde o homem deveria raspar toda a sua carne e recriar-se a partir do seu osso. Limpar-se de todos os desejos construídos pelos psicologismos e pelo mito da chamada civilização. Uma abolição dos desejos em prol da vontade, daquilo que está em potência nesses seres originários. De fato, a verdadeira obsessão de Artaud é a pureza. E, para alcançar essa pureza ele necessita destruir a imundície, mas para destruí-la ele precisa fazer com que ela apareça ao dia em toda a sua imensa sujeira, tirá-la do estado enrustido ou recalcado como instrumento de defesa e trazê-la à tona para despedaçá-la. Por isso, muitas vezes, o exercício da obscenidade, da porcaria, espalhando a fecalidade em abundância. A vontade de Artaud era fazer voar em explosão a antiga ordem criada por “deus”, para reedificar um corpo novo, como assim ele disse em alto e bom som: – “eu reconstruirei o homem que sou” – e enfim puro.

Mas ele também acredita que essa reconstrução do corpo passa por uma reinvenção da linguagem. As palavras estão gastas e organizadas em silogismos de uma lógica formal. E nesse sentido ele acredita que o sentido de palavra se dá na não-palavra, ou seja, para que a palavra exista, faz-se necessário que a mesma se despoje de sê-la enquanto tal. Em certo sentido, dá-se como um existencialismo, considerando que, ao se fazer palavra, a palavra não se sustenta de uma função ou um significado a priori. A palavra é uma pá que lavra, é uma pá diante do terreno baldio e desconhecido da existência, onde se cria sulcos para uma tentativa de conhecimento e apreensão disso que
não sabemos o que é, desse vir a ser do espírito que se manifesta, mesmo através de recursos da glossolalia, como, por exemplo, ainda em Pour en finir avec le jugement de dieu (Para acabar com o julgamento de deus):

O reche modo
to edire
di za
tan dari
do padera coco.

 

 

Para Artaud, essas glossolalias, ou seja, essas palavras-gritos são os gritos-sopros que certamente surpreenderão, não como mero espanto, mas como possibilidade de se perceber a potência dos ritmos e a fabulosa riqueza da invenção silábica, da liberdade do espírito para criar e colocar-se no mundo.

Mas para se ter essas experiências, principalmente, no que se diz respeito ao teatro, Artaud acreditava que seria preciso Acabar com as obras primas, um dos capítulos de O Teatro e seu Duplo, pois – para ele – de alguma maneira nós somos culpados por acreditarmos que o que está escrito ou pintado ou formulado já fosse uma questão esgotada e que não fosse necessário romper com elas e começar de novo. Nesse capítulo, Acabar com as obras primas, ele diz que:

“É preciso acabar com a ideia das obras-primas reservadas a uma assim chamada elite e que a massa não entende; e admitir que não existe, no espírito, uma zona reservada, como para as ligações sexuais clandestinas.

As obras-primas do passado são boas para o passado, não para nós. Temos o direito de dizer o que foi dito e mesmo o que não foi dito de um modo que seja nosso, imediato, direto, que responda aos modos de sentir atuais e que todo o mundo compreenda.”

Artaud acredita que se o povo se desacostumou e não lhe interessa ir ao teatro e considerá-lo como uma arte inferior e usado meramente como uma saída para nossos maus instintos, é porque fomos habituados desde a Renascença a pensar no teatro como puramente descritivo, como uma mentira e uma ilusão que não faz outra coisa senão tentar narrar a psicologia do nosso tempo. E, da psicologia, ele acredita que ela cumpre o vergonhoso papel de reduzir o desconhecido ao conhecido. Da mesma forma como o teatro vem cumprindo essa tarefa de fazer viver em cena seres plausíveis, com o espetáculo de um lado e a plateia do outro, sem o ritual onde todos estão incluídos. E novamente ele se manifesta iconoclasta, primeiro, com Sófocles:

“É idiotice censurar a massa por não ter o senso do sublime, quando se confunde o sublime com uma de suas manifestações formais que são, aliás, e sempre, manifestações mortas. E se, por exemplo, a massa de hoje já não compreende Édipo rei, ouso dizer que a culpa é de Édipo rei e não da massa.

Em Édipo rei há o tema do Incesto e a ideia de que a natureza zomba da moral; e que em algum lugar há forças errantes com as quais seria bom tomar cuidado; que se dê a essas forças o nome de destino ou outro qualquer.

Além disso, há a presença de uma epidemia de peste que é uma encarnação física dessas forças. Mas tudo isso sob disfarces e numa linguagem que perderam qualquer contato com o ritmo epiléptico e grosseiro deste tempo. Sófocles talvez fale alto, mas com modos que já não são desta época. Ele fala fino demais para esta época, e parece que ele fala de lado”.

E, depois, com o famoso bardo inglês:

“O próprio Shakespeare é responsável por esta aberração e degradação, por essa ideia desinteressada do teatro que quer que uma representação teatral deixe o público intacto, sem que uma imagem lançada provoque qualquer abalo no organismo, imprimindo nele uma marca que não mais se apagará.

Se em Shakespeare o homem às vezes se preocupa com aquilo que o ultrapassa, trata-se sempre, definitivamente, das consequências dessa preocupação no homem, isto é, a psicologia.

(…)

Se Shakespeare e seus imitadores nos insinuaram através dos tempos uma ideia da arte pela arte, com a arte de um lado e a vida do outro, podíamos ficar tranquilos com a ideia ineficaz e preguiçosa enquanto a vida lá fora se mantinha. Mas agora vemos muito bem os sinais indicadores de que o que nos mantinha vivos já não se mantém, de que estamos todos loucos, desesperados e doentes. E eu nos convido a reagir”.

No que diz respeito à filosofia, também parece importante localizar Artaud neste suposto “amor à sabedoria”. De imediato, podemos afirmar que – apesar de demonstrar ter lido obras de Platão, Aristóteles, Sören Kierkegaard e alguns outros – suas grandes influências ou talvez coincidência, considerando sua postura de rebeldia contra o instituído – dois filósofos que marcadamente estão presente em sua obra são Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietsche.

De Schopenhauer podemos nos ater em As dores do mundo, quando o filósofo nos apresenta uma série de reflexões sobre a existência, propondo uma nova forma de se pensar a dor e a felicidade, embora essa última não seja um tema muito comum ao discurso de Artaud. Mas coincidindo com Artaud, os dois defendem a ideia de que ao contrário do bem, o mal é que deve ser considerado positivo, uma vez que somente ele se faz, de fato, sentir. A outra obra de Schopenhauer que também nos aproxima de uma análise sobre Artaud, está em O mundo como vontade e representação, quando o filósofo afirma a superioridade da vontade em detrimento da razão, inclusive, pela ideia de que toda a vida é vontade e que razão serve somente para justificá-la ou reprimi-la, considerando que toda essa substância primordial chamada Vontade se estende a todos os demais seres, concebendo-a, assim, como essência não só do homem, mas do mundo.

No caso de Nietsche, independente de outras obras que Artaud tenha lido desse filósofo, podemos nos amparar, levando em conta o tema do teatro, em O Nascimento da Tragédia. Mas apesar de supostamente a crueldade de Artaud parecer uma derivação da crueldade dionisíaca de Nietsche, em muito eles se diferem. Se, para Nietsche, em O Nascimento da Tragédia, os gregos conheceram e sentiram a angústia e os horrores da existência a partir de uma perturbação do homem perante os poderes titânicos da natureza, representados por Moira, Prometeu, Édipo e tantos outros fazendo aparecer o espírito apolíneo como uma possibilidade de reagir em prol da vida, projetando as imagens luminosas sobre essa “parede obscura” que representa “uma visão profunda do horrível da natureza”, Artaud as renega para reencontrar o trágico na sua pureza, ou seja, entender a violência como algo que é natural. De certa forma, Nietsche diante de Artaud parece apenas ser dialético. Mas o que é a dialética senão a busca de uma síntese da contradição de dois lados de uma mesma moeda? Se a dialética é a arte do diálogo, esse somente se realiza dentro de um mesmo plano, ou seja, só consegue entender a diferença entre os iguais.

Em termos de filosofia, assim como dizia Karl Marx, que “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo”, poderíamos dizer que Artaud propõe colocar em xeque a própria ideia de interpretação do mundo, considerando que, para ele, o verdadeiro pensamento é aquele que não se reduz à reiteração das categorias pré-existentes, tendo em vista que acredita que o pensamento criador nasce nos vácuos e nos novos espaços e a própria inquietude humana inaugura na tentativa de compreender a existência. Podemos dizer que Artaud se dissocia dessa herança da filosofia de um pensamento que pensa somente em torno de si mesmo, na medida em que ele propõe a uma espécie de não-pensar. Mas esse não-pensar é não pensar sobre o pensado e, sim, pensar o não pensado, ou seja, dar voz à própria existência ao espírito do ser que não se sente contemplado diante da racionalidade de um mundo conceitual e impostor.

Finalmente, levando em conta o momento atual e a pandemia, soa plausível pensar em O Teatro e a Peste, um capítulo do livro O Teatro e seu Duplo, de Antonin Artaud. Neste texto, Artaud se refere à peste de 1947, em Florença, e a de 1720, em Marselha. Apesar de acontecimentos de uma certa forma datados, para Artaud, os acontecimentos em si mesmos não são o mais importante. Conforme sua proposta na formação do Teatro Alfred Jarry, ele diz:

“Mas diriam, um teatro tão afastado da vida e dos fatos

das preocupações atuais

das preocupações e dos acontecimentos

no que elas encerram de mais protundo

e que é o atributo de alguns.

Porei em cena acontecimentos e não homens.

E será o assunto escolhido devido à sua atualidade

e por todas as alusões que ele comporta.

O que interessa nos acontecimentos atuais

não são os acontecimentos em si mesmos,

mas o estado de ebulição moral

no qual eles mergulham o espírito dos homens.

O grau de tensão extrema

é o estado de caos consciente

no qual não cessam de nos envolver.

Pois bem, é dessa atualidade patética e mítica

que o teatro se desviou

e é com justa razão que o público se desinteressa

de um teatro que ignora a realidade a esse ponto.”

Por isso, faz uma ácida crítica ao teatro convencional, do qual não comunga e até combate e, com Robert Aron e Roger Vitrac, depois de ter rompido com o movimento surrealista de André Breton, pronuncia:

“O teatro convencional serve aos idiotas

loucos

invertidos

indivíduos com instrução primária

e antipoetas positivistas ocidentais,

pois este teatro fede e, inacreditalvemente,

ao homem provisório

material

eu diria até que fede

a carne putrefata e homem.

O teatro tradicional está num adiantado estado

de decadência.

Imita uma sinistra realidade e ao realizar peças

estórias de interesse humano

cenas íntimas das vidas de alguns títeres converte

o público em fantoches e bisbilhoteiros.”

Nesse sentido, para Artaud, a peste parece um mal necessário, considerando que para ele, o teatro, assim como a peste, é uma condição decisiva, ou seja, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura. Ele acredita que sob a ação do flagelo os princípios que norteiam a sociedade se desfazem e a ordem até então acreditada como o melhor dos mundos possíveis se desmoronam. Como ele afirma em O teatro e a Peste:

“Mesmo destruído, mesmo aniquilado e pulverizado organicamente, e queimado em suas entranhas, ele sabe que não se morre nos sonhos, que neles a vontade atua até o absurdo, até a negação do possível, até uma espécie de transmutação da mentira com a qual se refaz a verdade”.

De algum modo, nesse texto, Artaud referenda o teatro para além de uma mera representação platônica do mundo, dividido entre o mundo das ideias e o mundo dos sentidos, assim como refuta o maniqueísmo que separa o mundo do bem do mundo do mal. Artaud descontrói essas fronteiras, assim como, também desafaz os discursos apolíneos da arte como a beleza que não passa de um acordo estético. Para ele, o teatro não só é uma possibilidade de destruição desse mundo conformado com as tragédias como se fora meramente um desígnio dos deuses, mas também propõe a construção de uma nova forma de nos organizarmos a partir do caos que é muito mais verdadeiro e honesto com a vida do que os tempos de bonança. Daí, tira proveito da peste:

“A peste toma imagens adormecidas, uma desordem latente e as leva de repente aos gestos mais extremos; o teatro também toma gestos e os esgota: assim como a peste, o teatro refaz o elo entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o que existe na natureza materializada. O teatro reencontra a noção das figuras e dos símbolos-tipos, que agem como se fossem pausas, sinais de suspensão, paradas cardíacas, acessos de humor, acessos inflamatórios de imagens em nossas cabeças bruscamente despertadas; o teatro nos restitui todos os conflitos em nós adormecidos com todas as suas forças, e ele dá a essas forças nomes que saudamos como se fossem símbolos: e diante de nós trava-se então uma batalha de símbolos, lançados uns contra os outros num pisoteamento impossível; pois só pode haver teatro a partir do momento em que realmente começa o impossível e em que a poesia que acontece em cena alimenta e aquece símbolos realizados.

Esses símbolos que são signos de forças maduras, mas até então subjugadas e sem uso na realidade, explodem sob o aspecto de imagens incríveis que dão direito de cidadania e de existência a atos hostis por natureza à vida das sociedades.

Uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido, leva a uma espécie de revolta virtual e que aliás só poderá assumir todo o seu valor se permanecer virtual, impõe às coletividades reunidas uma atitude heroica e difícil”.

Concluindo, considerando a proposta de falar sobre O Teatro de Artaud – Entre a Mitologia e a Peste, cabe ressaltar Artaud como um iconoclasta e adepto de um sentido de vida que ainda está para ser conhecido, inclusive, para livrá-lo da mitologia entendida como a construção de um mundo cujos mitos exercem o papel de superação das fraquezas humanas, creio que para situá-lo no tempo e no espaço, está mais para a utopia como o “ου” (não) e “τοπος” (lugar), na etimologia grega, o não-lugar, ou seja, um lugar que não existe na realidade. Mas para Artaud a utopia é o não-lugar que precisa ser construído pelo teatro. Não é por acaso que ele afirma num de seus textos:

“É preciso acreditar num sentido renovado

pelo teatro

onde o homem impavidamente torna-se senhor daquilo

que ainda não existe

e o faz nascer

e tudo que ainda não nasceu vir a nascer

contanto que não nos contentamos com ser

simples órgãos de registro.

