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Arquivos Especial - Teatro Hoje https://teatrohoje.com.br/secao/destaques/especial/ Revista digital de Artes Cênicas Mon, 13 Jun 2022 12:14:46 +0000 pt-BR hourly 1 A EXPRESSÃO POPULAR DO CONGO CAPIXABA COMO ELEMENTO CÊNICO https://teatrohoje.com.br/2021/12/31/a-expressao-popular-do-congo-capixaba-como-elemento-cenico/ Fri, 31 Dec 2021 14:07:36 +0000 https://teatrohoje.com.br/?p=100490 A expressão popular do Congo Capixaba como elemento cênico Carlos Sangália   O teatro e a cultura popular, no caso do Congo Capixaba mais especificamente, não estão tão ligados à questão da dramaticidade, mas sim na sua ritualidade. Se buscarmos nos primórdios do teatro, como escreve um grande pensador, o escritor e dramaturgo John Geisner, ele tem sua origem nos tempos das cavernas, sempre servindo como linguagem para expressão no sentido mais puro, em suas várias formas. Os homens das cavernas sentiram a necessidade dessa expressão para se comunicar com seus grupos e com seus coletivos. Quando chegavam das caçadas, era a linguagem visual a única existente, sem a linguagem escrita, sendo importante para criar uma narrativa das caçadas, as vitórias e as derrotas para o grupo. O teatro surge aí como um rito e também como manifestação espiritual, seguindo dessa forma nos rituais da Grécia antiga a Dionísio e a outras divindades. Eram evocações aos deuses da fertilização, que continham já naquela época a questão da carregada de um mastro em determinadas ocasiões, até mesmo como representação de um falo como símbolo da procriação e da fertilidade. Já nesse momento, junto com o teatro propriamente dito, não enquanto arte mas enquanto manifestação, essa ritualidade ganhou força representativa. Isso está no Congo também. Na Grande Vitória existe a puxada do mastro que leva até um pouco mais de teatralidade, mas no Norte do Espírito Santo está mais marcada a sua procura e a sua fincada, com idas ao mato para procurar o mastro escondido um dia antes, o encontro, e a sua pegada e carregada em um clima de transe e euforia, com pessoas balançando flores e chegando em frente à Igreja Matriz para a sua levantada. Na Commedia Dell’arte, na Idade Média da Europa, tais práticas também eram reforçadas, com rituais de representação de divindades, uma questão espiritual da cena. Na cultura popular capixaba existem os Foguedos, conhecidos como teatro popular, que são dramatizações como o Rei de Boi, o Rei de Bicho e o Ticumbi, em Itaúnas, mas existe também essa outra parte do Congo que, embora não seja Foguedo, é mais dança e coreografia, tem na sua essência nos ritos teatrais. Não há propriamente uma dramaturgia, mas há mise-en-scènes. Na fincada do mastro que acontecia na Grande Vitória no século XIX, entre os grupos que faziam a fincada, havia a questão de um roubar o mastro do outro e esconder em outro lugar, dando margem maior a essa teatralidade. Essa era a tradição da capital do Estado, que não existe mais tanto, mas que em Regência ainda existe. Um festeiro pega o mastro e esconde, outro vai e o rouba, escondendo em outro lugar, criando a necessidade da procura, que de certa forma é uma teatralidade para além do ritual. O teatrólogo, encenador, dramaturgo e Professor Dr. Cesar Huapaya pesquisou muito sobre o tema e montou no Espírito Santo espetáculos com base nesses signos ritualísticos de cultura de matriz africana. Através de laboratórios, levava os atores a um processo de pesquisa integral onde eles entravam involuntariamente nessa entrega espiritual através de um ritual e daí surgiam cenas que se construíam num teatro envolvendo essas matrizes, como no Congo, africana e indígena. Em Regência Augusta especificamente o Congo serviu de produto para a montagem de um auto, teatro propriamente dito enquanto arte, através de uma pesquisa com moradores. Foi identificado que a imagem de São Benedito ainda em madeira esculpida como pau oco havia chegado através de uma senhora que passou por uma tempestade ao entrar na barra do Rio Doce, fazendo com que ela fizesse uma promessa ao santo, que é o padroeiro do Congo e das pessoas que estão ligadas a essa espiritualidade congueira. Passando o temporal e tendo ela entrado sã e salva, cumpriu a promessa que tinha feito de trazer a imagem para a Igreja. A Companhia das Artes Regência Augusta, criada há 30 anos na localidade, foi responsável por um processo de criação que montou esse trabalho, pegando tais narrativas e montando o “Auto de São Benedito”, que foi inserido na festa para o santo. A peça começa com um arauto contando a história de quem foi o São Benedito homem, na Itália, e São Benedito santo, e transporta a ação para uma cena da mulher fazendo a promessa e passando a ser salva do temporal. Em outra cena, ela agradece ao santo, trazendo sua imagem para Regência, para toda a comunidade, que festeja sua chegada. O Congo traz, portanto, essa questão histórica e cultural. Foi uma peça montada com o intuito de unir essa dramaticidade do Congo e as questões sociais e religiosas numa criação enquanto linguagem que serviu como produto para o fortalecimento da importância do Congo enquanto expressão artística e cultural, também espiritual nessa essência. A iniciativa envolveu toda a comunidade nesse processo de pesquisa, criação, montagem e apresentação. Até o desastre da lama da barragem de Mariana no Rio Doce a companhia apresentava a peça. Essa e o “Auto do Caboclo Bernardo” e o “Auto de Natal” são as três principais peças que envolvem a questão do Congo, em que o menino de Jesus é representado por uma criança da comunidade e os Três Reis Magos são feitos por representantes da folia de reis, numa linguagem para unir manifestação religiosa e expressão teatral enquanto ferramenta de comunicação, educação e fortalecimento cultural para engajamento social, todos atributos que o teatro tem enquanto manifestação. Nesse contexto, o Congo tem vários signos teatrais da ritualística: desde toda a escondida e busca do mastro, o cortejo, o cortejo com o santo, com a bandeira, e a fincada do mastro. Esse processo de devoção remete aos primórdios dos rituais dionisíacos, trazendo na música também esses elementos que sempre contam histórias envolvendo o mar, o litoral, o amor, a figura da mulher e os santos. “Meu São Benedito Ele vem de Lisboa Com sua bandeira Com sua coroa Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá Os negros estão todos em festa fazendo promessa para os orixás Ooooo Ai que saudade da fazenda do senhor Nós somos de Regência e vamos homenagear O Caboclo Bernardo que é lá do nosso lugar” São várias as toadas de Congo que, analisando, contam histórias que são ricas, com elementos de teatro que permitem que se transformem as festividades em produtos artísticos elaborados.

