A dicotomia como ponto de partida

 

Em março de 2012, a historiadora e crítica teatral Tania Brandão publicou em seu blog um texto-desabafo em que, movida pela revelação dos agraciados da edição carioca do Prêmio Shell 2011, solicitava uma maior integração deste com o sistema teatral nacional (BRANDÃO, 2012). Segundo ela, naquele ano, a premiação (isto é, o júri) deixava de dialogar explicitamente com os espetáculos situados no “centro da dinâmica teatral”, cujo sucesso seria indicado não apenas por uma linguagem cênica, mas, sobretudo, por seu diálogo com o público, isto é, pelo sucesso de bilheteria. Aquilo que Brandão notaria na noite do anúncio da premiação teria sido, portanto, uma espécie de obliteração da identidade entre o êxito dos espetáculos que constituiriam o mercado teatral e as honrarias oferecidas durante a cerimônia.

Evidentemente, o texto de Tania Brandão gerou bastante polêmica entre a classe teatral (expressão que, assim como a de “classe criativa”, é bastante utilizada, apesar de igualmente ambígua, dada a própria perspectiva marxista do termo). Pois, em sua reflexão, a autora explicitamente estabeleceria uma dicotomia entre mercado e experimentação, de modo que, naquele ano, a dita premiação deslocava seu foco dos espetáculos com grande afluência de público para aqueles “trabalhos de pequena ourivesaria, tom intimista, modalidades de expressão dissociadas da sensibilidade do homem comum […] que a própria classe teatral vê” (Ibid.). Ao formular essa oposição, Brandão, favorável ao primeiro polo de produção, chamaria ao debate aqueles indivíduos que apoiariam o eixo contrastante. O debate provocado pelo post no circuito teatral girou, portanto, em torno da oposição legislada pela própria autora: ora quebrar-se-iam lanças pelo “teatro de mercado”, ora pelo “teatro da experimentação”.

O diagnóstico de Brandão parece adequado, bem como o convite da autora para se pensar a respeito dessa questão. Motivado por essa solicitação, gostaria de retomar esse debate, sem, contudo, reforçar a dicotomia estabelecida pela autora. Pois, ao que parece, o par opositivo mercado-experimentação parece mais desviar o foco da discussão pleiteada por Brandão do que estruturá-la. Acreditando, como ela, que vale a pena tentar entender a significação dessa dinâmica, gostaria de esboçar aqui uma análise material do mercado brasileiro, a fim de, não defender um ou outro polo da dicotomia, e sim descortinar a própria oposição.

Onde está o mercado teatral brasileiro?

 

O primeiro desafio encontrado aqui seria aquele referente à própria existência do mercado de teatro brasileiro. Afinal de contas, existe mercado teatral brasileiro?

Qualquer indivíduo (pesquisador, membro da classe ou “homem comum”) que se proponha a estudar o mercado brasileiro irá esbarrar em sérias dificuldades. Pois, onde estariam os estudos que descreveriam, a exemplo de outros setores da economia, os fluxos de bens, indivíduos, informações e capitais do mercado teatral brasileiro? Onde seria possível, por exemplo, observar a evolução do emprego formal nas artes cênicas, o montante investido (investimento é bem diferente de patrocínio) e os retornos sobre os investimentos, a evolução do lucro, o valor agregado, as estratégias de precificação dos ingressos e sua relação com a inflação, as estratégias competitivas das companhias, entre outros indicadores que descreveriam economicamente o setor teatral do país?

Ora, não há – nem nunca houve em âmbito brasileiro – nenhum estudo robusto sobre o mercado teatral do país. Ou seja, se um indivíduo se dirige à sessão de teatro em uma livraria, ele não encontrará nenhum livro dedicado ao mapeamento material do teatro brasileiro, apesar de ali proliferarem publicações sobre a teoria e a prática teatral, muitas delas motivadas pelo desejo de vincular o teatro aos conceitos e definições mais atualizados do “mercado intelectual”. Semelhante conclusão ele terá ao pesquisar as revistas acadêmicas do país ou ao frequentar os seminários dedicados à prática teatral: o teatro ali será situado, por exemplo, em um “campo expandido” no qual justapõem-se autores antinômicos – por exemplo, Nicolas Bourriaud, Jacques Rancière e Hal Foster – sem parecer haver nessa bricolagem um real pensamento a respeito da possibilidade mesma de tal transferência e justaposição conceitual. Pois, restringindo-se aos exemplos dados, o “campo expandido” seria uma expressão pontual formulada por Rosalind Krauss (1979) em contraposição explícita à acusação do pluralismo pós-modernista, que circunscreveria, a partir de uma ferramenta estruturalista problematicamente apropriada (a oposição paisagem-arquitetura), um conjunto de produções estadunidenses da década de 1970. Como seria possível então pensar um “campo expandido” para o teatro brasileiro sem a ferramenta estruturalista e as obras de Land Art analisadas por Krauss? O campo expandido não teria limites?