 

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Tennessee Williams, do inferno da fama ao ostracismo https://teatrohoje.com.br/2019/11/29/tennessee-williams-do-inferno-da-fama-ao-ostracismo/ Sat, 30 Nov 2019 01:49:02 +0000 http://br1012.teste.website/~beeped34/beepecriaoc/teatrohoje/?p=76190 O dramaturgo norte-americano Tennessee Williams – que conheceu o céu e o inferno durante os 71 anos de sua existência – ainda trocava os dentes de leite quando aprendeu quais eram os ingredientes necessários para se construir um barril de pólvora humano. Sentiu isso na pele porque, afinal de contas, o barril era ele mesmo e a pólvora, claro, o inferno familiar em que estava metido. Sob o teto de uma casa emprestada pela comunidade ao avô materno, que era pastor, os Williams se digladiavam diariamente. O garotinho assustado conviveu com Cornelius Williams, um pai alcoólatra, infiel e ausente do lar; Edwina, uma mãe puritana, reprimida sexualmente e castradora; e Rose, sua irmã, que viria a revelar sérios problemas mentais na adolescência, além de Dakin, o último a nascer e o mais poupado dos infortúnios cotidianos que se abatiam sobre aquela família disfuncional. Cornelius, caixeiro viajante, percorria o país a maior parte do tempo, enquanto as três crianças ficavam aos cuidados da mãe, que os entretinha com leituras de Shakespeare e Charles Dickens. Quando isso acontecia, os anjos tocavam trombetas. Afinal, assim como os filhos, Edwina tolerava em silêncio os gritos do marido e sua selvageria verbal quando estava bêbado. Como bem relembra Dakin, era uma casa onde todo mundo gritava, em especial quando os boletos eram colocados debaixo da porta. A presença paterna na casa só trazia sobressaltos e medos. Tennessee, a vida inteira, insistiu que o pai gostava mais do irmão. Cornelius via no futuro escritor um rapaz fraco, de temperamento frágil e demasiadamente afeminado. Isso acabou empurrando-o para os livros, onde aquela criança franzina e insegura encontrou, enfim, um pouco de guarida e paz. Thomas Lanier Williams, o verdadeiro e pomposo nome do garotinho arredio e olhar triste, não sabia, claro, que estavam sendo erigidos dentro daquelas paredes de tormento os pilares do melhor e mais sólido teatro contemporâneo de que se tem notícia na dramaturgia do século XX. Essa torrente de sofrimento familiar cotidiano legou aos palcos do mundo inteiro verdadeiros clássicos da dramaturgia e personagens que, até hoje, encontram morada nos corações dos espectadores. Em todos os seus trabalhos, Tennessee Williams dissecou como ninguém o tormento, a dúvida, a dor e a carência humanas. O dramaturgo – que adotou o pseudônimo por conta de seu forte sotaque do Sul, motivo de gozação constante dos colegas da universidade de Iowa – escreveu, ao todo, 45 peças longas e 60 de apenas um ato, além de contos, romances, poesia, ensaios, roteiros cinematográficos e um livro de memórias. Foi sua resposta ao mundo para a falta de amor que o cercou. Homossexual assumido, nunca empunhou nenhuma bandeira – aliás, era um conservador nato acerca de costumes e muito reservado, exceto se estivesse bêbado –, mas isso não impediu que vivesse uma vida pessoal e profissional na plenitude. Tennessee Williams não mandava recado. Em seus arroubos, era quase que um macaco numa cristaleira e descompunha quem quer que fosse. Isso, evidente, se necessário fosse. E pagou um preço bastante alto por isso. Todo mundo sabe, mas ninguém diz. Se há uma coisa que o mundo das artes não aceita é a autenticidade. O mais louco dos loucos, entre os artistas, é sempre alguém que faz as estripulias de caso pensado. Você pode até pendurar uma melancia no pescoço, mas deve estar consciente de que, se ela for cortada, azar seu se a polpa não estiver muito doce para os comensais de ocasião. O dramaturgo norte-americano muitas vezes exibia a fruta no pescoço sem nenhum constrangimento – em especial quando aparecia bêbado em entrevistas televisivas. Quem o conhecia sabia que era só uma maneira de a criança que habitava nele defender-se. No entanto, que sumo saía dali, que ambrosia, que manjar dos deuses. Frasista incorrigível, um dia foi perguntado por um jornalista sobre sua homossexualidade. Desconversou, a ponto de se remexer na poltrona, mas se saiu com essa: “Olha, digamos que eu tenha conhecido todos os cais”. No movediço círculo das artes, quando se pergunta a alguém como está, ou a pessoa responde que ótima ou desconversa. A verdade não faz bem a ninguém e foi exatamente a sua verdade que Tennessee Williams esfregou na cara de todo mundo por meio de suas peças. No mesmo diapasão, colheu amor e ódio. A Nova York puritana que lhe abriu as portas do sucesso, no início dos anos 1940, foi a mesma que lhe deu corda para que se enforcasse no começo dos anos 1960, quando a crítica começou a relegá-lo ao ostracismo, acelerando sua queda vertiginosa para o álcool e as drogas. A década de 1960, apesar de todos os seus esforços, não devolveu a fama ao autor. Diga o que se quiser, mas esse período de cerca de duas décadas foi suficiente para que Tennessee Williams dissesse a que veio e nos legasse obras-primas. Ele nunca capitulou. Insistente, sua carreira se estendeu até sua morte – com seus novos trabalhos apresentados em obscuros teatros longe da Broadway e já sem o fôlego necessário para voltar a brilhar. É importante, contudo, destacar que, com suas peças teatrais, Tennessee Williams ganhou os principais prêmios da dramaturgia norte-americana. Embolsou dois Pulitzer por Um Bonde Chamado Desejo (1948) e Gata em teto de zinco quente (1955). Fora isso, papou o premio da New York Drama Critics Circle por À Margem da vida (1944) e A noite do iguana (1961). Em 1952, A Rosa Tatuada recebeu o Tony Award de melhor peça. E o ex-presidente Jimmy Carter lhe concedeu também, em 1980, a Medalha Presidencial da Liberdade. Não é para qualquer um, não. Tennessee Williams teve dois grandes amores em sua vida. Rose, a irmã esquizofrênica que passou toda a sua juventude internada em hospitais psiquiátricos e Frank Merlo, um ator italiano com quem viveu de 1947 a 1963, data da morte de Merlo. Um dia, quando passava uma breve temporada em casa, no início dos anos 1940, Rose atacou o pai a facadas e por pouco não logrou seu intento. A família decidiu fazer lobotomia nela. Era uma intervenção que dava ainda seus primeiros passos. A operação incapacitou-a para o resto de sua vida. Tennessee Williams passou todo o seu calvário existencial apavorado pelo fantasma da loucura. O dramaturgo cuidou da irmã até sua morte. E foi nos braços de Merlo, que morreu por conta de um câncer de pulmão, que o dramaturgo encontrou paz de espírito.  Foi certamente, durante os dezesseis anos que passaram juntos, o período afetivo mais tranquilo desse furacão ambulante. À Margem da Vida, por ter catapultado o jovem Tennessee Williams à fama nos círculos intelectuais e glória nos palcos, também o colocou diante de holofotes que serviram mais para amargurar sua vida que propriamente lustrar seu ego. Ele nunca teve uma relação boa com o sucesso, ainda que gostasse, a ponto de sentir saudades da provinciana Saint Louis. Tinha muito medo de fracassar na peça seguinte. Depois de À Margem, produtores, crítica e público queriam porque queriam um novo texto. E, de quebra, outra obra-prima. Ele teve que se esconder em Saint Louis para parir mais uma história.  Em razão disso, e até para justificar seu terror, escreveu um ensaio memorável sobre esse período, chamado “A catástrofe do sucesso”. Nele, se queixa da saudade dos tempos de extrema pobreza em cubículos pelo país. Em um luxuoso quarto de hotel em Manhattan, teclou furibundo: “A vida que eu levara antes de atingir esse sucesso de público era do tipo que exigia resistência e tenacidade, que me fazia agarrar-me à superfície cheia de arestas que me feriam e me obrigavam a prender-me firmemente, com unhas e dentes, a cada centímetro de pedra colocada mais alto que a precedente – mas era uma vida substancialmente boa porque era do tipo para o qual o organismo humano é criado”. É que, saturado com os elogios, Tennessee Williams temia que os mantras de “adorei sua peça” o matassem por dentro e ele se visse incapaz de escrever outro texto. Para ele, a vida era curta e não voltava nunca mais, razão porque a pureza do coração “é o único sucesso que vale a pena termos”. A ironia é que as suas peças escritas depois de 1960, e praticamente ignoradas pelos produtores, começaram a ser montadas mal o público tinha assimilado seu falecimento.  Tennessee Williams brilhou nos palcos americanos nos anos 1940 e 1950. O publico o amava e parte da critica – que torcia o rosto por achar suas peças superficiais e por demais confessionais – empenhou-se em destruí-lo em trabalhos posteriores. De fracasso em fracasso, ele se escondeu no álcool e drogas e tudo o que escreveu depois da segunda metade dos anos 1960 era objeto de criticas mordazes. O dramaturgo norte-americano, nascido em 26 de março de 1911, em Columbus, no estado do Mississippi, foi encontrado morto supostamente engasgado com a tampa de um frasco de remédio num quarto do Hotel Elysée, em Nova York, no dia 25 de fevereiro de 1983. Antes de partir deste mundo, que o assustava como a uma criança quando chega a noite, tivesse tempo de abrir a janela do solitário quarto daquele hotel nova-iorquino, tendo aos seus pés a cidade que o amou para, em seguida, desprezá-lo, ele certamente gritaria a plenos pulmões a celebre frase de sua personagem principal, Blanche Dubois, quando é levada para um manicômio: “Seja o senhor quem for… eu sempre dependi da bondade dos estranhos…”. A cidade por certo silenciaria. Provavelmente por vergonha.

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Tennessee Williams

Foto de Richard Corkery

O dramaturgo norte-americano Tennessee Williams – que conheceu o céu e o inferno durante os 71 anos de sua existência – ainda trocava os dentes de leite quando aprendeu quais eram os ingredientes necessários para se construir um barril de pólvora humano. Sentiu isso na pele porque, afinal de contas, o barril era ele mesmo e a pólvora, claro, o inferno familiar em que estava metido.

Sob o teto de uma casa emprestada pela comunidade ao avô materno, que era pastor, os Williams se digladiavam diariamente. O garotinho assustado conviveu com Cornelius Williams, um pai alcoólatra, infiel e ausente do lar; Edwina, uma mãe puritana, reprimida sexualmente e castradora; e Rose, sua irmã, que viria a revelar sérios problemas mentais na adolescência, além de Dakin, o último a nascer e o mais poupado dos infortúnios cotidianos que se abatiam sobre aquela família disfuncional.

Cornelius, caixeiro viajante, percorria o país a maior parte do tempo, enquanto as três crianças ficavam aos cuidados da mãe, que os entretinha com leituras de Shakespeare e Charles Dickens. Quando isso acontecia, os anjos tocavam trombetas. Afinal, assim como os filhos, Edwina tolerava em silêncio os gritos do marido e sua selvageria verbal quando estava bêbado. Como bem relembra Dakin, era uma casa onde todo mundo gritava, em especial quando os boletos eram colocados debaixo da porta.

A presença paterna na casa só trazia sobressaltos e medos. Tennessee, a vida inteira, insistiu que o pai gostava mais do irmão. Cornelius via no futuro escritor um rapaz fraco, de temperamento frágil e demasiadamente afeminado. Isso acabou empurrando-o para os livros, onde aquela criança franzina e insegura encontrou, enfim, um pouco de guarida e paz.

Thomas Lanier Williams, o verdadeiro e pomposo nome do garotinho arredio e olhar triste, não sabia, claro, que estavam sendo erigidos dentro daquelas paredes de tormento os pilares do melhor e mais sólido teatro contemporâneo de que se tem notícia na dramaturgia do século XX. Essa torrente de sofrimento familiar cotidiano legou aos palcos do mundo inteiro verdadeiros clássicos da dramaturgia e personagens que, até hoje, encontram morada nos corações dos espectadores.

Em todos os seus trabalhos, Tennessee Williams dissecou como ninguém o tormento, a dúvida, a dor e a carência humanas. O dramaturgo – que adotou o pseudônimo por conta de seu forte sotaque do Sul, motivo de gozação constante dos colegas da universidade de Iowa – escreveu, ao todo, 45 peças longas e 60 de apenas um ato, além de contos, romances, poesia, ensaios, roteiros cinematográficos e um livro de memórias. Foi sua resposta ao mundo para a falta de amor que o cercou.

Homossexual assumido, nunca empunhou nenhuma bandeira – aliás, era um conservador nato acerca de costumes e muito reservado, exceto se estivesse bêbado –, mas isso não impediu que vivesse uma vida pessoal e profissional na plenitude. Tennessee Williams não mandava recado. Em seus arroubos, era quase que um macaco numa cristaleira e descompunha quem quer que fosse. Isso, evidente, se necessário fosse. E pagou um preço bastante alto por isso.

Todo mundo sabe, mas ninguém diz. Se há uma coisa que o mundo das artes não aceita é a autenticidade. O mais louco dos loucos, entre os artistas, é sempre alguém que faz as estripulias de caso pensado. Você pode até pendurar uma melancia no pescoço, mas deve estar consciente de que, se ela for cortada, azar seu se a polpa não estiver muito doce para os comensais de ocasião.

O dramaturgo norte-americano muitas vezes exibia a fruta no pescoço sem nenhum constrangimento – em especial quando aparecia bêbado em entrevistas televisivas. Quem o conhecia sabia que era só uma maneira de a criança que habitava nele defender-se. No entanto, que sumo saía dali, que ambrosia, que manjar dos deuses. Frasista incorrigível, um dia foi perguntado por um jornalista sobre sua homossexualidade. Desconversou, a ponto de se remexer na poltrona, mas se saiu com essa: “Olha, digamos que eu tenha conhecido todos os cais”.

No movediço círculo das artes, quando se pergunta a alguém como está, ou a pessoa responde que ótima ou desconversa. A verdade não faz bem a ninguém e foi exatamente a sua verdade que Tennessee Williams esfregou na cara de todo mundo por meio de suas peças. No mesmo diapasão, colheu amor e ódio.

A Nova York puritana que lhe abriu as portas do sucesso, no início dos anos 1940, foi a mesma que lhe deu corda para que se enforcasse no começo dos anos 1960, quando a crítica começou a relegá-lo ao ostracismo, acelerando sua queda vertiginosa para o álcool e as drogas. A década de 1960, apesar de todos os seus esforços, não devolveu a fama ao autor. Diga o que se quiser, mas esse período de cerca de duas décadas foi suficiente para que Tennessee Williams dissesse a que veio e nos legasse obras-primas. Ele nunca capitulou. Insistente, sua carreira se estendeu até sua morte – com seus novos trabalhos apresentados em obscuros teatros longe da Broadway e já sem o fôlego necessário para voltar a brilhar.

É importante, contudo, destacar que, com suas peças teatrais, Tennessee Williams ganhou os principais prêmios da dramaturgia norte-americana. Embolsou dois Pulitzer por Um Bonde Chamado Desejo (1948) e Gata em teto de zinco quente (1955). Fora isso, papou o premio da New York Drama Critics Circle por À Margem da vida (1944) e A noite do iguana (1961). Em 1952, A Rosa Tatuada recebeu o Tony Award de melhor peça. E o ex-presidente Jimmy Carter lhe concedeu também, em 1980, a Medalha Presidencial da Liberdade. Não é para qualquer um, não.