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A expressão popular do Congo Capixaba como elemento cênico

Carlos Sangália

 

O teatro e a cultura popular, no caso do Congo Capixaba mais especificamente, não estão tão ligados à questão da dramaticidade, mas sim na sua ritualidade. Se buscarmos nos primórdios do teatro, como escreve um grande pensador, o escritor e dramaturgo John Geisner, ele tem sua origem nos tempos das cavernas, sempre servindo como linguagem para expressão no sentido mais puro, em suas várias formas.

Os homens das cavernas sentiram a necessidade dessa expressão para se comunicar com seus grupos e com seus coletivos. Quando chegavam das caçadas, era a linguagem visual a única existente, sem a linguagem escrita, sendo importante para criar uma narrativa das caçadas, as vitórias e as derrotas para o grupo.

O teatro surge aí como um rito e também como manifestação espiritual, seguindo dessa forma nos rituais da Grécia antiga a Dionísio e a outras divindades. Eram evocações aos deuses da fertilização, que continham já naquela época a questão da carregada de um mastro em determinadas ocasiões, até mesmo como representação de um falo como símbolo da procriação e da fertilidade. Já nesse momento, junto com o teatro propriamente dito, não enquanto arte mas enquanto manifestação, essa ritualidade ganhou força representativa.

Isso está no Congo também. Na Grande Vitória existe a puxada do mastro que leva até um pouco mais de teatralidade, mas no Norte do Espírito Santo está mais marcada a sua procura e a sua fincada, com idas ao mato para procurar o mastro escondido um dia antes, o encontro, e a sua pegada e carregada em um clima de transe e euforia, com pessoas balançando flores e chegando em frente à Igreja Matriz para a sua levantada.