Deixando de lado as bricolagens teóricas do circuito teatral, retorne-se à questão (da inexistência) do mercado teatral brasileiro. Quais seriam as razões para a sintomática invisibilidade – nos debates, nas publicações, no circuito – do mercado teatral brasileiro? Uma resposta possível seria aquela dada pelos economistas: não há mercado teatral brasileiro simplesmente porque não há investimento e não há lucro (a ser reinvestido e também dividido entre os stakeholders). Essa resposta me foi dada há alguns anos por um dos pioneiros do estudo da economia da cultura brasileira. Resulta de sua iniciativa uma das primeiras publicações da área, de 2002, resultante de um ciclo de seminários focalizando a indústria cultural carioca. Os expoentes da economia da cultura seriam aquelas manifestações culturais cujo mercado é explícito, em especial, a indústria televisiva e os megaeventos. Assim, setores problemáticos – como o cinema e o teatro – estariam submetidos a manifestações culturais cuja estrutura de produção seria explicitamente industrial (a TV e os megaeventos). Essa também é a clara tendência da economia criativa, cujo escopo reúne, sob o imperativo da criatividade, modos de produção absolutamente distintos, justapondo, com isso, o Google ao espetáculo teatral1. Há, com isso, um retorno do reprimido: a indústria cultural que seria abordada com extrema desconfiança por Adorno seria, no paradigma da economia da cultura e da economia criativa, o carro-chefe de outras áreas dispersas em sua longa cauda.

Considere-se a resposta a respeito da inexistência do mercado teatral: o mercado não existe, posto que não há investimento, nem lucro. Seria isso verdade? Para comprovar essa resposta, é preciso percorrer dois caminhos: em primeiro lugar, deve-se investigar o que a teoria econômica sobre as artes cênicas nos diz sobre isso; em seguida, deve-se analisar brevemente o principal mecanismo catalisador da produção teatral brasileira, que não é, evidentemente, um banco de investimento, mas uma lei pública conhecida de todos, a Lei Rouanet.

A lei de Baumol e a inviabilidade econômica das artes cênicas

 

É consenso entre os economistas da cultura a importância do livro Performing Arts: The Economic Dilemma, considerado por muitos como uma das primeiras tentativas de investigação econômica sobre as artes cênicas. De fato, qualquer que seja a perspectiva adotada, haverá pressuposta a lei de Baumol: Françoise Benhamou, Harold L. Vogel e Ruth Towse – para ficar nos três nomes mais proeminentes de economistas que refletem sobre o setor cultural – baseiam seus estudos das artes cênicas na teoria de Baumol. Conforme explicita Towse (2010).

 

The cost disease provides an explanation for the rise in the costs of producing the performing arts; it has also been used to argue for an increase in public subsidy to the arts, though cultural economists (including Baumol and Bowen) make the case for government intervention through welfare economics. (p. 200)

 

Os economistas William Baumol e William Bowen formularam o seu modelo de fatalidade dos custos aplicado às artes cênicas em 1965, por solicitação da Fundação Ford. Na ocasião, eles desenvolveram uma justificativa econômica para as artes cênicas, comprovando, por estudos de caso e posterior dedução, a especificidade estrutural do setor. O foco fora a Broadway, pois o contexto era estadunidense. Qual seria ela, a especificidade econômica das artes cênicas? Basicamente, os economistas comprovam, por meio de fatos estilizados decorrentes da verificação empírica do setor, que as artes cênicas (a Broadway!) não são viáveis economicamente, dada a impossibilidade de se obter ganhos substanciais de produtividade. Resta-nos entender por quê. Diz Vogel (2011):

 

It takes as long to play a Brahms concerto today as it did 100 years ago, and a scene by Shakespeare requires the same acting time it did 350 years ago. Meanwhile, over the long run, productivity (output per person-hour) has steadily grown in nearly every other segment of the economy. As it happens, a live performance is unique in that it is itself an end product and is consumed at the point of production. (p. 488)