Tennessee Williams teve dois grandes amores em sua vida. Rose, a irmã esquizofrênica que passou toda a sua juventude internada em hospitais psiquiátricos e Frank Merlo, um ator italiano com quem viveu de 1947 a 1963, data da morte de Merlo.

Um dia, quando passava uma breve temporada em casa, no início dos anos 1940, Rose atacou o pai a facadas e por pouco não logrou seu intento. A família decidiu fazer lobotomia nela. Era uma intervenção que dava ainda seus primeiros passos. A operação incapacitou-a para o resto de sua vida. Tennessee Williams passou todo o seu calvário existencial apavorado pelo fantasma da loucura. O dramaturgo cuidou da irmã até sua morte. E foi nos braços de Merlo, que morreu por conta de um câncer de pulmão, que o dramaturgo encontrou paz de espírito.  Foi certamente, durante os dezesseis anos que passaram juntos, o período afetivo mais tranquilo desse furacão ambulante.

À Margem da Vida, por ter catapultado o jovem Tennessee Williams à fama nos círculos intelectuais e glória nos palcos, também o colocou diante de holofotes que serviram mais para amargurar sua vida que propriamente lustrar seu ego. Ele nunca teve uma relação boa com o sucesso, ainda que gostasse, a ponto de sentir saudades da provinciana Saint Louis. Tinha muito medo de fracassar na peça seguinte. Depois de À Margem, produtores, crítica e público queriam porque queriam um novo texto. E, de quebra, outra obra-prima. Ele teve que se esconder em Saint Louis para parir mais uma história.  Em razão disso, e até para justificar seu terror, escreveu um ensaio memorável sobre esse período, chamado “A catástrofe do sucesso”.

Nele, se queixa da saudade dos tempos de extrema pobreza em cubículos pelo país. Em um luxuoso quarto de hotel em Manhattan, teclou furibundo: “A vida que eu levara antes de atingir esse sucesso de público era do tipo que exigia resistência e tenacidade, que me fazia agarrar-me à superfície cheia de arestas que me feriam e me obrigavam a prender-me firmemente, com unhas e dentes, a cada centímetro de pedra colocada mais alto que a precedente – mas era uma vida substancialmente boa porque era do tipo para o qual o organismo humano é criado”. É que, saturado com os elogios, Tennessee Williams temia que os mantras de “adorei sua peça” o matassem por dentro e ele se visse incapaz de escrever outro texto. Para ele, a vida era curta e não voltava nunca mais, razão porque a pureza do coração “é o único sucesso que vale a pena termos”.

A ironia é que as suas peças escritas depois de 1960, e praticamente ignoradas pelos produtores, começaram a ser montadas mal o público tinha assimilado seu falecimento.  Tennessee Williams brilhou nos palcos americanos nos anos 1940 e 1950. O publico o amava e parte da critica – que torcia o rosto por achar suas peças superficiais e por demais confessionais – empenhou-se em destruí-lo em trabalhos posteriores. De fracasso em fracasso, ele se escondeu no álcool e drogas e tudo o que escreveu depois da segunda metade dos anos 1960 era objeto de criticas mordazes.

O dramaturgo norte-americano, nascido em 26 de março de 1911, em Columbus, no estado do Mississippi, foi encontrado morto supostamente engasgado com a tampa de um frasco de remédio num quarto do Hotel Elysée, em Nova York, no dia 25 de fevereiro de 1983. Antes de partir deste mundo, que o assustava como a uma criança quando chega a noite, tivesse tempo de abrir a janela do solitário quarto daquele hotel nova-iorquino, tendo aos seus pés a cidade que o amou para, em seguida, desprezá-lo, ele certamente gritaria a plenos pulmões a celebre frase de sua personagem principal, Blanche Dubois, quando é levada para um manicômio: “Seja o senhor quem for… eu sempre dependi da bondade dos estranhos…”. A cidade por certo silenciaria. Provavelmente por vergonha.

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O teatro moderno começou com Ibsen https://teatrohoje.com.br/2019/10/30/o-teatro-moderno-comecou-com-ibsen/ Wed, 30 Oct 2019 14:23:59 +0000 http://br1012.teste.website/~beeped34/beepecriaoc/teatrohoje/?p=74573 A contemporaneidade de um artista se mede principalmente pela sua capacidade de dialogar e responder a perguntas de uma sociedade que não é mais a de seu tempo. Poucos dramaturgos foram tão eficazes quanto Henrik Ibsen ao perceber as oscilações da alma humana na sociedade com tanta desenvoltura e acuidade, mas demorou bastante para que isso fosse detectado pelos especialistas e mais ainda pelas plateias, que não estavam preparadas para aceitar tamanha mudança gestada num país improvável e longe dos centros normalmente difusores de cultura: a Noruega. Foi Pirandello que levantou a lebre pela primeira vez: ele afirmou que não só Ibsen era o verdadeiro criador do teatro moderno como também o maior autor depois de Shakespeare. Foi o mais arguto intérprete dos dramas individuais e sociais de seu tempo e um profético antecipador da condição existencial do ser humano no século 20. Dois exemplos disso são Casa de Bonecas (1879), que prenuncia a emancipação feminina dos dias de hoje, e Um Inimigo do Povo (1882), que contrapõe a ética de um indivíduo que pretende delatar gambiarras municipais e o progresso a qualquer custo. De qualquer forma, seria um reducionismo sazonalmente conveniente limitar a proposta de seus textos a circunstâncias históricas e factuais. O discurso de Ibsen está todo focado no indivíduo, no interior do indivíduo: é este personagem que, ao encontrar a verdade em si mesmo, consegue transformar também a sociedade. A revolta de Nora contra uma concepção equivocada da fêmea no casamento é, antes de mais nada, uma tomada de consciência de uma mulher no confronto com uma realidade cada vez mais complexa e difícil de entender. Na crise de Nora, Ibsen colheu a crise do indivíduo, privado de suas certezas e obrigado a viver num mundo hostil e impenetrável. Ibsen teve que lutar muito para ser ouvido pelo resto da Europa. As condições políticas, econômicas e principalmente artísticas da Noruega lhe eram francamente desfavoráveis. Até meados do século 19, o país carecia de tudo. Em termos culturais, praticamente não existia um teatro nacional; o norueguês era (na melhor das hipóteses) considerado mais um dialeto do que uma língua e, sob o ponto de vista literário, a Noruega era apenas um puxadinho da Dinamarca; as condições sociais estavam uma lástima, a Noruega era um país frágil economicamente, que dependia (apesar da autonomia administrativa) da Suécia. E assim por diante. Além das dificuldades normais que um artista tem para criar, ele foi obrigado a inventar uma maneira de se fazer notado, pois o público extremamente provinciano não estava acostumado a se ver diante da busca da verdade e refletir sobre suas condições sociais e as contradições do espírito. Depois de Brand (1865) e Peer Gynt (1867), houve a reviravolta e Ibsen conseguiu afirmar-se definitivamente a nível europeu, que o elegeu como um autor capaz de incidir profundamente na sociedade e nos costumes de seu tempo. Obras como Os Pilares da Sociedade, Casa de Bonecas, Espectros e Um Inimigo do Povo são consideradas como grandes dramas de um autor maduro e genial, empenhado em construir uma espécie de mitologia de personagens que interagem e confrontam os equívocos da sociedade em pé de igualdade. Nora Helmer, Arnold Rubek, Elena Alving, doutor Stockmann, Hedda Gabler, Gina Ekdal, o construtor Solness, entre tantos outros, formam uma plêiade de personagens insuperáveis que dão vida a uma série de peças invulgares, ou, como escreveu James Joyce num ensaio de 1900: Na história do teatro antigo e moderno, poucas obras estão no grau de rivalizar as de Ibsen quanto à habilidade dramática, psicologia dos personagens e força de expressão. Nem tudo são louros, porém. Muitas de suas peças foram consideradas escandalosas na época em que foram lançadas, pois o teatro europeu restringia-se ao modelo determinado pela vida familiar burguesa e pela propriedade. Indo na contramão, os trabalhos de Ibsen analisavam a realidade contida por trás das convenções e costumes, o que inquietou seus contemporâneos. Ele lançou um olhar crítico e uma livre investigação sobre as condições de vida e as questões da moralidade da época. A maioria dos dramaturgos que conhecemos deve muito a ele. Tchecóv, Bernard Shaw, Oscar Wilde e Engene O`Neill não seriam os mesmos sem Ibsen. Foi um precursor em todos os sentidos. Muitos especialistas acham Casa de Bonecas infinitamente superior a Quem tem Medo de Virgínia Woolf?, de Edward Albee, por exemplo. Sim, ele foi romântico no começo [de Catilina (1850) até Imperador e Galileu (1873)], ele foi lírico e filosófico durante o período de 1862 e 1867;  ele foi realista e (vá lá) simbolista de 1869 a 1888); foi autobiográfico em seus últimos trabalhos (basicamente em Solness, O Pequeno Eyolf e Quando Despertamos Entre os Mortos), mas a poética peça Peer Gynt tem fortes elementos do surrealismo quando ele sequer existia De qualquer maneira, seria uma avaliação pela metade se analisássemos a obra de Ibsen apenas como uma sucessão de textos fortes e diálogos inspirados. Ele era um dramaturgo completo: concebia um teatro onde a encenação tinha uma importância equivalente à trama, como fazia Wagner em suas óperas. O cenário era monumental, a iluminação feérica, elementos de cena fechavam o espírito da coisa com graça & beleza. Como as salas de espetáculo europeias, na época, abrigavam tanto peças de teatro como a ópera, em geral, o pé direito do palco tinha não menos de dez metros de altura e a profundidade também era inquietante. Era nesse espaço que Ibsen se regalava, construindo cenários espetaculares e grandiosos, com telões de fundo que retratavam abismos insondáveis e os profundos fiordes que caracterizam a tradicional natureza norueguesa. Seria um equívoco dizer que os dramas de Ibsen são óperas sem música, pois Peer Gynt (1867), por exemplo, foi concebido em parceria com Edward Grieg, que compôs uma trilha sonora original muito conhecida por todos. Só por curiosidade, é um trecho desta suíte (No Salão do Rei da Montanha) que o ator alemão Peter Lore assobia no filme M – O Vampiro de Düsseldorf antes de estrangular criancinhas. Entre outras singularidades, podemos garimpar alguns exotismos que podem ter passado despercebidos até ao aficionado mais atento. A trama do filme Tubarão (1975), dirigido por Steven Spielberg, é livremente baseada na peça O Inimigo do Povo (1882). Nesta peça, Ibsen foi ainda mais longe que nas anteriores, onde elementos controversos foram componentes importantes e até mesmo fundamentais na ação, ou seja, a controvérsia tornou-se o foco principal.  A mensagem principal é que o indivíduo que está sozinho tem mais razão do que a massa de pessoas, que são retratadas como ignorantes. Ibsen abriu a ferida e foi fundo. A crença da sociedade contemporânea era a de que a comunidade era uma instituição na qual se podia confiar, mas Ibsen contesta esse paradigma. Ele critica não só o conservadorismo da sociedade, como também o liberalismo da época, ilustrando como as pessoas de ambos os lados do espectro social poderiam ser iguais. O protagonista é um médico de um local de férias, cujo principal objetivo é construir um banho público para atrair turistas. O médico descobre que a água está contaminada, e espera ser aclamado para salvar a cidade do pesadelo de infectar os visitantes com a doença, mas ao invés disso ele é declarado um “inimigo do povo” pelos moradores, que lutam contra ele e até mesmo atiram pedras através de sua janela. A peça termina com o seu completo ostracismo e com uma frase cruel & emblemática do protagonista: Sozinho, me sinto mais forte. Provavelmente, era assim que se sentia Ibsen diante de seus conterrâneos, mas a História lhe fez justiça.

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A contemporaneidade de um artista se mede principalmente pela sua capacidade de dialogar e responder a perguntas de uma sociedade que não é mais a de seu tempo. Poucos dramaturgos foram tão eficazes quanto Henrik Ibsen ao perceber as oscilações da alma humana na sociedade com tanta desenvoltura e acuidade, mas demorou bastante para que isso fosse detectado pelos especialistas e mais ainda pelas plateias, que não estavam preparadas para aceitar tamanha mudança gestada num país improvável e longe dos centros normalmente difusores de cultura: a Noruega.

Foi Pirandello que levantou a lebre pela primeira vez: ele afirmou que não só Ibsen era o verdadeiro criador do teatro moderno como também o maior autor depois de Shakespeare. Foi o mais arguto intérprete dos dramas individuais e sociais de seu tempo e um profético antecipador da condição existencial do ser humano no século 20. Dois exemplos disso são Casa de Bonecas (1879), que prenuncia a emancipação feminina dos dias de hoje, e Um Inimigo do Povo (1882), que contrapõe a ética de um indivíduo que pretende delatar gambiarras municipais e o progresso a qualquer custo.

De qualquer forma, seria um reducionismo sazonalmente conveniente limitar a proposta de seus textos a circunstâncias históricas e factuais. O discurso de Ibsen está todo focado no indivíduo, no interior do indivíduo: é este personagem que, ao encontrar a verdade em si mesmo, consegue transformar também a sociedade. A revolta de Nora contra uma concepção equivocada da fêmea no casamento é, antes de mais nada, uma tomada de consciência de uma mulher no confronto com uma realidade cada vez mais complexa e difícil de entender. Na crise de Nora, Ibsen colheu a crise do indivíduo, privado de suas certezas e obrigado a viver num mundo hostil e impenetrável.

Ibsen teve que lutar muito para ser ouvido pelo resto da Europa. As condições políticas, econômicas e principalmente artísticas da Noruega lhe eram francamente desfavoráveis. Até meados do século 19, o país carecia de tudo. Em termos culturais, praticamente não existia um teatro nacional; o norueguês era (na melhor das hipóteses) considerado mais um dialeto do que uma língua e, sob o ponto de vista literário, a Noruega era apenas um puxadinho da Dinamarca; as condições sociais estavam uma lástima, a Noruega era um país frágil economicamente, que dependia (apesar da autonomia administrativa) da Suécia. E assim por diante. Além das dificuldades normais que um artista tem para criar, ele foi obrigado a inventar uma maneira de se fazer notado, pois o público extremamente provinciano não estava acostumado a se ver diante da busca da verdade e refletir sobre suas condições sociais e as contradições do espírito.

Depois de Brand (1865) e Peer Gynt (1867), houve a reviravolta e Ibsen conseguiu afirmar-se definitivamente a nível europeu, que o elegeu como um autor capaz de incidir profundamente na sociedade e nos costumes de seu tempo. Obras como Os Pilares da Sociedade, Casa de Bonecas, Espectros e Um Inimigo do Povo são consideradas como grandes dramas de um autor maduro e genial, empenhado em construir uma espécie de mitologia de personagens que interagem e confrontam os equívocos da sociedade em pé de igualdade.