Na Commedia Dell’arte, na Idade Média da Europa, tais práticas também eram reforçadas, com rituais de representação de divindades, uma questão espiritual da cena. Na cultura popular capixaba existem os Foguedos, conhecidos como teatro popular, que são dramatizações como o Rei de Boi, o Rei de Bicho e o Ticumbi, em Itaúnas, mas existe também essa outra parte do Congo que, embora não seja Foguedo, é mais dança e coreografia, tem na sua essência nos ritos teatrais. Não há propriamente uma dramaturgia, mas há mise-en-scènes. Na fincada do mastro que acontecia na Grande Vitória no século XIX, entre os grupos que faziam a fincada, havia a questão de um roubar o mastro do outro e esconder em outro lugar, dando margem maior a essa teatralidade. Essa era a tradição da capital do Estado, que não existe mais tanto, mas que em Regência ainda existe. Um festeiro pega o mastro e esconde, outro vai e o rouba, escondendo em outro lugar, criando a necessidade da procura, que de certa forma é uma teatralidade para além do ritual.

O teatrólogo, encenador, dramaturgo e Professor Dr. Cesar Huapaya pesquisou muito sobre o tema e montou no Espírito Santo espetáculos com base nesses signos ritualísticos de cultura de matriz africana. Através de laboratórios, levava os atores a um processo de pesquisa integral onde eles entravam involuntariamente nessa entrega espiritual através de um ritual e daí surgiam cenas que se construíam num teatro envolvendo essas matrizes, como no Congo, africana e indígena.

Em Regência Augusta especificamente o Congo serviu de produto para a montagem de um auto, teatro propriamente dito enquanto arte, através de uma pesquisa com moradores. Foi identificado que a imagem de São Benedito ainda em madeira esculpida como pau oco havia chegado através de uma senhora que passou por uma tempestade ao entrar na barra do Rio Doce, fazendo com que ela fizesse uma promessa ao santo, que é o padroeiro do Congo e das pessoas que estão ligadas a essa espiritualidade congueira. Passando o temporal e tendo ela entrado sã e salva, cumpriu a promessa que tinha feito de trazer a imagem para a Igreja.

A Companhia das Artes Regência Augusta, criada há 30 anos na localidade, foi responsável por um processo de criação que montou esse trabalho, pegando tais narrativas e montando o “Auto de São Benedito”, que foi inserido na festa para o santo. A peça começa com um arauto contando a história de quem foi o São Benedito homem, na Itália, e São Benedito santo, e transporta a ação para uma cena da mulher fazendo a promessa e passando a ser salva do temporal. Em outra cena, ela agradece ao santo, trazendo sua imagem para Regência, para toda a comunidade, que festeja sua chegada. O Congo traz, portanto, essa questão histórica e cultural. Foi uma peça montada com o intuito de unir essa dramaticidade do Congo e as questões sociais e religiosas numa criação enquanto linguagem que serviu como produto para o fortalecimento da importância do Congo enquanto expressão artística e cultural, também espiritual nessa essência.

A iniciativa envolveu toda a comunidade nesse processo de pesquisa, criação, montagem e apresentação. Até o desastre da lama da barragem de Mariana no Rio Doce a companhia apresentava a peça. Essa e o “Auto do Caboclo Bernardo” e o “Auto de Natal” são as três principais peças que envolvem a questão do Congo, em que o menino de Jesus é representado por uma criança da comunidade e os Três Reis Magos são feitos por representantes da folia de reis, numa linguagem para unir manifestação religiosa e expressão teatral enquanto ferramenta de comunicação, educação e fortalecimento cultural para engajamento social, todos atributos que o teatro tem enquanto manifestação.

Nesse contexto, o Congo tem vários signos teatrais da ritualística: desde toda a escondida e busca do mastro, o cortejo, o cortejo com o santo, com a bandeira, e a fincada do mastro. Esse processo de devoção remete aos primórdios dos rituais dionisíacos, trazendo na música também esses elementos que sempre contam histórias envolvendo o mar, o litoral, o amor, a figura da mulher e os santos.