 

Diferentemente desse diagnóstico das artes cênicas, nos outros setores tem-se a substituição paulatina de um trabalho intensivo em tempo (em que se utiliza uma grande quantidade de tempo e pouca quantidade de bens, como assistir ao pôr do sol) por um trabalho intensivo em bens (em que utiliza-se pouca quantidade de tempo e uma grande quantidade de bens, como ir a um restaurante fast-food ao invés de cozinhar a própria comida ou contratar uma faxineira ao invés de realizar a própria faxina). Conforme o mercado de trabalho se torna mais valioso, tem-se a substituição das mercadorias intensivas em tempo pelas mercadorias intensivas em bens. Soma-se a isso o aumento dos custos, alinhado ao aumento geral dos preços (inflação) e também ao aumento dos preços dos ingressos, a fim de se remediar os gaps de renda.

Como financiar as artes cênicas se os custos unitários do setor crescem inelutavelmente, devido a uma defasagem de produtividade? Isto é, os espetáculos ao vivo apresentariam invariavelmente déficits crescentes, pois nesse caso não haveria incremento de produtividade, sendo essa última uma unidade de medida (básica ao discurso e à metodologia da engenharia de produção) resultante da razão resultados físicos/hora de trabalho. Um dos meios para se atingir o incremento de produtividade seria, conforme dito acima, a substituição da força de trabalho do homem pela máquina. Há algumas décadas, nos anos 1970 e 1980, essa lógica de substituição motivaria o aparecimento do mito da fábrica escura, isto é, de um ambiente deserto de humanos e povoado apenas por máquinas e robôs, cujo trabalho asseguraria tanto a qualidade quanto a produtividade, tornando também os acidentes de trabalho coisas do passado. Tal mito jamais poderia ser associado às artes cênicas, uma vez que máquinas, equipamentos e tecnologia não seriam os protagonistas desse palco de produção2.

Claro que não se descarta aqui a importância de tais dispositivos para o desenvolvimento das artes cênicas. Basta lembrar de como Jean-Jacques Roubine (1998) inicia o capítulo “O nascimento do teatro moderno”, no influente livro A linguagem da encenação teatral:

 

Nos últimos anos do século XIX ocorreram dois fenômenos, ambos resultantes da revolução tecnológica, de uma importância decisiva para a evolução do espetáculo teatral, na medida em que contribuíram para aquilo que designamos como o surgimento do encenador. Em primeiro lugar, começou a se apagar a noção das fronteiras, e a seguir, a das distâncias. Em segundo, foram descobertos os recursos da iluminação cênica. (p. 19)

 

A crescente mobilidade que caracteriza a modernidade, bem como o advento da luz elétrica, se são definitivos para a evolução das artes cênicas (mas, em especial o teatro, foco desta investigação), o são sobretudo esteticamente. Isto é, o surgimento da encenação como arte autônoma, ou princípio estético, conduz a um desenvolvimento teatral que não se traduz necessariamente em um aumento de produtividade associado ao crescimento econômico. Pois, por mais decisivos que os dispositivos tecnológicos sejam para a transformação do espetáculo ao vivo, eles serão (ao que tudo indica, sempre) menos importantes que a tékhne. Mas o que é tékhne? Com a palavra, Philippe Dubois (2004):

 

Na origem, a tecnologia é simplesmente, e literalmente, um saber-fazer. Como bem lembrou Jean-Pierre Vernant, só foi possível haver tekhné, no sentido clássico (notadamente entre os gregos), no âmago da concepção fundamentalmente instrumentalista de produção humana. É neste sentido que o termo tékhne corresponde estritamente ao sentido aristotélico da palavra arte, que designava não as “belas-artes” (acepção moderna da palavra, que surge no século XVIII), mas todo procedimento de fabricação segundo regras determinadas e resultante na produção de objetos belos ou utilitários. Esses objetos podem ser materiais […] ou intelectuais. […] A tékhne é então, antes de mais nada, uma arte do fazer humano. (p. 32-33)

 

Se a tékhne é mais importante que a tecnologia nas artes cênicas, isso se dá à centralidade do saber-fazer de atores, encenadores, cenógrafos, figurinistas, iluminadores, dramaturgos, dentre outros profissionais cujo trabalho é tido como um fim em si mesmo, e não como um meio para a fabricação de uma manufatura, por exemplo. Ou, segundo o economista Celso Furtado (2012), um dos nossos primeiros ministros da Cultura:

 

No mundo das artes, o conceito de trabalho é distinto. Na produção de um espetáculo o trabalho assume outra dimensão – deixa de ser meio para ser fim. Quando se produz um espetáculo – por exemplo, alguém que canta –, o trabalho do artista é um fim e, neste sentido, não pode ser substituído. A rigor, não se pode aumentar a produtividade do artista, coisa distinta de fazê-lo trabalhar mais. Mas o excesso de fadiga poderá comprometer a qualidade do que ele produz. Dessa forma, fora da mudança de suporte, não se pode assimilar a produção cultural às formas correntes de produção. (p. 70)

 

Implicitamente, o comentário de Furtado evidencia a lógica da lei de Baumol. Pois, o trabalho do performer (acrobata, ator, comediante, músico etc.), sendo um fim em si mesmo, impede o aumento da produção por trabalhador. “It takes four musicians”, esclarece James Heilbrun (2011), “as much playing time to perform a Beethoven string quartet as it did in 1800” (p. 91). Esse seria, portanto, um setor estagnante, ou arcaico.

Se a produtividade (i.e., produção por trabalhador) é estanque (um ator não pode realizar mais espetáculos por hora, como um operário pode produzir mais pregos por minuto), o salário não o é. Pois, os salários dos artistas envolvidos com as artes cênicas cresce conforme o aumento da remuneração em uma sociedade. Mas por que essa remuneração cresce? Segundo Baumol (HEILBRUN, 2011), o crescimento dos salários em uma sociedade resulta do aumento da produtividade física de determinadas atividades econômicas, reunidas sob o setor progressista. A despeito dos ganhos desiguais de produtividade entre os dois setores (a producivity lag), os salários de ambos crescem proporcionalmente, devido a uma espécie de solidariedade do mercado de trabalho:

 

It is not suggested that artists must be paid the same hourly wage as workers in other jobs, since working conditions and the non-monetary satisfaction obtained from employment differ across occupations. Rather, the argument is that all industries, including the arts, compete to hire workers in a nationally integrated labour market and that artists’ wages must therefore rise over time by the same proportion as wages in the general economy to enable the arts industry to hire the workers it needs to carry on. (Ibid., p. 92)

 

Desse modo, a lei de Baumol definiria dois setores: um progressista e outro arcaico. De um lado, haveria a possibilidade de substituição de capital por trabalho; de outro, a sua impossibilidade. Uma vez que os salários em ambos os setores crescem proporcionalmente, haveria aí um aumento dos custos do setor arcaico não seguido, todavia, por um aumento de produtividade correspondente. Essa é, basicamente, a lei de Baumol, comprovada pelos autores para diversos casos. O teatro seria teoricamente o caso típico notório devido ao grau mínimo de substituição de trabalho por capital, levando a poucos ganhos de produtividade. Nesse sentido, as artes cênicas são consideradas um caso extremo exemplar, sendo, portanto, um objeto-limite para se avaliar economicamente:

 

Setores intensivos em capital tenderiam a usufruir de mais ganhos de produtividade. Artes performáticas estão do lado oposto, pois são intensivos em trabalho, e além disso, máquinas, equipamentos e tecnologias têm participações muito restritas na produção, assim como tendem a mudar pouco, não permitindo uma trajetória sustentável de ganhos de produtividade. (NUNES, 2012, p. 18)

 

Ao longo das mais de quatro décadas que separam o estudo de Baumol e Bowen da presente data, muito se questionou a respeito dessa pesquisa, que tem o epíteto de lei. Enquanto algumas evidências empíricas tratam de não confirmar a lei de Baumol, outros, por sua vez, tratam de questionar os pressupostos desse modelo3. Quanto a essa segunda objeção, o economista brasileiro Alain Herscovici4 (2010) iria, por exemplo, identificar a lógica industrial e fordista subjacente à lei de Baumol, lançando a hipótese de, em um contexto econômico pautado pelas redes eletrônicas e pela economia digital, haver uma modificação do setor das artes cênicas. Seus exemplos, todavia, se referem menos à produção teatral – o caso arquetípico – do que os outros espetáculos ao vivo, como os grupos musicais que disponibilizam gratuitamente na rede as suas produções, tendo as suas receitas associadas às apresentações (o caso mais notório aqui seria a banda Calypso, sendo estudada inclusive por Chris Anderson em seu livro Free).