Nora Helmer, Arnold Rubek, Elena Alving, doutor Stockmann, Hedda Gabler, Gina Ekdal, o construtor Solness, entre tantos outros, formam uma plêiade de personagens insuperáveis que dão vida a uma série de peças invulgares, ou, como escreveu James Joyce num ensaio de 1900: Na história do teatro antigo e moderno, poucas obras estão no grau de rivalizar as de Ibsen quanto à habilidade dramática, psicologia dos personagens e força de expressão.

Nem tudo são louros, porém. Muitas de suas peças foram consideradas escandalosas na época em que foram lançadas, pois o teatro europeu restringia-se ao modelo determinado pela vida familiar burguesa e pela propriedade. Indo na contramão, os trabalhos de Ibsen analisavam a realidade contida por trás das convenções e costumes, o que inquietou seus contemporâneos. Ele lançou um olhar crítico e uma livre investigação sobre as condições de vida e as questões da moralidade da época.

A maioria dos dramaturgos que conhecemos deve muito a ele. Tchecóv, Bernard Shaw, Oscar Wilde e Engene O`Neill não seriam os mesmos sem Ibsen. Foi um precursor em todos os sentidos. Muitos especialistas acham Casa de Bonecas infinitamente superior a Quem tem Medo de Virgínia Woolf?, de Edward Albee, por exemplo.

Sim, ele foi romântico no começo [de Catilina (1850) até Imperador e Galileu (1873)], ele foi lírico e filosófico durante o período de 1862 e 1867;  ele foi realista e (vá lá) simbolista de 1869 a 1888); foi autobiográfico em seus últimos trabalhos (basicamente em Solness, O Pequeno Eyolf e Quando Despertamos Entre os Mortos), mas a poética peça Peer Gynt tem fortes elementos do surrealismo quando ele sequer existia

De qualquer maneira, seria uma avaliação pela metade se analisássemos a obra de Ibsen apenas como uma sucessão de textos fortes e diálogos inspirados. Ele era um dramaturgo completo: concebia um teatro onde a encenação tinha uma importância equivalente à trama, como fazia Wagner em suas óperas. O cenário era monumental, a iluminação feérica, elementos de cena fechavam o espírito da coisa com graça & beleza.

Como as salas de espetáculo europeias, na época, abrigavam tanto peças de teatro como a ópera, em geral, o pé direito do palco tinha não menos de dez metros de altura e a profundidade também era inquietante. Era nesse espaço que Ibsen se regalava, construindo cenários espetaculares e grandiosos, com telões de fundo que retratavam abismos insondáveis e os profundos fiordes que caracterizam a tradicional natureza norueguesa.

Seria um equívoco dizer que os dramas de Ibsen são óperas sem música, pois Peer Gynt (1867), por exemplo, foi concebido em parceria com Edward Grieg, que compôs uma trilha sonora original muito conhecida por todos. Só por curiosidade, é um trecho desta suíte (No Salão do Rei da Montanha) que o ator alemão Peter Lore assobia no filme M – O Vampiro de Düsseldorf antes de estrangular criancinhas.

Entre outras singularidades, podemos garimpar alguns exotismos que podem ter passado despercebidos até ao aficionado mais atento. A trama do filme Tubarão (1975), dirigido por Steven Spielberg, é livremente baseada na peça O Inimigo do Povo (1882).

Nesta peça, Ibsen foi ainda mais longe que nas anteriores, onde elementos controversos foram componentes importantes e até mesmo fundamentais na ação, ou seja, a controvérsia tornou-se o foco principal.  A mensagem principal é que o indivíduo que está sozinho tem mais razão do que a massa de pessoas, que são retratadas como ignorantes.

Ibsen abriu a ferida e foi fundo. A crença da sociedade contemporânea era a de que a comunidade era uma instituição na qual se podia confiar, mas Ibsen contesta esse paradigma. Ele critica não só o conservadorismo da sociedade, como também o liberalismo da época, ilustrando como as pessoas de ambos os lados do espectro social poderiam ser iguais. O protagonista é um médico de um local de férias, cujo principal objetivo é construir um banho público para atrair turistas. O médico descobre que a água está contaminada, e espera ser aclamado para salvar a cidade do pesadelo de infectar os visitantes com a doença, mas ao invés disso ele é declarado um “inimigo do povo” pelos moradores, que lutam contra ele e até mesmo atiram pedras através de sua janela. A peça termina com o seu completo ostracismo e com uma frase cruel & emblemática do protagonista: Sozinho, me sinto mais forte.

Provavelmente, era assim que se sentia Ibsen diante de seus conterrâneos, mas a História lhe fez justiça.

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Plínio Marcos, o poeta das quebradas do mundaréu https://teatrohoje.com.br/2019/11/01/plinio-marcos-o-poeta-das-quebradas-do-mundareu-2/ Fri, 01 Nov 2019 13:44:34 +0000 http://br1012.teste.website/~beeped34/beepecriaoc/teatrohoje/?p=74579 Não há outro dramaturgo que tenha se aproximado com tanto carinho dos excluídos da sociedade como Plínio Marcos. Seu interesse não era apenas temático, ele realmente se identificava com os marginais a ponto de, no fim da vida, assumir radicalmente ele próprio essa condição. Suas mais de quatro dezenas de trabalhos publicados e encenados (entre peças de teatro adulto e infantil, livros de contos, novelas policiais, relatos autobiográficos e romances) dão vida a um elemento invisível aos olhos, desses que não fazem parte de estatísticas oficiais nem são estudados pela Academia, não são citados em fóruns de debates e não recebem a atenção da população que, na maior parte das vezes, os evitam quando aparecem pelas ruas & becos. Prostitutas, cafetões, homossexuais, alcaguetes, meganhas corruptos, traficantes e proxenetas das mais variadas procedências alimentavam sua arte como personagens perseguidos que ludibriavam a polícia e tentavam a duras penas sobreviver de expedientes pouco louváveis, mas sempre respeitando códigos de conduta próprios. Afinal, tinham aprendido na porrada a filosofia das ruas desde pequenos. Portanto, nada tinham a perder, a não ser a própria vida. Na sua última década de vida, depois de ter conseguido o reconhecimento da mídia, o louvor dos críticos e a simpatia do público, Plínio manteve-se fiel aos seus princípios: largou tudo (casa, mulher e filhos) e imergiu nas quebradas do mundaréu, vivendo de favores e vendendo suas peças (confeccionadas e pagas de seu bolso) nas portas de teatro e locais de grande afluência de possíveis interessados na sua arte. A galera amiga ficou desorientada. Uns disseram que era um exagero, outros avaliaram como uma atitude de imolação, uma coerência política e social, uma espécie de opção de mimetizar os marginais que ele tanto respeitava. Um dia, ao receber um prêmio por sua obra, ele dedicou a estatueta ao Gigetto, o restaurante paulistano que o tinha alimentado (literalmente) durante anos. Noutra dessas noitadas regadas a celebridades, a estarrecida plateia do Teatro Municipal de São Paulo ouviu o seguinte discurso: “Já disse mil vezes: não me deem prêmios, só quero que os jornais divulguem minhas peças para que o público possa assisti-las nas salas de espetáculo e eu ganhar algum para montar a seguinte”. Tinha sentido: na época, a mídia o estava boicotando, era esnobado pelos intelectuais e a ditadura fungava em seu cangote, pois ele escancarava as piores mazelas de uma sociedade doente, constrangendo as plateias e as autoridades, que queriam vê-lo pelas costas. Quando a barra pesou, ficou com a cabeça a prêmio: o plano era sumir com ele. Amigos se reuniram e chegaram à conclusão que só tendo visibilidade na mídia e sendo reconhecido pelo público nas ruas, Plínio Marcos conseguiria sobreviver a mais aquela provação. Um desses amigos era Bráulio Pedroso, dramaturgo famoso que resolveu a questão da seguinte maneira: colocou-o como ator de sua telenovela Beto Rockfeller, na extinta TV Tupi, em 1968. Seu personagem (o hilário motorista Vitório) brilhou por seu carisma, sua graça irreverente e sua gíria sempre antenada com as veredas sujas de uma megalópole decadente que insistia em desviar de pessoas humildes que não tinham nada no bolso, mas viviam da própria honra. A novela foi um sucesso (durou dois anos) e Plínio continuou acrescentando títulos a sua carreira de dramaturgo. A perseguição não começou com a ditadura, vinha de longe e não era de graça: Plínio tinha montado (ainda em 1959) Barrela, a história da curra de um jovem numa prisão. Seguiram-se: Os Fantoches (1960), Quando as Máquinas param (1963), Reportagem de um Tempo Mau (1965), Dois Perdidos numa Noite Suja (1966) e Navalha na Carne (1967), provavelmente seu maior sucesso. De Santos para o Brasil e o mundo Plínio Marcos nasceu em Santos, cidade litorânea de São Paulo. Foi funileiro, camelô, jogou futebol no time da Portuguesa Santista, trabalhou no circo (onde aprendeu as manhas do clown) e, sob influência da escritora e jornalista Patrícia Galvão, a Pagu, musa do modernismo, envolveu-se com o teatro. Sua estreia não teve muito êxito na época: por sua linguagem crua, Barrela só teve uma apresentação e ficou interditada durante 21 anos pela censura. Em outras palavras: Plínio sempre incomodou pelo simples fato de existir, tanto nos regimes democráticos quanto em épocas de exceção. Afinal, ninguém quer ver a realidade nua explodindo no palco, na cara de uma burguesia que tem medo, pois pressente que, a qualquer momento, pode ser destronada e perder a boquinha. Em 1966, sob a direção de Benjamin Cattan, ele e Ademir Rocha interpretam Dois Perdidos Numa Noite Suja no Ponto de Encontro, bar da Galeria Metrópole, em São Paulo, que marcou sua estreia como profissional. Fez barulho. A peça tocou o coração de artistas e do público. Plínio Marcos já não era mais um desconhecido, tinha angariado a simpatia de grandes nomes do teatro, de atores e atrizes a renomados diretores da área. Navalha na Carne, sua obra seguinte, enfrenta graves problemas com a Censura. A classe teatral se mobiliza. Leituras no Teatro de Arena e no teatrinho particular de Cacilda Becker e Walmor Chagas reúnem a crítica e artistas, que pressionam pela liberação do texto, permitindo a montagem em 1967. Mas houve um problema: o pungente desempenho de Ruthinéa de Moraes, vivendo a prostituta explorada pelo gigolô, fez com que o espetáculo só fosse liberado para maiores de 21 anos. O mesmo papel impulsionou a carreira de Tônia Carrero, na montagem carioca sob a direção de Fauzi Arap, em 1968, no Teatro Maison de France, contracenando com o fabuloso Nelson Xavier e Emiliano Queirós. No ano anterior, Plínio tinha dirigido outro texto, Quando as Máquinas Param, no Teatro de Arte, sala pequena do TBC, que chamou a atenção para o trabalho da novata Miriam Mehler. Também em 1967, surge nova criação, Homens de Papel, com Maria Della Costa interpretando a catadora de papel Nhanha, pelo Teatro Popular de Arte – TPA. Crítica e público ainda não estavam refeitos do impacto dessas montagens, quando Plínio manda para a ribalta em 1969 um novo texto, Abajur Lilás, a história da descida aos infernos de três prostitutas numa trajetória abjeta de degradação física e moral. É de se perguntar como que, em tão pouco tempo de atividade profissional, ele conseguiu arrebanhar tanta admiração da classe teatral. Dizer que era pelos seus textos seria uma meia verdade. Plínio Marcos era um sedutor nato. À revelia da idade que tivesse, parecia ter sempre a jovialidade de um garoto de dezoito anos. Tinha um sorriso moleque encantador. Era carismático. Conseguia atrair jovens e adultos, que formavam à sua volta um reduto de fãs, embevecidos por sua retórica, humor e histórias fantásticas que inventava na hora. Plínio atuava em várias mídias. Fervoroso defensor dos seus direitos, envolveu-se num caloroso debate, transmitido pela TV, com a deputada Conceição da Costa Neves, no qual advogava pela sua liberdade de expressão. Já era um nome nacional e, como articulista do jornal Última Hora, dispunha de uma tribuna para arremeter contra a censura e a ditadura. As trevas caem sobre o autor Sempre insubmisso e nunca admitindo negociar com seus algozes para liberação de suas peças, depois das montagens de Dois Perdidos e Navalha, toda sua obra foi proibida pela censura, obrigando-o a viver de bicos jornalísticos nos raros órgãos da imprensa que aceitavam suas colaborações. A partir da década de 80, Plínio muda um pouco o rumo de seu enfoque dramatúrgico em função de sua própria opção de vida: interessa-se por assuntos esotéricos, por exemplo, e leitura do tarô. Dessa nova fase, nasce Madame Blavatsky, encenada por Jorge Takla em 1985, grande painel sobre a vida da mística autora de A Doutrina Secreta. E era comum vê-lo todo de preto, portando um cajado com uma cruz na ponta, pronunciando longos discursos para plateias especiais a respeito de temas que normalmente não fariam parte de seus temas habituais. Mas era apenas a performance de um ator fora do palco, ele não tinha abdicado um centímetro de suas convicções políticas e sociais. Tanto que não esqueceu de suas raízes: em 1986, encena Balada de um Palhaço, com direção de Odavlas Petti, uma abordagem lírica sobre dois palhaços de circo que dividem o picadeiro e que se alfinetam um ao outro (como dois clowns de Beckett) rumo ao entendimento. Há humor, há tristeza e uma ponta de amargura. Depois disso, publicou em livro e montou outras peças, como A Manche Roxa (1988), O Assassinato do Anão do Caralho Grande (1995), O Bote da Loba (1997) e deixou inacabado o texto Chico Viola, uma homenagem (à sua maneira) ao cantor Francisco Alves, o mesmo que tinha feito no musical Noel Rosa, o Poeta da Vila e seus Amores, de 1977. Plínio Marcos foi traduzido, publicado e encenado em francês, espanhol, inglês e alemão; sua obra foi tema de teses de sociolinguística, semiologia, psicologia da religião, dramaturgia e filosofia, em universidades do Brasil e do exterior. Recebeu os principais prêmios nacionais em todas as atividades nas quais atuou (teatro, cinema, televisão e literatura), como ator, diretor, escritor e dramaturgo. Sua saúde entrou em declínio a partir de agosto de 1999 em virtude do diabetes, quando sofreu um derrame cerebral que deixou sequelas: seu lado esquerdo ficou paralisado, incapacitando sua respiração sem o auxílio de aparelhos. Depois do segundo derrame, no fim de outubro, foi internado no Instituto do Coração, em São Paulo, com infecção pulmonar. Faleceu dois dias depois, aos 64 anos de idade. Afirmar que Plínio foi e continua sendo um autor maldito é pouco. Ele revolucionou a arte dramatúrgica de tal maneira que nada depois dele foi o mesmo. Ninguém pode hoje negligenciar suas lições e voltar a fazer um teatro certinho & asséptico, com mensagens subliminares, símbolos e metáforas, pois seu estilo desbocado e explícito escancarou a possibilidade de acertar na jugular da vida sem medir consequências. Afinal, é para isso que existe a arte do teatro: abrir os olhos dos que ainda hesitam em aceitar a verdade. As avaliações efusivas de críticos como Sábato Magaldi, Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado, Yan Michalski, Eneida de Moraes, Bárbara Heliodora e João Apolinário não deixam dúvida alguma sobre a importância de Plínio Marcos como dramaturgo, escritor e jornalista, tendo reabilitado os diálogos coloquiais (recheados de jargões e gírias de grupos apartados da sociedade), até então considerados simples grosserias pelos intelectuais babacas e reacionários que não conseguiam aceitar a realidade. Diálogos possíveis & impossíveis Da mesma forma que é pertinente dizer que a escrita naturalista e os personagens de Plínio Marcos dialogam diretamente com a literatura de Marcos Rey (O Enterro da Cafetina, Memórias de um Gigolô), Antônio Fraga (Desabrigo e Outros Trecos), Carolina Maria de Jesus (Quarto de Despejo) e, mais especificamente, com João Antônio (Perus, Malagueta e Bacanaço e Leão de Chácara), também é lícito argumentar que há diferenças fundamentais de propósitos nos três primeiros: enquanto Rey desenvolvia uma ficção mais insolente, Fraga contrapunha o submundo (conteúdo) a uma sofisticação estilística (forma) que desconcertou até Oswald de Andrade. Por sua vez, Carolina tinha a intenção mais documental e jornalística, ao passo que João Antônio foi o herdeiro inquestionável tanto de Plínio Marcos quanto de Lima Barreto ao colocar na linha de frente personagens esquecidos da sociedade e mostrar que a vida e a gangorra econômica são mais complicadas do que se imagina. O importante é saber que Plínio Marcos não estava só nessa cruzada. Muitos nomes do teatro e da literatura também se preocuparam em recuperar do olvido personagens esquecidos e encurralados pelo preconceito e a intolerância de classes sociais cruéis e violentas, mas foi ele sem dúvida que soube dar-lhes voz com mais propriedade, pois amava de todo o coração essa gente perdida, transformando-a em dignos seres humanos pelo menos no teatro.