“Meu São Benedito

Ele vem de Lisboa

Com sua bandeira

Com sua coroa

Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá

Os negros estão todos em festa fazendo promessa para os orixás

Ooooo Ai que saudade da fazenda do senhor

Nós somos de Regência e vamos homenagear

O Caboclo Bernardo que é lá do nosso lugar”

São várias as toadas de Congo que, analisando, contam histórias que são ricas, com elementos de teatro que permitem que se transformem as festividades em produtos artísticos elaborados.

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O TEATRO DE ARTAUD – ENTRE A MITOLOGIA E A PESTE https://teatrohoje.com.br/2021/12/30/o-teatro-de-artaud-entre-a-mitologia-e-a-peste/ Thu, 30 Dec 2021 15:36:19 +0000 https://teatrohoje.com.br/?p=100467 Resumo: O artigo tem como objetivo contribuir para uma reflexão sobre o teatro proposto por Antonin Artaud e sua relação com a mitologia e a peste. Se, por um lado, a mitologia pode ser entendida como uma narrativa que explica como o mundo e a humanidade foram construídos para a forma que então conhecemos, convém analisar que em muitos de seus escritos Artaud se manifesta como um verdadeiro iconoclasta, que em sua origem grega eikon (ícone ou imagem) e klastein (quebrar) significa “quebrador de imagem”. Quanto à peste Artaud acredita na sua capacidade de instalar a desordem e provocar conflitos para, assim, permitir a revelação de verdades socialmente insuportáveis, como propunha em seu “teatro da crueldade”. O TEATRO DE ARTAUD – ENTRE A MITOLOGIA E A PESTE Wilson Coêlho Se pensarmos a mitologia como uma narrativa que explica como o mundo e a humanidade foram construídos para a forma que então conhecemos, podemos também concordar com a ideia de que, na tentativa de entender o significado de sua existência, o ser humano sentiu a necessidade de projetar-se para fora de si mesmo. Assim, a origem do mito pode estar no desejo e na necessidade do ser humano de enfrentar o mundo, bem como, para fugir do medo e insegurança frente às forças da natureza que até hoje são assustadoras. De certa forma, a criação dos mitos também pode ser vista como a necessidade de inventar e depositar nos mesmos uma espécie de compensação para a fragilidade dos humanos, ao mesmo tempo que lhe dão a possibilidade de se acreditarem entendendo ao mundo e a si mesmos, como se fora a possibilidade de se acomodarem e se tranquilizarem perante os mistérios da vida. Nesse sentido, a mitologia se sustenta basicamente em dois pilares: a cosmogonia e a teogonia. E, entendendo a cosmogonia como uma tentativa de organização do caos a partir de alguns modelos relacionados à existência com origem no cosmos ou no universo. Trata-se de uma especulação sobre a formação do mundo. A teogonia, por sua vez, se dá na criação de divindades para a representação de fenômenos ou aspectos da natureza, de certa forma, humanizada, para expressar as ideias sobre a constituição de regentes para o universo. Havemos de também convir que tudo isso passa pela cultura, ou seja, que o universo não se trata de um absoluto, considerando que cada povo se organizou a partir da criação de seus próprios universos ou mundos. Assim, existem tantos universos ou mundos quanto existem culturas. Obviamente, muitas delas vem sendo assassinadas a mediante o projeto colonialista e hegemônico do mundo ocidental capitalista. Depois, surge a filosofia como uma necessidade de superação dos mitos e rompimento com a teodiceia. Nessa tentativa de abandonar e superar a crença mítica, a filosofia busca a razão e a lógica como pressupostos básicos para o pensar. Muito embora não devamos nos esquecer que muitas das “civilizações” ou culturas em nosso planeta propõem alguns pensamentos filosóficos ainda ligados à tradição religiosa de seus povos. Mas como situar Antonin Artaud nesse contexto? Primeiramente, acredito que o passo fundamental é desmitificar o próprio Artaud e trazê-lo para o plano humano, para que sua obra seja entendida nessa condição e não como mito que é o espaço do inalcançável. Não que sua obra seja de fácil apreensão, mas que é resultado de uma vivência e de experiências realizadas dentro de um contexto histórico e que se produziu a partir de uma busca e posicionamento contra a cultura