Sob outra ótica, uma contraevidência à Lei de Baumol seria justamente a Broadway. Conforme destaca Vogel (2011), “it is Broadway – essentially the theater district in New York City – that attracts a significant portion of commercial theater receipts in the United States, that defines an industry, and that is of greatest historical significance” (p. 481). Nesse contexto, um grande musical, como é o caso de Fantasma da ópera, pode negar a lei de Baumol, sendo tão ou mais lucrativo quanto um blockbuster cinematográfico, como Jurassic Park. Mesmo no caso da Broadway, Vogel não hesitaria em dizer, contudo, que 80% dos espetáculos nunca recobram por completo os seus custos. Considerando, em 2010, o custo de montagem de uma peça e de um musical na Broadway, respectivamente, 3 e 20 milhões de dólares, é fácil supor que o financiamento de tais empreendimentos seja realizado por grandes firmas de entretenimento que, dado seu porte, conseguem sobreviver a possíveis fracassos. Essa sobrevivência, muitas vezes, passa por uma estratégia de convergência midiática, por meio da qual um dado espetáculo integra-se a outros meios de expressão, configurando um mix de produtos nivelados sob um tema (lembre-se de Harry Potter: livro, cinema, brinquedos e parques temáticos).

Apesar dos questionamentos, há muitas evidências empíricas que com provam o modelo de Baumol. De acordo com Benhamou (2007), “embora tenham sido raros os testes que não corroboraram a lei de Baumol, essa lei é comprovada na maioria das vezes” (p. 59). No que Heilbrun (2011) concordaria ao afirmar que “the historical record strongly supports the hypothesis that, because of productivity lag, unit costs in the live performing arts have increased substantially faster than the general price level” (p. 93). Vogel (2011), por sua vez, também pontuaria o seguinte: “Empirical studies indeed suggest that ticket prices for live performances have risen at rates consistently higher than that for the consumer price index” (p. 488). Os estudos de Baumol & Bowen, mas também por outros autores em outros países, atestam a lei de Baumol em uma dimensão internacional, sem haver restrição, portanto, territorial. Em conjunto, essas pesquisas apontam, portanto, para uma lógica da atividade econômica em questão.

A fim de se remediar o déficit econômico, muitos espetáculos apostariam na redução de suas equipes de criação e produção e/ou diminuição da quantidade de ensaios, bem como da verba destinada à produção cenográfica e dos outros elementos do espetáculo. Isso seria chamado de déficit artístico, quando há um comprometimento da produção, com a finalidade de garantir a redução dos custos. Essa é uma explicação factível, por exemplo, para a presença de monólogos na cena brasileira em geral, e na carioca em particular. Veja-se a seguinte nota jornalística, de Torres (2014), com a crítica Barbara Heliodora5:

 

Ela [Heliodora] critica […] o que chama de excesso de monólogos. Nos últimos anos de trabalho no jornal, era esse formato o que mais lhe incomodava. “Eu não aguentava mais! De seis estreias, cinco eram monólogos! Um horror!”. Atualmente, há pelo menos quatro em cartaz no Rio de Janeiro. “Há pouco dinheiro no teatro carioca. Todo teatro feito aqui é com muita dificuldade. Não é como em São Paulo, que em qualquer momento tem 100 peças em cartaz. Aqui, se faz monólogo porque não tem dinheiro para mais. Com três atores no elenco, já é superprodução”.

 

Nesse caso substitui-se um déficit por outro: o comercial pelo artístico em produções mais enxutas. Mas, segundo Heilbrun (2011), “what makes the performing arts different is that the past provides much of the substance that we want to see performed. We do not want Hamlet with half the characters omitted because of the high cost of labour” (p. 97). Na realidade, a variedade é que conta. Pois, não se pode dizer a priori que uma adaptação de Hamlet, que conta com dezenas de personagens, para um único ator – sendo transformada, portanto, em monólogo – acarretaria necessariamente em um déficit artístico. De fato, como diz o teórico do teatro polônes Jan Kott (2003):

 

Hamlet não pode ser encenado integralmente, pois a representação duraria cerca de seis horas. É preciso escolher, resumir, cortar. Podemos representar apenas um dos Hamlets latentes nesse superdrama. Será sempre um Hamlet mais pobre que o de Shakespeare, mas pode ser igualmente um Hamlet enriquecido de todo o nosso tempo. Pode ser assim, mas prefiro dizer: deve ser assim. (p. 70)