O post Plínio Marcos, o poeta das quebradas do mundaréu apareceu primeiro em Teatro Hoje.

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Não há outro dramaturgo que tenha se aproximado com tanto carinho dos excluídos da sociedade como Plínio Marcos. Seu interesse não era apenas temático, ele realmente se identificava com os marginais a ponto de, no fim da vida, assumir radicalmente ele próprio essa condição. Suas mais de quatro dezenas de trabalhos publicados e encenados (entre peças de teatro adulto e infantil, livros de contos, novelas policiais, relatos autobiográficos e romances) dão vida a um elemento invisível aos olhos, desses que não fazem parte de estatísticas oficiais nem são estudados pela Academia, não são citados em fóruns de debates e não recebem a atenção da população que, na maior parte das vezes, os evitam quando aparecem pelas ruas & becos.

Prostitutas, cafetões, homossexuais, alcaguetes, meganhas corruptos, traficantes e proxenetas das mais variadas procedências alimentavam sua arte como personagens perseguidos que ludibriavam a polícia e tentavam a duras penas sobreviver de expedientes pouco louváveis, mas sempre respeitando códigos de conduta próprios. Afinal, tinham aprendido na porrada a filosofia das ruas desde pequenos. Portanto, nada tinham a perder, a não ser a própria vida.

Na sua última década de vida, depois de ter conseguido o reconhecimento da mídia, o louvor dos críticos e a simpatia do público, Plínio manteve-se fiel aos seus princípios: largou tudo (casa, mulher e filhos) e imergiu nas quebradas do mundaréu, vivendo de favores e vendendo suas peças (confeccionadas e pagas de seu bolso) nas portas de teatro e locais de grande afluência de possíveis interessados na sua arte. A galera amiga ficou desorientada. Uns disseram que era um exagero, outros avaliaram como uma atitude de imolação, uma coerência política e social, uma espécie de opção de mimetizar os marginais que ele tanto respeitava.

Um dia, ao receber um prêmio por sua obra, ele dedicou a estatueta ao Gigetto, o restaurante paulistano que o tinha alimentado (literalmente) durante anos. Noutra dessas noitadas regadas a celebridades, a estarrecida plateia do Teatro Municipal de São Paulo ouviu o seguinte discurso: “Já disse mil vezes: não me deem prêmios, só quero que os jornais divulguem minhas peças para que o público possa assisti-las nas salas de espetáculo e eu ganhar algum para montar a seguinte”.

Tinha sentido: na época, a mídia o estava boicotando, era esnobado pelos intelectuais e a ditadura fungava em seu cangote, pois ele escancarava as piores mazelas de uma sociedade doente, constrangendo as plateias e as autoridades, que queriam vê-lo pelas costas. Quando a barra pesou, ficou com a cabeça a prêmio: o plano era sumir com ele. Amigos se reuniram e chegaram à conclusão que só tendo visibilidade na mídia e sendo reconhecido pelo público nas ruas, Plínio Marcos conseguiria sobreviver a mais aquela provação. Um desses amigos era Bráulio Pedroso, dramaturgo famoso que resolveu a questão da seguinte maneira: colocou-o como ator de sua telenovela Beto Rockfeller, na extinta TV Tupi, em 1968. Seu personagem (o hilário motorista Vitório) brilhou por seu carisma, sua graça irreverente e sua gíria sempre antenada com as veredas sujas de uma megalópole decadente que insistia em desviar de pessoas humildes que não tinham nada no bolso, mas viviam da própria honra. A novela foi um sucesso (durou dois anos) e Plínio continuou acrescentando títulos a sua carreira de dramaturgo.

A perseguição não começou com a ditadura, vinha de longe e não era de graça: Plínio tinha montado (ainda em 1959) Barrela, a história da curra de um jovem numa prisão. Seguiram-se: Os Fantoches (1960), Quando as Máquinas param (1963), Reportagem de um Tempo Mau (1965), Dois Perdidos numa Noite Suja (1966) e Navalha na Carne (1967), provavelmente seu maior sucesso.

De Santos para o Brasil e o mundo

Plínio Marcos nasceu em Santos, cidade litorânea de São Paulo. Foi funileiro, camelô, jogou futebol no time da Portuguesa Santista, trabalhou no circo (onde aprendeu as manhas do clown) e, sob influência da escritora e jornalista Patrícia Galvão, a Pagu, musa do modernismo, envolveu-se com o teatro. Sua estreia não teve muito êxito na época: por sua linguagem crua, Barrela só teve uma apresentação e ficou interditada durante 21 anos pela censura. Em outras palavras: Plínio sempre incomodou pelo simples fato de existir, tanto nos regimes democráticos quanto em épocas de exceção. Afinal, ninguém quer ver a realidade nua explodindo no palco, na cara de uma burguesia que tem medo, pois pressente que, a qualquer momento, pode ser destronada e perder a boquinha.

Em 1966, sob a direção de Benjamin Cattan, ele e Ademir Rocha interpretam Dois Perdidos Numa Noite Suja no Ponto de Encontro, bar da Galeria Metrópole, em São Paulo, que marcou sua estreia como profissional. Fez barulho. A peça tocou o coração de artistas e do público.

Plínio Marcos já não era mais um desconhecido, tinha angariado a simpatia de grandes nomes do teatro, de atores e atrizes a renomados diretores da área.

Navalha na Carne, sua obra seguinte, enfrenta graves problemas com a Censura. A classe teatral se mobiliza. Leituras no Teatro de Arena e no teatrinho particular de Cacilda Becker e Walmor Chagas reúnem a crítica e artistas, que pressionam pela liberação do texto, permitindo a montagem em 1967. Mas houve um problema: o pungente desempenho de Ruthinéa de Moraes, vivendo a prostituta explorada pelo gigolô, fez com que o espetáculo só fosse liberado para maiores de 21 anos.

O mesmo papel impulsionou a carreira de Tônia Carrero, na montagem carioca sob a direção de Fauzi Arap, em 1968, no Teatro Maison de France, contracenando com o fabuloso Nelson Xavier e Emiliano Queirós. No ano anterior, Plínio tinha dirigido outro texto, Quando as Máquinas Param, no Teatro de Arte, sala pequena do TBC, que chamou a atenção para o trabalho da novata Miriam Mehler. Também em 1967, surge nova criação, Homens de Papel, com Maria Della Costa interpretando a catadora de papel Nhanha, pelo Teatro Popular de Arte – TPA.

Crítica e público ainda não estavam refeitos do impacto dessas montagens, quando Plínio manda para a ribalta em 1969 um novo texto, Abajur Lilás, a história da descida aos infernos de três prostitutas numa trajetória abjeta de degradação física e moral.

É de se perguntar como que, em tão pouco tempo de atividade profissional, ele conseguiu arrebanhar tanta admiração da classe teatral. Dizer que era pelos seus textos seria uma meia verdade. Plínio Marcos era um sedutor nato. À revelia da idade que tivesse, parecia ter sempre a jovialidade de um garoto de dezoito anos. Tinha um sorriso moleque encantador. Era carismático. Conseguia atrair jovens e adultos, que formavam à sua volta um reduto de fãs, embevecidos por sua retórica, humor e histórias fantásticas que inventava na hora.

Plínio atuava em várias mídias. Fervoroso defensor dos seus direitos, envolveu-se num caloroso debate, transmitido pela TV, com a deputada Conceição da Costa Neves, no qual advogava pela sua liberdade de expressão. Já era um nome nacional e, como articulista do jornal Última Hora, dispunha de uma tribuna para arremeter contra a censura e a ditadura.

As trevas caem sobre o autor

Sempre insubmisso e nunca admitindo negociar com seus algozes para liberação de suas peças, depois das montagens de Dois Perdidos e Navalha, toda sua obra foi proibida pela censura, obrigando-o a viver de bicos jornalísticos nos raros órgãos da imprensa que aceitavam suas colaborações.

A partir da década de 80, Plínio muda um pouco o rumo de seu enfoque dramatúrgico em função de sua própria opção de vida: interessa-se por assuntos esotéricos, por exemplo, e leitura do tarô. Dessa nova fase, nasce Madame Blavatsky, encenada por Jorge Takla em 1985, grande painel sobre a vida da mística autora de A Doutrina Secreta. E era comum vê-lo todo de preto, portando um cajado com uma cruz na ponta, pronunciando longos discursos para plateias especiais a respeito de temas que normalmente não fariam parte de seus temas habituais. Mas era apenas a performance de um ator fora do palco, ele não tinha abdicado um centímetro de suas convicções políticas e sociais.

Tanto que não esqueceu de suas raízes: em 1986, encena Balada de um Palhaço, com direção de Odavlas Petti, uma abordagem lírica sobre dois palhaços de circo que dividem o picadeiro e que se alfinetam um ao outro (como dois clowns de Beckett) rumo ao entendimento. Há humor, há tristeza e uma ponta de amargura.

Depois disso, publicou em livro e montou outras peças, como A Manche Roxa (1988), O Assassinato do Anão do Caralho Grande (1995), O Bote da Loba (1997) e deixou inacabado o texto Chico Viola, uma homenagem (à sua maneira) ao cantor Francisco Alves, o mesmo que tinha feito no musical Noel Rosa, o Poeta da Vila e seus Amores, de 1977.

Plínio Marcos foi traduzido, publicado e encenado em francês, espanhol, inglês e alemão; sua obra foi tema de teses de sociolinguística, semiologia, psicologia da religião, dramaturgia e filosofia, em universidades do Brasil e do exterior.

Recebeu os principais prêmios nacionais em todas as atividades nas quais atuou (teatro, cinema, televisão e literatura), como ator, diretor, escritor e dramaturgo.

Sua saúde entrou em declínio a partir de agosto de 1999 em virtude do diabetes, quando sofreu um derrame cerebral que deixou sequelas: seu lado esquerdo ficou paralisado, incapacitando sua respiração sem o auxílio de aparelhos. Depois do segundo derrame, no fim de outubro, foi internado no Instituto do Coração, em São Paulo, com infecção pulmonar. Faleceu dois dias depois, aos 64 anos de idade.

Afirmar que Plínio foi e continua sendo um autor maldito é pouco. Ele revolucionou a arte dramatúrgica de tal maneira que nada depois dele foi o mesmo. Ninguém pode hoje negligenciar suas lições e voltar a fazer um teatro certinho & asséptico, com mensagens subliminares, símbolos e metáforas, pois seu estilo desbocado e explícito escancarou a possibilidade de acertar na jugular da vida sem medir consequências. Afinal, é para isso que existe a arte do teatro: abrir os olhos dos que ainda hesitam em aceitar a verdade.

As avaliações efusivas de críticos como Sábato Magaldi, Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado, Yan Michalski, Eneida de Moraes, Bárbara Heliodora e João Apolinário não deixam dúvida alguma sobre a importância de Plínio Marcos como dramaturgo, escritor e jornalista, tendo reabilitado os diálogos coloquiais (recheados de jargões e gírias de grupos apartados da sociedade), até então considerados simples grosserias pelos intelectuais babacas e reacionários que não conseguiam aceitar a realidade.


Diálogos possíveis & impossíveis

Da mesma forma que é pertinente dizer que a escrita naturalista e os personagens de Plínio Marcos dialogam diretamente com a literatura de Marcos Rey (O Enterro da Cafetina, Memórias de um Gigolô), Antônio Fraga (Desabrigo e Outros Trecos), Carolina Maria de Jesus (Quarto de Despejo) e, mais especificamente, com João Antônio (Perus, Malagueta e Bacanaço e Leão de Chácara), também é lícito argumentar que há diferenças fundamentais de propósitos nos três primeiros: enquanto Rey desenvolvia uma ficção mais insolente, Fraga contrapunha o submundo (conteúdo) a uma sofisticação estilística (forma) que desconcertou até Oswald de Andrade. Por sua vez, Carolina tinha a intenção mais documental e jornalística, ao passo que João Antônio foi o herdeiro inquestionável tanto de Plínio Marcos quanto de Lima Barreto ao colocar na linha de frente personagens esquecidos da sociedade e mostrar que a vida e a gangorra econômica são mais complicadas do que se imagina.

O importante é saber que Plínio Marcos não estava só nessa cruzada. Muitos nomes do teatro e da literatura também se preocuparam em recuperar do olvido personagens esquecidos e encurralados pelo preconceito e a intolerância de classes sociais cruéis e violentas, mas foi ele sem dúvida que soube dar-lhes voz com mais propriedade, pois amava de todo o coração essa gente perdida, transformando-a em dignos seres humanos pelo menos no teatro.