e o pensamento de uma sociedade aprisionada e engessada em conceitos em que predomina um modelo escravagista e tirano em prol de um establishment que, para além do humano, têm as preocupações voltadas para uma ordem ideológica e  política que constitui uma elite tanto econômica quanto intelectual através do controle de um Estado. Nesse sentido de desmitificar Artaud, podemos creditar à Florence de Méredieu um certo pioneirismo desta tarefa, considerando a grande e imprescindível obra C’était Antonin Artaud (publicada no Brasil pela Perspectiva sob o título Eis Antonin Artaud). Com essa edição, podemos dizer que a França resgata uma dívida com o escritor, dramaturgo, poeta, missivista, roteirista, encenador, ator de teatro e cinema, figurinista, cenógrafo, desenhista, pensador e criador do “Teatro da Crueldade”. E, voltando a Artaud, a partir dele mesmo, podemos citar a sua conhecida Carta aos Reitores das Universidades Europeias, onde começa dizendo: “Na estreita cisterna que os Senhores chamam de “Pensamento”, os raios espirituais apodrecem como a palha. Chega de jogos de linguagem, de artifícios da sintaxe, de prestidigitações com fórmulas, agora é preciso encontrar a grande Lei do coração, a Lei que não seja uma lei, uma prisão, mas um guia para o Espírito perdido no seu próprio labirinto. Além daquilo que a ciência jamais conseguirá alcançar, lá onde os feixes da razão se partem contra as nuvens, existe esse labirinto, núcleo central para o qual convergem todas as forças do ser, as nervuras últimas do Espírito. Nesse dédalo de muralhas móveis e sempre removidas, fora de todas as formas conhecidas do pensamento, nosso Espírito se agita, espreitando seus movimentos mais secretos e espontâneos, aqueles com um caráter de revelação, essa ária vinda de longe, caída do céu”. Numa outra de suas cartas, consideradas com uma de suas marcas, Artaud escreve Aos Diretores de Asilos de Loucos, e começa afirmando que: “As leis e os costumes, concedem-lhes o direito de medir o espírito. Esta jurisdição soberana e terrível, vocês a exercem segundo vossos próprios padrões de entendimento. Não nos façam rir. A credulidade dos povos civilizados, dos especialistas, dos governantes, enfeita a psiquiatria de inexplicáveis luzes sobrenaturais. A profissão que vocês exercem está julgada de antemão. Não pensamos em discutir aqui o valor dessa ciência, nem a duvidosa existência das doenças mentais. Porém para cada cem pretendidas patogenias, onde se desencadeia a confusão da matéria e do espírito, para cada cem classificações, onde as mais vagas são também as únicas utilizáveis, quantas tentativas nobres se contam para conseguir melhor compreensão do mundo irreal onde vivem aqueles que vocês encarceraram? Quantos de vocês, por exemplo, consideram que o sonho do demente precoce ou as imagens que o perseguem são algo mais que uma salada de palavras? Não nos surpreende ver até que ponto vocês estão empenhados numa tarefa para a qual só existem alguns poucos predestinados. Porém nos rebelamos contra o direito concedido a certos homens – capazes ou não – de dar por terminadas suas investigações no campo do espírito com um veredito de encarceramento perpétuo. E termina dizendo: “Esperamos que amanhã de manhã, na hora da visita médica, recordem isto, quando tratarem de conversar sem dicionário com esses homens sobre os quais – reconheçam – os senhores só têm a superioridade da força”. Ainda em relação ao seu desafio sobre a ideia de sanidade e loucura, Artaud faz o seu desafio: “Senhores! E o que é um autêntico louco? É um homem que preferiu enlouquecer no sentido em que a sociedade entende a palavra em vez de trair uma determinada idéia superior de honra humana. Assim, a sociedade mandou estrangular nos seus manicômios todos aqueles dos quais queria se desembaraçar ou se defender porque eles se recusavam a ser cúmplices em certos atos de suprema sujeira. Pois o louco é também o homem que a sociedade não quis ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades insuportáveis”. Na obra Para acabar com o julgamento de deus (que, inclusive, faz questão de escrever deus com letra minúscula), Artaud se insere contra a mitologia cristã via colonização europeia. Num dos trechos dessa obra