 

Assim, uma montagem de Hamlet será sempre pobre em relação à matriz e rica de seu contexto histórico mais imediato. Para que não se permaneça ao nível da especulação téorica, basta dizer o seguinte: Ensaio. Hamlet, das Cia dos Atores – considerado pela extinta revista Bravo como o melhor espetáculo da primeira década de 2000, cuja estreia se deu em 2004 – contava com seis atores (Bel Garcia, César Augusto, Felipe Rocha, Fernando Eiras, Mallu Gali e Marcelo Olinto). Já em Ham-let, do Teatro Oficina – com estreia em 1993, tendo recebido os Prêmios Shell e Mambembe – havia 17 atores, incluindo o diretor José Celso Martinez Correa. A versão do diretor Aderbal Freire-Filho, com Wagner Moura no papel título, contava com dez atores em sua estreia, em junho de 2008. E, em 2013, o grupo iraniano Leev Theater apresentaria em Nova York o monólogo Hamlet, Prince of Grief, sintetizado em uma versão de intensos quarenta minutos. Nesse caso, o ator Afshin Hashemi, sentado diante de uma mesa, manipulava um conjunto de objetos (na maioria, brinquedos infantis) guardados em uma mala.

Ora, os quatro espetáculos aqui mencionados são absolutamente diversos a partir da proposta comum de encenar a história do cidadão mais famoso da Dinamarca, sendo todos muito bem recebidos por público e crítica. A quantidade de atores, portanto, não deve ser uma medida confiável para o

déficit artístico, sendo a fórmula de composição desse indicador muito mais complexa. Pois, a transfiguração das restrições econômicas é uma estratégia teatral bem-sucedida (pense-se, por exemplo, no despojamento anti-intelectualista de Asdrúbal Trouxe o Trombone). Tais exemplos confirmam, com isso, a seguinte colocação de Towse (2010): “There is no reason to suppose that a play with a small cast is any less artistically valuable than one with large cast, though it may indeed have been chosen for economic reasons” (p. 222).

As duas faces da moeda Lei Rouanet: catalisador e gargalo do teatro brasileiro

 

De acordo com Heilbrun, a productivity lag não seria uma justificativa para os subsídios, visto ser minimizada pelo desenvolvimento do setor progressista que, devido ao aumento dos salários, torna-se mais propenso a pagar ingressos mais caros resultantes do aumento do custo de produção. Ora, tal possibilidade questiona a obrigatoriedade de subsídios para as artes cênicas. Ao que Benhamou (2007) parece discordar:

 

A fragilidade econômica do setor, alimentada pela elevação dos custos e pela quase-ausência de reservas de produtividade, justifica, sem dúvida, a amplitude das subvenções públicas e o recurso ao mecenato nos países tradicionalmente liberais. Essa intervenção maciça, distribuída de forma muito desigual, não é suficiente para garantir ao setor um equilíbrio financeiro duradouro […] In the performing arts, crisis is apparently a way of life. A análise desses autores [Baumol & Bowen] marcou a economia da cultura, com a conclusão implícita da especificidade do setor e da vinculação necessária das atividades culturais à esfera não comercial subvencionada. […] Na França, o espetáculo ao vivo vive essencialmente das subvenções públicas […] Nos Estados Unidos, a contribuição do Estado para a sustentação do espetáculo ao vivo é bem menor. Segundo Werner Pommerehne e Bruno Fey [1993], a ajuda financeira pública aos teatros nesse país seria da ordem dos 5%. (p. 54-62)

 

Não apenas a economista francesa se opõe a Heilbrun, mas mesmo Vogel (2011), sob uma perspectiva estadunidense, reforçaria o diagnóstico:

 

the performing arts in particular generate more psychic than pecuniary income, and they operate under somewhat different economic assumptions than the other entertainment industries thus far discussed. In fact, many organizations in this segment are nonprofit, requiring for their very existence substantial subsidy from government and private-foundation grants and from contributions by individuals. (p. 479)

 

Sendo assim, os subsídios governamentais seriam justificados economicamente, conforme propõem os autores. Tendo isso em mente, passe-se à análise da Lei Rouanet.