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Plínio Marcos, o poeta das quebradas do mundaréu https://teatrohoje.com.br/2019/09/30/plinio-marcos-o-poeta-das-quebradas-do-mundareu/ Mon, 30 Sep 2019 21:58:43 +0000 http://br1012.teste.website/~beeped34/beepecriaoc/teatrohoje/?p=73498 Não há outro dramaturgo que tenha se aproximado com tanto carinho dos excluídos da sociedade como Plínio Marcos. Seu interesse não era apenas temático, ele realmente se identificava com os marginais a ponto de, no fim da vida, assumir radicalmente ele próprio essa condição. Suas mais de quatro dezenas de trabalhos publicados e encenados (entre peças de teatro adulto e infantil, livros de contos, novelas policiais, relatos autobiográficos e romances) dão vida a um elemento invisível aos olhos, desses que não fazem parte de estatísticas oficiais nem são estudados pela Academia, não são citados em fóruns de debates e não recebem a atenção da população que, na maior parte das vezes, os evitam quando aparecem pelas ruas & becos. Prostitutas, cafetões, homossexuais, alcaguetes, meganhas corruptos, traficantes e proxenetas das mais variadas procedências alimentavam sua arte como personagens perseguidos que ludibriavam a polícia e tentavam a duras penas sobreviver de expedientes pouco louváveis, mas sempre respeitando códigos de conduta próprios. Afinal, tinham aprendido na porrada a filosofia das ruas desde pequenos. Portanto, nada tinham a perder, a não ser a própria vida. Na sua última década de vida, depois de ter conseguido o reconhecimento da mídia, o louvor dos críticos e a simpatia do público, Plínio manteve-se fiel aos seus princípios: largou tudo (casa, mulher e filhos) e imergiu nas quebradas do mundaréu, vivendo de favores e vendendo suas peças (confeccionadas e pagas de seu bolso) nas portas de teatro e locais de grande afluência de possíveis interessados na sua arte. A galera amiga ficou desorientada. Uns disseram que era um exagero, outros avaliaram como uma atitude de imolação, uma coerência política e social, uma espécie de opção de mimetizar os marginais que ele tanto respeitava. Um dia, ao receber um prêmio por sua obra, ele dedicou a estatueta ao Gigetto, o restaurante paulistano que o tinha alimentado (literalmente) durante anos. Noutra dessas noitadas regadas a celebridades, a estarrecida plateia do Teatro Municipal de São Paulo ouviu o seguinte discurso: “Já disse mil vezes: não me deem prêmios, só quero que os jornais divulguem minhas peças para que o público possa assisti-las nas salas de espetáculo e eu ganhar algum para montar a seguinte”. Tinha sentido: na época, a mídia o estava boicotando, era esnobado pelos intelectuais e a ditadura fungava em seu cangote, pois ele escancarava as piores mazelas de uma sociedade doente, constrangendo as plateias e as autoridades, que queriam vê-lo pelas costas. Quando a barra pesou, ficou com a cabeça a prêmio: o plano era sumir com ele. Amigos se reuniram e chegaram à conclusão que só tendo visibilidade na mídia e sendo reconhecido pelo público nas ruas, Plínio Marcos conseguiria sobreviver a mais aquela provação. Um desses amigos era Bráulio Pedroso, dramaturgo famoso que resolveu a questão da seguinte maneira: colocou-o como ator de sua telenovela Beto Rockfeller, na extinta TV Tupi, em 1968. Seu personagem (o hilário motorista Vitório) brilhou por seu carisma, sua graça irreverente e sua gíria sempre antenada com as veredas sujas de uma megalópole decadente que insistia em desviar de pessoas humildes que não tinham nada no bolso, mas viviam da própria honra. A novela foi um sucesso (durou dois anos) e Plínio continuou acrescentando títulos a sua carreira de dramaturgo. A perseguição não começou com a ditadura, vinha de longe e não era de graça: Plínio tinha montado (ainda em 1959) Barrela, a história da curra de um jovem numa prisão. Seguiram-se: Os Fantoches (1960), Quando as Máquinas param (1963), Reportagem de um Tempo Mau (1965), Dois Perdidos numa Noite Suja (1966) e Navalha na Carne (1967), provavelmente seu maior sucesso. De Santos para o Brasil e o mundo Plínio Marcos nasceu em Santos, cidade litorânea de São Paulo. Foi funileiro, camelô, jogou futebol no time da Portuguesa Santista, trabalhou no circo (onde aprendeu as manhas do clown) e, sob influência da escritora e jornalista Patrícia Galvão, a Pagu, musa do modernismo, envolveu-se com o teatro. Sua estreia não teve muito êxito na época: por sua linguagem crua, Barrela só teve uma apresentação e ficou interditada durante 21 anos pela censura. Em outras palavras: Plínio sempre incomodou pelo simples fato de existir, tanto nos regimes democráticos quanto em épocas de exceção. Afinal, ninguém quer ver a realidade nua explodindo no palco, na cara de uma burguesia que tem medo, pois pressente que, a qualquer momento, pode ser destronada e perder a boquinha. Em 1966, sob a direção de Benjamin Cattan, ele e Ademir Rocha interpretam Dois Perdidos Numa Noite Suja no Ponto de Encontro, bar da Galeria Metrópole, em São Paulo, que marcou sua estreia como profissional. Fez barulho. A peça tocou o coração de artistas e do público. Plínio Marcos já não era mais um desconhecido, tinha angariado a simpatia de grandes nomes do teatro, de atores e atrizes a renomados diretores da área. Navalha na Carne, sua obra seguinte, enfrenta graves problemas com a Censura. A classe teatral se mobiliza. Leituras no Teatro de Arena e no teatrinho particular de Cacilda Becker e Walmor Chagas reúnem a crítica e artistas, que pressionam pela liberação do texto, permitindo a montagem em 1967. Mas houve um problema: o pungente desempenho de Ruthinéa de Moraes, vivendo a prostituta explorada pelo gigolô, fez com que o espetáculo só fosse liberado para maiores de 21 anos. O mesmo papel impulsionou a carreira de Tônia Carrero, na montagem carioca sob a direção de Fauzi Arap, em 1968, no Teatro Maison de France, contracenando com o fabuloso Nelson Xavier e Emiliano Queirós. No ano anterior, Plínio tinha dirigido outro texto, Quando as Máquinas Param, no Teatro de Arte, sala pequena do TBC, que chamou a atenção para o trabalho da novata Miriam Mehler. Também em 1967, surge nova criação, Homens de Papel, com Maria Della Costa interpretando a catadora de papel Nhanha, pelo Teatro Popular de Arte – TPA. Crítica e público ainda não estavam refeitos do impacto dessas montagens, quando Plínio manda para a ribalta em 1969 um novo texto, Abajur Lilás, a história da descida aos infernos de três prostitutas numa trajetória abjeta de degradação física e moral. É de se perguntar como que, em tão pouco tempo de atividade profissional, ele conseguiu arrebanhar tanta admiração da classe teatral. Dizer que era pelos seus textos seria uma meia verdade. Plínio Marcos era um sedutor nato. À revelia da idade que tivesse, parecia ter sempre a jovialidade de um garoto de dezoito anos. Tinha um sorriso moleque encantador. Era carismático. Conseguia atrair jovens e adultos, que formavam à sua volta um reduto de fãs, embevecidos por sua retórica, humor e histórias fantásticas que inventava na hora. Plínio atuava em várias mídias. Fervoroso defensor dos seus direitos, envolveu-se num caloroso debate, transmitido pela TV, com a deputada Conceição da Costa Neves, no qual advogava pela sua liberdade de expressão. Já era um nome nacional e, como articulista do jornal Última Hora, dispunha de uma tribuna para arremeter contra a censura e a ditadura. As trevas caem sobre o autor Sempre insubmisso e nunca admitindo negociar com seus algozes para liberação de suas peças, depois das montagens de Dois Perdidos e Navalha, toda sua obra foi proibida pela censura, obrigando-o a viver de bicos jornalísticos nos raros órgãos da imprensa que aceitavam suas colaborações. A partir da década de 80, Plínio muda um pouco o rumo de seu enfoque dramatúrgico em função de sua própria opção de vida: interessa-se por assuntos esotéricos, por exemplo, e leitura do tarô. Dessa nova fase, nasce Madame Blavatsky, encenada por Jorge Takla em 1985, grande painel sobre a vida da mística autora de A Doutrina Secreta. E era comum vê-lo todo de preto, portando um cajado com uma cruz na ponta, pronunciando longos discursos para plateias especiais a respeito de temas que normalmente não fariam parte de seus temas habituais. Mas era apenas a performance de um ator fora do palco, ele não tinha abdicado um centímetro de suas convicções políticas e sociais. Tanto que não esqueceu de suas raízes: em 1986, encena Balada de um Palhaço, com direção de Odavlas Petti, uma abordagem lírica sobre dois palhaços de circo que dividem o picadeiro e que se alfinetam um ao outro (como dois clowns de Beckett) rumo ao entendimento. Há humor, há tristeza e uma ponta de amargura. Depois disso, publicou em livro e montou outras peças, como A Manche Roxa (1988), O Assassinato do Anão do Caralho Grande (1995), O Bote da Loba (1997) e deixou inacabado o texto Chico Viola, uma homenagem (à sua maneira) ao cantor Francisco Alves, o mesmo que tinha feito no musical Noel Rosa, o Poeta da Vila e seus Amores, de 1977. Plínio Marcos foi traduzido, publicado e encenado em francês, espanhol, inglês e alemão; sua obra foi tema de teses de sociolinguística, semiologia, psicologia da religião, dramaturgia e filosofia, em universidades do Brasil e do exterior. Recebeu os principais prêmios nacionais em todas as atividades nas quais atuou (teatro, cinema, televisão e literatura), como ator, diretor, escritor e dramaturgo. Sua saúde entrou em declínio a partir de agosto de 1999 em virtude do diabetes, quando sofreu um derrame cerebral que deixou sequelas: seu lado esquerdo ficou paralisado, incapacitando sua respiração sem o auxílio de aparelhos. Depois do segundo derrame, no fim de outubro, foi internado no Instituto do Coração, em São Paulo, com infecção pulmonar. Faleceu dois dias depois, aos 64 anos de idade. Afirmar que Plínio foi e continua sendo um autor maldito é pouco. Ele revolucionou a arte dramatúrgica de tal maneira que nada depois dele foi o mesmo. Ninguém pode hoje negligenciar suas lições e voltar a fazer um teatro certinho & asséptico, com mensagens subliminares, símbolos e metáforas, pois seu estilo desbocado e explícito escancarou a possibilidade de acertar na jugular da vida sem medir consequências. Afinal, é para isso que existe a arte do teatro: abrir os olhos dos que ainda hesitam em aceitar a verdade. As avaliações efusivas de críticos como Sábato Magaldi, Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado, Yan Michalski, Eneida de Moraes, Bárbara Heliodora e João Apolinário não deixam dúvida alguma sobre a importância de Plínio Marcos como dramaturgo, escritor e jornalista, tendo reabilitado os diálogos coloquiais (recheados de jargões e gírias de grupos apartados da sociedade), até então considerados simples grosserias pelos intelectuais babacas e reacionários que não conseguiam aceitar a realidade. Diálogos possíveis & impossíveis Da mesma forma que é pertinente dizer que a escrita naturalista e os personagens de Plínio Marcos dialogam diretamente com a literatura de Marcos Rey (O Enterro da Cafetina, Memórias de um Gigolô), Antônio Fraga (Desabrigo e Outros Trecos), Carolina Maria de Jesus (Quarto de Despejo) e, mais especificamente, com João Antônio (Perus, Malagueta e Bacanaço e Leão de Chácara), também é lícito argumentar que há diferenças fundamentais de propósitos nos três primeiros: enquanto Rey desenvolvia uma ficção mais insolente, Fraga contrapunha o submundo (conteúdo) a uma sofisticação estilística (forma) que desconcertou até Oswald de Andrade. Por sua vez, Carolina tinha a intenção mais documental e jornalística, ao passo que João Antônio foi o herdeiro inquestionável tanto de Plínio Marcos quanto de Lima Barreto ao colocar na linha de frente personagens esquecidos da sociedade e mostrar que a vida e a gangorra econômica são mais complicadas do que se imagina. O importante é saber que Plínio Marcos não estava só nessa cruzada. Muitos nomes do teatro e da literatura também se preocuparam em recuperar do olvido personagens esquecidos e encurralados pelo preconceito e a intolerância de classes sociais cruéis e violentas, mas foi ele sem dúvida que soube dar-lhes voz com mais propriedade, pois amava de todo o coração essa gente perdida, transformando-a em dignos seres humanos pelo menos no teatro.

O post Plínio Marcos, o poeta das quebradas do mundaréu apareceu primeiro em Teatro Hoje.

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Não há outro dramaturgo que tenha se aproximado com tanto carinho dos excluídos da sociedade como Plínio Marcos. Seu interesse não era apenas temático, ele realmente se identificava com os marginais a ponto de, no fim da vida, assumir radicalmente ele próprio essa condição. Suas mais de quatro dezenas de trabalhos publicados e encenados (entre peças de teatro adulto e infantil, livros de contos, novelas policiais, relatos autobiográficos e romances) dão vida a um elemento invisível aos olhos, desses que não fazem parte de estatísticas oficiais nem são estudados pela Academia, não são citados em fóruns de debates e não recebem a atenção da população que, na maior parte das vezes, os evitam quando aparecem pelas ruas & becos.

Prostitutas, cafetões, homossexuais, alcaguetes, meganhas corruptos, traficantes e proxenetas das mais variadas procedências alimentavam sua arte como personagens perseguidos que ludibriavam a polícia e tentavam a duras penas sobreviver de expedientes pouco louváveis, mas sempre respeitando códigos de conduta próprios. Afinal, tinham aprendido na porrada a filosofia das ruas desde pequenos. Portanto, nada tinham a perder, a não ser a própria vida.

Na sua última década de vida, depois de ter conseguido o reconhecimento da mídia, o louvor dos críticos e a simpatia do público, Plínio manteve-se fiel aos seus princípios: largou tudo (casa, mulher e filhos) e imergiu nas quebradas do mundaréu, vivendo de favores e vendendo suas peças (confeccionadas e pagas de seu bolso) nas portas de teatro e locais de grande afluência de possíveis interessados na sua arte. A galera amiga ficou desorientada. Uns disseram que era um exagero, outros avaliaram como uma atitude de imolação, uma coerência política e social, uma espécie de opção de mimetizar os marginais que ele tanto respeitava.

Um dia, ao receber um prêmio por sua obra, ele dedicou a estatueta ao Gigetto, o restaurante paulistano que o tinha alimentado (literalmente) durante anos. Noutra dessas noitadas regadas a celebridades, a estarrecida plateia do Teatro Municipal de São Paulo ouviu o seguinte discurso: “Já disse mil vezes: não me deem prêmios, só quero que os jornais divulguem minhas peças para que o público possa assisti-las nas salas de espetáculo e eu ganhar algum para montar a seguinte”.