radiofônica ele diz que: “E de onde vem essa objeção à imundície? Do fato de que o mundo não é ainda constituído, ou de que o homem não tem mais que uma pequena idéia do mundo e que ele quer eternamente guardar? Isso vem do que um homem, um belo dia, tem concluído a ideia de mundo. Duas rotas se oferecem a ele essa do infinito exterior essa do ínfimo interior. E ele tem preferido o ínfimo interior. Lá onde ele não tem que comprimir… o rato a língua o ânus ou a glande. E deus, ele mesmo apressou o movimento. Deus é um ser? Se ele é, é merda. Se ele não é ele não é. Ora, ele não é, mas como o vazio que avança com todas as suas formas”. Uma das questões mais interessantes que podemos notar nessa obra Para acabar com o julgamento de deus, é sua preocupação com uma cultura que, de alguma forma, ele acreditava estar livre do pensamento ocidental, em especial, o europeu. Trata-se do seu encontro com os Tarahumaras no México, quando os visitou em 1936. Obviamente, ele se decepcionou em algum sentido, considerando que os mesmos já estavam afetados pelos invasores europeus. E, baseado nisso, regata o Ritual do Tutuguri ou o Rito do Sol Negro, onde coloca em questão o encontro das culturas. E nessa obra ele cria a sentença do Corpo Sem Órgãos que muita gente tem se debruçado em explicar, infelizmente aos olhos da psicanálise ou da sociologia, perdendo assim a possibilidade de compreender o grito de seu espírito em busca de uma poética originária. Para Artaud, o Corpo Sem Órgãos significa submeter o homem a uma cirurgia. Mas não se trata de uma cirurgia medicinal e – sim – de uma operação ontológica, onde o homem deveria raspar toda a sua carne e recriar-se a partir do seu osso. Limpar-se de todos os desejos construídos pelos psicologismos e pelo mito da chamada civilização. Uma abolição dos desejos em prol da vontade, daquilo que está em potência nesses seres originários. De fato, a verdadeira obsessão de Artaud é a pureza. E, para alcançar essa pureza ele necessita destruir a imundície, mas para destruí-la ele precisa fazer com que ela apareça ao dia em toda a sua imensa sujeira, tirá-la do estado enrustido ou recalcado como instrumento de defesa e trazê-la à tona para despedaçá-la. Por isso, muitas vezes, o exercício da obscenidade, da porcaria, espalhando a fecalidade em abundância. A vontade de Artaud era fazer voar em explosão a antiga ordem criada por “deus”, para reedificar um corpo novo, como assim ele disse em alto e bom som: – “eu reconstruirei o homem que sou” – e enfim puro. Mas ele também acredita que essa reconstrução do corpo passa por uma reinvenção da linguagem. As palavras estão gastas e organizadas em silogismos de uma lógica formal. E nesse sentido ele acredita que o sentido de palavra se dá na não-palavra, ou seja, para que a palavra exista, faz-se necessário que a mesma se despoje de sê-la enquanto tal. Em certo sentido, dá-se como um existencialismo, considerando que, ao se fazer palavra, a palavra não se sustenta de uma função ou um significado a priori. A palavra é uma pá que lavra, é uma pá diante do terreno baldio e desconhecido da existência, onde se cria sulcos para uma tentativa de conhecimento e apreensão disso que não sabemos o que é, desse vir a ser do espírito que se manifesta, mesmo através de recursos da glossolalia, como, por exemplo, ainda em Pour en finir avec le jugement de dieu (Para acabar com o julgamento de deus): O reche modo to edire di za tan dari do padera coco.     Para Artaud, essas glossolalias, ou seja, essas palavras-gritos são os gritos-sopros que certamente surpreenderão, não como mero espanto, mas como possibilidade de se perceber a potência dos ritmos e a fabulosa riqueza da invenção silábica, da liberdade do espírito para criar e colocar-se no mundo. Mas para se ter essas experiências, principalmente, no que se diz respeito ao teatro, Artaud acreditava que seria preciso Acabar com as obras primas, um dos capítulos de O Teatro e seu Duplo, pois – para ele – de alguma maneira nós somos culpados por acreditarmos que o que está escrito ou pintado ou formulado já fosse uma questão esgotada e que não fosse necessário romper com elas e começar de novo. Nesse capítulo, Acabar com as obras primas, ele diz que: “É preciso acabar