Ao contrário do que muitas pessoas pensam, o mecanismo de isenção fiscal não é um privilégio do setor cultural, não podendo ser este, portanto, acusado de suposto comodismo. Trata-se, na realidade, de um instrumento governamental que remonta a outros momentos históricos. Especificamente em 1974, o Brasil ditatorial comandado pelo general Ernesto Geisel (1974-1978) definia o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), caracterizado por dar continuidade ao processo de industrialização por substituição das importações (ISI), processo esse pautado no endividamento externo. O modelo econômico utilizado no governo Geisel tratava de prosseguir com o crescimento econômico (iniciado no governo de Juscelino Kubitscheck e atingindo o seu auge na fase da ditadura militar, conhecida como o milagre econômico) através do desenvolvimento industrial da economia brasileira, “internalizando, em larga medida, os setores de bens de capital e insumos industriais” (HERMANN, 2005, p. 112).

 

(Continua…)

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1          Essa aproximação sob o guarda-chuva da Economia Criativa é plausível na medida em que as atividades econômicas associadas à Tecnologia da Informação guardam bastante semelhança com as práticas teatrais. Verbi gratia: a arquitetura de redes Peer-to-peer não seria a tradução na era informacional da criação coletiva? Considerando esta hipótese, nota-se um segundo retorno do reprimido, quando formas até então consideradas improdutivas passam a caracterizar os setores econômicos mais avançados.

2          A supermarionete de Edward Gordon Craig e o mito da fábrica escura parecem se alinhar em uma mesma genealogia. Mesmo em atualizações contemporâneas de Craig, a exemplo de Stifter’s Dinge, de Heiner Goebbels, a estética da ausência anti-Cage seria simbólica, isto é, necessitaria de performers operando fora de cena para que uma cena “autônoma” se presente aos olhos do espectador.

3          A dissertação de mestrado de Bernardo Nunes, com o título “A inovação na economia da cultura: analisando o papel da inovação na atividade teatral”, e sob a orientação de Fábio Sá Earp – uma das principais figuras da Economia do Entretenimento brasileira – iria avaliar criticamente os pressupostos da lei de Baumol. Segundo Nunes, as artes cênicas são mais bem analisadas economicamente caso se considere a teoria neoschumpeteriana, e não mais uma abordagem teórica neoclássica. Só aí é possível avaliar adequadamente a inovação. Por mais que seja interessante pensar as manifestações teatrais sob a ótica da destruição criativa e da inovação de tipo endêmico – a partir de uma analogia biológica – resta ainda a pergunta: por que as artes cênicas tendem a fracassar economicamente? Note-se que aqui não se está supondo o desaparecimento dessa atividade simplesmente por ela não ser capaz de produzir necessariamente ganhos de produtividade. A ótica aqui seria a de assumir, de fato, que as artes cênicas não são o modelo econômico adequado par excellence. E ponto. Ora, para toda regra há exceções. E, dialeticamente, nesse caso, exceções, em meio à grande maioria que compõe a regra das exceções econômicas, surgem. Há outros pontos problemáticos na hipótese de Nunes. Ao investigar a inovação no caso teatral, o autor utiliza o ciclo de vida do produto, partindo, todavia, para uma análise de um período histórico. Ora, por mais que se lance mão da lógica cíclica para se abordar um período histórico determinado, a ferramenta de ciclo de vida do produto não parece ser a mais adequada. Há, tanto na bibliografia historiográfica quanto na gerencial, outras ferramentas concernentes ao ciclo de vida que parecem ser mais adequadas. Pois, caso consideremos a solução de Nunes: uma ferramenta para um produto pode ser aplicada a um período histórico de uma atividade cultural caraterizada mais pelo setor de serviços do que manufatureiro? Além disso, uma companhia teatral não é, definitivamente, um produto, apesar, é claro, de lidar com criatividade, inovação e tecnologia. O mais adequado nesse caso seria pensar talvez em termos do gerenciamento de projetos.

4          Corrobora a perspectiva a seguinte opinião de Vogel (2011), quando considera o papel redentor da inovação tecnológica, entendida, ao que parece, como fator exógeno: “Although the fundamental creative processes in the performing arts have remained essentially unchanged for centuries, technological developments have been important in mitigating the pernicious effects of inexorably rising costs” (p. 479).

5          Cf. Torres (2014).

Este artigo foi publicado originalmente pela revista Sala Preta, Universidade de São Paulo, em seu volume 16 n. 1, número 111417 no ano de 2016 e pode ser acessado em: http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/111417

Professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, teórico do teatro (Unirio), engenheiro de produção (UFRJ), ensaísta e curador. Doutorando no Programa de História Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).