Tinha sentido: na época, a mídia o estava boicotando, era esnobado pelos intelectuais e a ditadura fungava em seu cangote, pois ele escancarava as piores mazelas de uma sociedade doente, constrangendo as plateias e as autoridades, que queriam vê-lo pelas costas. Quando a barra pesou, ficou com a cabeça a prêmio: o plano era sumir com ele. Amigos se reuniram e chegaram à conclusão que só tendo visibilidade na mídia e sendo reconhecido pelo público nas ruas, Plínio Marcos conseguiria sobreviver a mais aquela provação. Um desses amigos era Bráulio Pedroso, dramaturgo famoso que resolveu a questão da seguinte maneira: colocou-o como ator de sua telenovela Beto Rockfeller, na extinta TV Tupi, em 1968. Seu personagem (o hilário motorista Vitório) brilhou por seu carisma, sua graça irreverente e sua gíria sempre antenada com as veredas sujas de uma megalópole decadente que insistia em desviar de pessoas humildes que não tinham nada no bolso, mas viviam da própria honra. A novela foi um sucesso (durou dois anos) e Plínio continuou acrescentando títulos a sua carreira de dramaturgo.

A perseguição não começou com a ditadura, vinha de longe e não era de graça: Plínio tinha montado (ainda em 1959) Barrela, a história da curra de um jovem numa prisão. Seguiram-se: Os Fantoches (1960), Quando as Máquinas param (1963), Reportagem de um Tempo Mau (1965), Dois Perdidos numa Noite Suja (1966) e Navalha na Carne (1967), provavelmente seu maior sucesso.

De Santos para o Brasil e o mundo

Plínio Marcos nasceu em Santos, cidade litorânea de São Paulo. Foi funileiro, camelô, jogou futebol no time da Portuguesa Santista, trabalhou no circo (onde aprendeu as manhas do clown) e, sob influência da escritora e jornalista Patrícia Galvão, a Pagu, musa do modernismo, envolveu-se com o teatro. Sua estreia não teve muito êxito na época: por sua linguagem crua, Barrela só teve uma apresentação e ficou interditada durante 21 anos pela censura. Em outras palavras: Plínio sempre incomodou pelo simples fato de existir, tanto nos regimes democráticos quanto em épocas de exceção. Afinal, ninguém quer ver a realidade nua explodindo no palco, na cara de uma burguesia que tem medo, pois pressente que, a qualquer momento, pode ser destronada e perder a boquinha.

Em 1966, sob a direção de Benjamin Cattan, ele e Ademir Rocha interpretam Dois Perdidos Numa Noite Suja no Ponto de Encontro, bar da Galeria Metrópole, em São Paulo, que marcou sua estreia como profissional. Fez barulho. A peça tocou o coração de artistas e do público.

Plínio Marcos já não era mais um desconhecido, tinha angariado a simpatia de grandes nomes do teatro, de atores e atrizes a renomados diretores da área.

Navalha na Carne, sua obra seguinte, enfrenta graves problemas com a Censura. A classe teatral se mobiliza. Leituras no Teatro de Arena e no teatrinho particular de Cacilda Becker e Walmor Chagas reúnem a crítica e artistas, que pressionam pela liberação do texto, permitindo a montagem em 1967. Mas houve um problema: o pungente desempenho de Ruthinéa de Moraes, vivendo a prostituta explorada pelo gigolô, fez com que o espetáculo só fosse liberado para maiores de 21 anos.

O mesmo papel impulsionou a carreira de Tônia Carrero, na montagem carioca sob a direção de Fauzi Arap, em 1968, no Teatro Maison de France, contracenando com o fabuloso Nelson Xavier e Emiliano Queirós. No ano anterior, Plínio tinha dirigido outro texto, Quando as Máquinas Param, no Teatro de Arte, sala pequena do TBC, que chamou a atenção para o trabalho da novata Miriam Mehler. Também em 1967, surge nova criação, Homens de Papel, com Maria Della Costa interpretando a catadora de papel Nhanha, pelo Teatro Popular de Arte – TPA.

Crítica e público ainda não estavam refeitos do impacto dessas montagens, quando Plínio manda para a ribalta em 1969 um novo texto, Abajur Lilás, a história da descida aos infernos de três prostitutas numa trajetória abjeta de degradação física e moral.

É de se perguntar como que, em tão pouco tempo de atividade profissional, ele conseguiu arrebanhar tanta admiração da classe teatral. Dizer que era pelos seus textos seria uma meia verdade. Plínio Marcos era um sedutor nato. À revelia da idade que tivesse, parecia ter sempre a jovialidade de um garoto de dezoito anos. Tinha um sorriso moleque encantador. Era carismático. Conseguia atrair jovens e adultos, que formavam à sua volta um reduto de fãs, embevecidos por sua retórica, humor e histórias fantásticas que inventava na hora.

Plínio atuava em várias mídias. Fervoroso defensor dos seus direitos, envolveu-se num caloroso debate, transmitido pela TV, com a deputada Conceição da Costa Neves, no qual advogava pela sua liberdade de expressão. Já era um nome nacional e, como articulista do jornal Última Hora, dispunha de uma tribuna para arremeter contra a censura e a ditadura.

As trevas caem sobre o autor

Sempre insubmisso e nunca admitindo negociar com seus algozes para liberação de suas peças, depois das montagens de Dois Perdidos e Navalha, toda sua obra foi proibida pela censura, obrigando-o a viver de bicos jornalísticos nos raros órgãos da imprensa que aceitavam suas colaborações.

A partir da década de 80, Plínio muda um pouco o rumo de seu enfoque dramatúrgico em função de sua própria opção de vida: interessa-se por assuntos esotéricos, por exemplo, e leitura do tarô. Dessa nova fase, nasce Madame Blavatsky, encenada por Jorge Takla em 1985, grande painel sobre a vida da mística autora de A Doutrina Secreta. E era comum vê-lo todo de preto, portando um cajado com uma cruz na ponta, pronunciando longos discursos para plateias especiais a respeito de temas que normalmente não fariam parte de seus temas habituais. Mas era apenas a performance de um ator fora do palco, ele não tinha abdicado um centímetro de suas convicções políticas e sociais.

Tanto que não esqueceu de suas raízes: em 1986, encena Balada de um Palhaço, com direção de Odavlas Petti, uma abordagem lírica sobre dois palhaços de circo que dividem o picadeiro e que se alfinetam um ao outro (como dois clowns de Beckett) rumo ao entendimento. Há humor, há tristeza e uma ponta de amargura.

Depois disso, publicou em livro e montou outras peças, como A Manche Roxa (1988), O Assassinato do Anão do Caralho Grande (1995), O Bote da Loba (1997) e deixou inacabado o texto Chico Viola, uma homenagem (à sua maneira) ao cantor Francisco Alves, o mesmo que tinha feito no musical Noel Rosa, o Poeta da Vila e seus Amores, de 1977.

Plínio Marcos foi traduzido, publicado e encenado em francês, espanhol, inglês e alemão; sua obra foi tema de teses de sociolinguística, semiologia, psicologia da religião, dramaturgia e filosofia, em universidades do Brasil e do exterior.

Recebeu os principais prêmios nacionais em todas as atividades nas quais atuou (teatro, cinema, televisão e literatura), como ator, diretor, escritor e dramaturgo.

Sua saúde entrou em declínio a partir de agosto de 1999 em virtude do diabetes, quando sofreu um derrame cerebral que deixou sequelas: seu lado esquerdo ficou paralisado, incapacitando sua respiração sem o auxílio de aparelhos. Depois do segundo derrame, no fim de outubro, foi internado no Instituto do Coração, em São Paulo, com infecção pulmonar. Faleceu dois dias depois, aos 64 anos de idade.

Afirmar que Plínio foi e continua sendo um autor maldito é pouco. Ele revolucionou a arte dramatúrgica de tal maneira que nada depois dele foi o mesmo. Ninguém pode hoje negligenciar suas lições e voltar a fazer um teatro certinho & asséptico, com mensagens subliminares, símbolos e metáforas, pois seu estilo desbocado e explícito escancarou a possibilidade de acertar na jugular da vida sem medir consequências. Afinal, é para isso que existe a arte do teatro: abrir os olhos dos que ainda hesitam em aceitar a verdade.

As avaliações efusivas de críticos como Sábato Magaldi, Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado, Yan Michalski, Eneida de Moraes, Bárbara Heliodora e João Apolinário não deixam dúvida alguma sobre a importância de Plínio Marcos como dramaturgo, escritor e jornalista, tendo reabilitado os diálogos coloquiais (recheados de jargões e gírias de grupos apartados da sociedade), até então considerados simples grosserias pelos intelectuais babacas e reacionários que não conseguiam aceitar a realidade.


Diálogos possíveis & impossíveis

Da mesma forma que é pertinente dizer que a escrita naturalista e os personagens de Plínio Marcos dialogam diretamente com a literatura de Marcos Rey (O Enterro da Cafetina, Memórias de um Gigolô), Antônio Fraga (Desabrigo e Outros Trecos), Carolina Maria de Jesus (Quarto de Despejo) e, mais especificamente, com João Antônio (Perus, Malagueta e Bacanaço e Leão de Chácara), também é lícito argumentar que há diferenças fundamentais de propósitos nos três primeiros: enquanto Rey desenvolvia uma ficção mais insolente, Fraga contrapunha o submundo (conteúdo) a uma sofisticação estilística (forma) que desconcertou até Oswald de Andrade. Por sua vez, Carolina tinha a intenção mais documental e jornalística, ao passo que João Antônio foi o herdeiro inquestionável tanto de Plínio Marcos quanto de Lima Barreto ao colocar na linha de frente personagens esquecidos da sociedade e mostrar que a vida e a gangorra econômica são mais complicadas do que se imagina.

O importante é saber que Plínio Marcos não estava só nessa cruzada. Muitos nomes do teatro e da literatura também se preocuparam em recuperar do olvido personagens esquecidos e encurralados pelo preconceito e a intolerância de classes sociais cruéis e violentas, mas foi ele sem dúvida que soube dar-lhes voz com mais propriedade, pois amava de todo o coração essa gente perdida, transformando-a em dignos seres humanos pelo menos no teatro.

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Ruth de Souza: a rainha sem trono https://teatrohoje.com.br/2019/08/01/ruth-de-souza-a-rainha-sem-trono/ Thu, 01 Aug 2019 19:29:37 +0000 http://br1012.teste.website/~beeped34/beepecriaoc/teatrohoje/?p=71668 Já não se fazem mais atrizes como Ruth de Souza. Digna, altiva, dona do próprio nariz, tinha princípios éticos, profissionais e artísticos que botou em prática durante toda sua carreira, construída a ferro & fogo, com muito suor e dedicação. Ainda menina, sentiu logo o preconceito contra os negros. Provavelmente sem saber, ruminava consigo mesma algo muito parecido com o monólogo do judeu Shylock em O Mercador de Veneza, de Shakespeare: “Como pode haver discriminação se a remela do branco é igual à do negro, as lágrimas são iguais, o sangue do negro é vermelho e do branco também?” E fechava sempre com as mesmas palavras: “Quero ser alguém”. Ruth nasceu no Rio de Janeiro, bairro Engenho de Dentro, e foi criada numa fazendola em Porto Marinho, divisa do Rio com Minas Gerais. Estudou no Colégio Júlio de Castilhos, escola pública de Copacabana, e ficou interna três anos em um colégio de freiras, o Colégio Santa Margarida, na Tijuca. O primeiro emprego foi de caixa na Casa dos Estudantes. Nesta época, já fazia parte do TEN – Teatro Experimental Negro. Sua estreia no teatro foi em Imperador Jones, de Eugene O´Neill, interpretando uma escrava, sob a direção de Abdias Nascimento, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Já que haviam conseguido a liberação gratuita da peça, pelo próprio autor, a segunda peça do TEN também foi de O`Neill: Todos os filhos de Deus têm asas, assim como a terceira: O moleque sonhador. Ruth só teve crítica positiva na terceira peça: “Ruth está perfeita, fazendo seu personagem com muita habilidade, o que é peculiar a essa excelente atriz” e “Com um desempenho brilhante, Ruth de Souza é sempre figura marcante nos espetáculos que participa”. Em 1947, Lúcio Cardoso escreveu uma peça especialmente para eles: O filho pródigo. Choveram elogios da crítica ao seu desempenho: “Extraordinária intérprete dramática”. Ela foi indicada para o prêmio de revelação de atriz, mas quem levou o prêmio foi Nicete Bruno, por A filha de Iório. Seguiram-se três filmes: 1947 – Terra Violenta, de E. Bernoudy, Atlântica – 1º. trabalho no cinema, onde atuou ao lado de Cacilda Becker, Ziembinsky, Margarida Rey, Maria Della Costa, Jardel Filho; 1948 – Também somos irmãos, de José Carlos Burle – fazia a namorada do Grande Otelo e ainda em 1948 Falta alguém no manicômio, com Oscarito e Grande Otelo. Nesse mesmo ano, a Fundação Rockfeller ofereceu bolsas de estudos para artistas negros e o Paschoal Carlos Magno indicou seu nome. Foi e estudou em Nova Iorque, Cleveland e Washington. Na Escola de Cleveland, fez o papel principal em Dark of the Moon, de Howard Dixon Richardson, no Teatro Kamuru House. Aprendeu tudo de teatro, desde a bilheteria, passando pelos bastidores e chegando ao palco. Na sequência, Ruth foi convidada pela Cia. Cinematográfica Vera Cruz para fazer Terra é sempre Terra, de Tom Payne, em 1950, quando recebeu os Prêmios Saci e Governador do Estado; depois Ângela, do mesmo diretor, com mais dois prêmios: Associação de Críticos Cinematográficos do Rio de Janeiro e Associação de Críticos de São Paulo. Não parou mais. Críticas elogiosas, convites, prêmios. Em 1951, fez o filme Sinhá Moça, de Tom Payne, e recebeu os Prêmios Saci, Índio e Governador do Estado, e disputou o prêmio de melhor atriz internacional com Katharine Hepburn e Lili Palmer (ganhou a Lili) no Festival de Veneza de 1954, aparecendo na tela somente 15 minutos.  A Eliane Lage era a protagonista e Ruth fazia uma escrava. O filme ganhou prêmio de direção. A esta altura, sua carreira já era sólida o suficiente para engatar um filme atrás de outro, trabalhando sob a direção Abílio Pereira de Almeida, D.A. Hamza,  Rubens Biáfora, Flávio Rangel, César Mensolo e Walter Hugo Khoury. Voltou ao teatro com Quarto de Despejo (direção de Amir Haddad), baseado no livro de Carolina Maria de Jesus, Réquiem para uma negra, de William Faulkner (com Fulvio Stefanini, Carlos Zara, Nídia Lícia) e A Cabana do Pai Tomás (1969) com a Companhia de Sérgio Cardoso e Nídia Lícia. Para interpretar a personagem em Quarto de Despejo, Ruth fez laboratório no meio das ruas, vestida de mendiga e catando papéis na rua. Considerava este um dos mais importantes papéis de sua carreira, embora a peça não tenha atraído muita gente para o teatro. Resumindo a conversa: em seus 70 anos de carreira, Ruth fez 30 peças de teatro, 30 filmes e 40 novelas, sempre (se é que isso é possível) humilde e altiva. Era uma perfeccionista em sua arte, estudou, aperfeiçoou-se, manteve alta sua autoestima, mas sabia que era uma rainha sem trono, pois ele sempre foi ocupado por brancos. A atriz morreu em 28 de julho de 2019, aos 98 anos.    

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Já não se fazem mais atrizes como Ruth de Souza. Digna, altiva, dona do próprio nariz, tinha princípios éticos, profissionais e artísticos que botou em prática durante toda sua carreira, construída a ferro & fogo, com muito suor e dedicação.

Ainda menina, sentiu logo o preconceito contra os negros. Provavelmente sem saber, ruminava consigo mesma algo muito parecido com o monólogo do judeu Shylock em O Mercador de Veneza, de Shakespeare: “Como pode haver discriminação se a remela do branco é igual à do negro, as lágrimas são iguais, o sangue do negro é vermelho e do branco também?” E fechava sempre com as mesmas palavras: “Quero ser alguém”.

Ruth nasceu no Rio de Janeiro, bairro Engenho de Dentro, e foi criada numa fazendola em Porto Marinho, divisa do Rio com Minas Gerais. Estudou no Colégio Júlio de Castilhos, escola pública de Copacabana, e ficou interna três anos em um colégio de freiras, o Colégio Santa Margarida, na Tijuca.

O primeiro emprego foi de caixa na Casa dos Estudantes. Nesta época, já fazia parte do TEN – Teatro Experimental Negro. Sua estreia no teatro foi em Imperador Jones, de Eugene O´Neill, interpretando uma escrava, sob a direção de Abdias Nascimento, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Já que haviam conseguido a liberação gratuita da peça, pelo próprio autor, a segunda peça do TEN também foi de O`Neill: Todos os filhos de Deus têm asas, assim como a terceira: O moleque sonhador.

Ruth só teve crítica positiva na terceira peça: “Ruth está perfeita, fazendo seu personagem com muita habilidade, o que é peculiar a essa excelente atriz” e “Com um desempenho brilhante, Ruth de Souza é sempre figura marcante nos espetáculos que participa”.

Em 1947, Lúcio Cardoso escreveu uma peça especialmente para eles: O filho pródigo. Choveram elogios da crítica ao seu desempenho: “Extraordinária intérprete dramática”. Ela foi indicada para o prêmio de revelação de atriz, mas quem levou o prêmio foi Nicete Bruno, por A filha de Iório.

Seguiram-se três filmes: 1947 – Terra Violenta, de E. Bernoudy, Atlântica – 1º. trabalho no cinema, onde atuou ao lado de Cacilda Becker, Ziembinsky, Margarida Rey, Maria Della Costa, Jardel Filho; 1948 – Também somos irmãos, de José Carlos Burle – fazia a namorada do Grande Otelo e ainda em 1948 Falta alguém no manicômio, com Oscarito e Grande Otelo.

Nesse mesmo ano, a Fundação Rockfeller ofereceu bolsas de estudos para artistas negros e o Paschoal Carlos Magno indicou seu nome. Foi e estudou em Nova Iorque, Cleveland e Washington. Na Escola de Cleveland, fez o papel principal em Dark of the Moon, de Howard Dixon Richardson, no Teatro Kamuru House. Aprendeu tudo de teatro, desde a bilheteria, passando pelos bastidores e chegando ao palco.

Na sequência, Ruth foi convidada pela Cia. Cinematográfica Vera Cruz para fazer Terra é sempre Terra, de Tom Payne, em 1950, quando recebeu os Prêmios Saci e Governador do Estado; depois Ângela, do mesmo diretor, com mais dois prêmios: Associação de Críticos Cinematográficos do Rio de Janeiro e Associação de Críticos de São Paulo.

Não parou mais. Críticas elogiosas, convites, prêmios. Em 1951, fez o filme Sinhá Moça, de Tom Payne, e recebeu os Prêmios Saci, Índio e Governador do Estado, e disputou o prêmio de melhor atriz internacional com Katharine Hepburn e Lili Palmer (ganhou a Lili) no Festival de Veneza de 1954, aparecendo na tela somente 15 minutos.  A Eliane Lage era a protagonista e Ruth fazia uma escrava. O filme ganhou prêmio de direção.

A esta altura, sua carreira já era sólida o suficiente para engatar um filme atrás de outro, trabalhando sob a direção Abílio Pereira de Almeida, D.A. Hamza,  Rubens Biáfora, Flávio Rangel, César Mensolo e Walter Hugo Khoury.

Voltou ao teatro com Quarto de Despejo (direção de Amir Haddad), baseado no livro de Carolina Maria de Jesus, Réquiem para uma negra, de William Faulkner (com Fulvio Stefanini, Carlos Zara, Nídia Lícia) e A Cabana do Pai Tomás (1969) com a Companhia de Sérgio Cardoso e Nídia Lícia.

Para interpretar a personagem em Quarto de Despejo, Ruth fez laboratório no meio das ruas, vestida de mendiga e catando papéis na rua. Considerava este um dos mais importantes papéis de sua carreira, embora a peça não tenha atraído muita gente para o teatro.

Resumindo a conversa: em seus 70 anos de carreira, Ruth fez 30 peças de teatro, 30 filmes e 40 novelas, sempre (se é que isso é possível) humilde e altiva. Era uma perfeccionista em sua arte, estudou, aperfeiçoou-se, manteve alta sua autoestima, mas sabia que era uma rainha sem trono, pois ele sempre foi ocupado por brancos.

A atriz morreu em 28 de julho de 2019, aos 98 anos.

 

 

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O meu nome é Will https://teatrohoje.com.br/2019/07/28/o-meu-nome-e-will/ Sun, 28 Jul 2019 08:26:18 +0000 http://desenv.teatrohoje.com.br/?p=69406 O post O meu nome é Will apareceu primeiro em Teatro Hoje.

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Will & friends, a atriz inglesa Ellen Terry encarnando Lady Macbeth na montagem de 1888, o busto de Shakespeare e a maquete do teatro Globo de Londres

Através dos séculos, um espectro enorme de escritores produziu dezenas de milhares de peças teatrais; uma quantidade tal que tornaria necessária a existência de milhares de bibliotecas apenas para abrigar todo este material. Apesar disso, poucos autores conseguiram atravessar os séculos e ainda serem encenados nos dias de hoje. William Shakespeare é um deles.

As peças de Shakespeare são produzidas em japonês, chinês, português, yorubá, árabe e em todo e qualquer outro país onde aconteça uma performance teatral. Shakespeare, além disso, é citado em discursos políticos e também em tribunais de justiça. Seus versos são usados por marxistas, budistas, católicos, luteranos, judeus, palestinos, monarquistas, feministas, animistas, agnósticos e toda sorte de “istas” que podem ser listados. Shakespeare fala através dos séculos, a despeito de raças, classes e credos. Será que desde que ele se tornou um autor de teatro foi assim?

É oportuno lembrar que Shakespeare na sua época não era um clássico (o que aliás esquecemos quando lemos ou montamos suas peças), mas um autor contemporâneo que sobrevivia de seu ofício. Clássicos eram Ovídio, Sêneca, Plauto, Maquiavel, Aristóteles (traduzido em Latim), entre outros. Por que a sua importância só foi percebida séculos depois? Seus pares foram incapazes de notar que Shakespeare era excepcional?

A questão reside em saber o que significava ser “excepcional” na época de Shakespeare. Certamente, um guardador de cavalos que se tornou ator e que depois virou autor e que, além de tudo, nem instrução universitária tinha, estava muito longe deste perfil. Com um currículo pouco acadêmico e escrevendo para um veículo (teatro) considerado menor pela intelectualidade em geral, Shakespeare jamais engrossaria as fileiras da Academia Inglesa de Letras ou algo parecido. Os literatos de prestígio escreviam poesia, gênero considerado de alta grandeza e digno de louvor. Com o fechamento dos teatros em 1592, por causa da peste, Shakespeare produz dois poemas narrativos longos – Vênus e Adonis, O rapto de Lucrecia – que se tornaram sucessos de publicação e deram prestígio intelectual e artístico ao bardo – no caso de Vênus e Adonis, o poema foi reeditado pelo menos dez vezes ao longo de sua vida. Apesar deste fato, assim que as casas de espetáculos foram reabertas, Shakespeare se volta exclusivamente para o teatro. Uma atitude que pode ser considerada quase que excêntrica, pois a profissão de dramaturgo era pouco estimada e sua prática, mesmo bem-sucedida, conquistava pouco respeito crítico. O que Shakespeare encontrou no teatro?  

Só podemos entender ou apreciar a extraordinária realização de Shakespeare se estivermos preparados para reconhecer que ele não estava escrevendo poesia para ser guardada na biblioteca ou para ficar na mesa de cabeceira de uma cama, mas que ele escolheu escrever para o teatro para fazer poesia através de histórias que revelavam o que pessoas diziam e faziam. Shakespeare percebeu na mecânica do fazer teatral a possibilidade de se construir um cosmos com forma e conteúdo que espelhasse o mundo daqueles que estavam assistindo às suas peças. 

Observando seus textos e conhecendo o palco onde foram montados pode-se ter uma ideia das encenações produzidas pelos artistas da época. O edifício teatral elisabetano, um modelo arquitetônico com três palcos em planos diferentes, proporcionava ao espetáculo uma ação contínua, com música ao vivo pontuando o espetáculo. Uma imensa plateia circundava o palco principal, em geral composta pelo público mais pobre, que ficava de pé. Um público ávido por ver e ouvir teatro. Assistir ao ator e saborear a linguagem poética.

Não foi à toa que, no período de ouro do teatro elisabetano, de 1567 até o fechamento dos teatros pelos puritanos 75 anos depois, calcula-se que as casas de espetáculo tenham atraído 50 milhões de espectadores pagantes, algo como dez vezes o total da população da Inglaterra no tempo de Shakespeare. Para o empreendimento teatral londrino lucrar, os teatros tinham que atrair 2 mil espectadores por dia – mais ou menos 1% da população da cidade – em torno de duzentas e tantas vezes ao ano, e fazer isso repetidamente, enfrentando uma dura competição. Além disso, era necessário mudar de espetáculo com frequência para assegurar o retorno do público. As companhias apresentavam pelo menos cinco peças diferentes por semana e deviam usar o tempo livre que dispunham para ensaiar os novos textos que eram preparados.

É neste universo que o futuro autor de uma das obras mais conhecidas do teatro universal se depara quando chega a Londres no final da década de 1580. As casas de espetáculos já se espalhavam pela cidade e continuariam a aparecer ao longo de toda a sua carreira. A atividade teatral na época era por vezes incerta: os edifícios teatrais eram usados também para outros eventos, como concursos de esgrima e lutas de animais com o intuito de aumentar os seus lucros. Segundo biógrafos e historiadores, a única exceção a isso era o Globe Theatre, mencionado como um lugar construído por atores, para atores. A forma de diversão e apreciação artística da maioria dos cidadãos da época consistia em frequentar o teatro. Então, é curioso imaginar que a plateia elisabetana era capaz de ir às lágrimas com uma récita de Doutor Faustus, de Christopher Marlowe, e no dia seguinte voltar ao mesmo lugar para se divertir com a morte de animais indefesos. É neste contexto que Shakespeare vai produzir suas obras: teatros que precisavam gerar lucro e uma plateia que num dia consumia sangue e no outro derramava lágrimas.                                                 

Sabe-se que nestes espetáculos não havia cenário e nenhum recurso de iluminação, ou seja, não se distinguia o dia da noite, a neblina do brilho do sol, o campo de batalha do quarto de amor, a não ser através das palavras. As cenas eram desenhadas ou “cenografadas” pela palavra dita pelos atores e, é claro, pela imaginação da plateia, que completava a história contada pelo autor. Se Oberon e Próspero se declaravam invisíveis então assim ficavam. Macbeth saía de um imenso campo de batalha para encontrar bruxas numa pequena charneca. E o público acompanhava tudo isso imaginando e ouvindo as narrativas e as aventuras dos personagens através da prosa, do verso e do jogo dos atores. 

A vida das peças shakespearianas residia na palavra. Sentimentos e emoções eram liberados no momento da fala. A plateia elisabetana devia vibrar com a pulsação, o ritmo, as formas sonoras, sons e significados contidos nos pentâmetros iâmbicos dos versos brancos em inglês. Em primeiro lugar, a despeito de tudo, era uma plateia que gostava de ouvir. 

Um fato histórico relevante: na época, a língua inglesa estava se modificando rapidamente, lutando para ganhar respeitabilidade, já que o Latim ainda era a língua dos documentos oficiais e das obras mais sérias de literatura e ciências. Várias publicações importantes como, por exemplo, Principia mathematica, de Isaac Newton, foram escritos em Latim. A biblioteca de Oxford, em 1605, possuía mais de 6 mil livros e, desses, apenas 36 eram em inglês. Graças à obra de Shakespeare e de seus contemporâneos, o inglês começa a adquirir status no país de sua criação. Os ingleses apaixonados por sua própria língua iam ao teatro para ouvir as palavras soando em inglês. E muitas delas eram novas, criadas por estes autores para melhor expressar o que se passava em cena. Segundo estudiosos e professores, Shakespeare, sozinho, teria cunhado 2035 vocábulos, sendo que só Hamlet proporcionou ao público 600 vocábulos que nunca tinham sido ouvidos antes. Ele produziu uma torrente de palavras e significados novos que muito deles, como o linguista Otto Jespersen observou, talvez não fossem entendidos com clareza pelo próprio autor. É o poeta revelando o que está velado, nomeando o ainda não-nomeado, pois, ao escrever, Shakespeare estava se relacionando com o desconhecido, com o que ele ainda não sabia, mas com o que estava buscando. 

Muitas dessas palavras criadas por Shakespeare não vingaram, mas um número bem grande efetivamente passou a ser usado e cerca de 800 ainda são empregadas nos dias de hoje. De qualquer forma, obviamente a questão não é a quantidade de palavras que ele utilizava e cunhava, mas o que fazia com elas. O que diferencia Shakespeare dos outros todos é a sua habilidade em iluminar tanto o que vai dentro das almas dos personagens como a sua realidade cotidiana mais comezinha. E isto aconteceu porque ele percebeu a força que pode alcançar um idioma. Shakespeare, inventor de sua língua, desvela o cerne do comportamento humano através de uma linguagem poética. E é pela palavra que ele captura e conserva perene a humanidade de seu tempo. 

Um fato digno de nota: Shakespeare, poeta e criador de sua língua, quando nasceu, podia-se ler o seu registro em Latim, mas na época de sua morte o que encontramos é “William Shakespeare, gentleman (cavalheiro)”, no idioma inglês. Uma mudança de status da língua revelando em que medida a obra de Shakespeare e seus contemporâneos instauraram uma nova linguagem, erigindo um mundo. A obra shakespeariana abriu e abre mundo. Como na inscrição do Globe Theatre: 

 

Totus mundus agit histronem

The whole world is a playhouse

O mundo inteiro é um palco

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