com a ideia das obras-primas reservadas a uma assim chamada elite e que a massa não entende; e admitir que não existe, no espírito, uma zona reservada, como para as ligações sexuais clandestinas. As obras-primas do passado são boas para o passado, não para nós. Temos o direito de dizer o que foi dito e mesmo o que não foi dito de um modo que seja nosso, imediato, direto, que responda aos modos de sentir atuais e que todo o mundo compreenda.” Artaud acredita que se o povo se desacostumou e não lhe interessa ir ao teatro e considerá-lo como uma arte inferior e usado meramente como uma saída para nossos maus instintos, é porque fomos habituados desde a Renascença a pensar no teatro como puramente descritivo, como uma mentira e uma ilusão que não faz outra coisa senão tentar narrar a psicologia do nosso tempo. E, da psicologia, ele acredita que ela cumpre o vergonhoso papel de reduzir o desconhecido ao conhecido. Da mesma forma como o teatro vem cumprindo essa tarefa de fazer viver em cena seres plausíveis, com o espetáculo de um lado e a plateia do outro, sem o ritual onde todos estão incluídos. E novamente ele se manifesta iconoclasta, primeiro, com Sófocles: “É idiotice censurar a massa por não ter o senso do sublime, quando se confunde o sublime com uma de suas manifestações formais que são, aliás, e sempre, manifestações mortas. E se, por exemplo, a massa de hoje já não compreende Édipo rei, ouso dizer que a culpa é de Édipo rei e não da massa. Em Édipo rei há o tema do Incesto e a ideia de que a natureza zomba da moral; e que em algum lugar há forças errantes com as quais seria bom tomar cuidado; que se dê a essas forças o nome de destino ou outro qualquer. Além disso, há a presença de uma epidemia de peste que é uma encarnação física dessas forças. Mas tudo isso sob disfarces e numa linguagem que perderam qualquer contato com o ritmo epiléptico e grosseiro deste tempo. Sófocles talvez fale alto, mas com modos que já não são desta época. Ele fala fino demais para esta época, e parece que ele fala de lado”. E, depois, com o famoso bardo inglês: “O próprio Shakespeare é responsável por esta aberração e degradação, por essa ideia desinteressada do teatro que quer que uma representação teatral deixe o público intacto, sem que uma imagem lançada provoque qualquer abalo no organismo, imprimindo nele uma marca que não mais se apagará. Se em Shakespeare o homem às vezes se preocupa com aquilo que o ultrapassa, trata-se sempre, definitivamente, das consequências dessa preocupação no homem, isto é, a psicologia. (…) Se Shakespeare e seus imitadores nos insinuaram através dos tempos uma ideia da arte pela arte, com a arte de um lado e a vida do outro, podíamos ficar tranquilos com a ideia ineficaz e preguiçosa enquanto a vida lá fora se mantinha. Mas agora vemos muito bem os sinais indicadores de que o que nos mantinha vivos já não se mantém, de que estamos todos loucos, desesperados e doentes. E eu nos convido a reagir”. No que diz respeito à filosofia, também parece importante localizar Artaud neste suposto “amor à sabedoria”. De imediato, podemos afirmar que – apesar de demonstrar ter lido obras de Platão, Aristóteles, Sören Kierkegaard e alguns outros – suas grandes influências ou talvez coincidência, considerando sua postura de rebeldia contra o instituído – dois filósofos que marcadamente estão presente em sua obra são Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietsche. De Schopenhauer podemos nos ater em As dores do mundo, quando o filósofo nos apresenta uma série de reflexões sobre a existência, propondo uma nova forma de se pensar a dor e a felicidade, embora essa última não seja um tema muito comum ao discurso de Artaud. Mas coincidindo com Artaud, os dois defendem a ideia de que ao contrário do bem, o mal é que deve ser considerado positivo, uma vez que somente ele se faz, de fato, sentir. A outra obra de Schopenhauer que também nos aproxima de uma análise sobre Artaud, está em O mundo como vontade e representação, quando o filósofo afirma a superioridade da vontade em detrimento da razão, inclusive, pela ideia de que toda a vida é vontade e que razão serve somente para justificá-la ou reprimi-la, considerando que toda essa substância primordial chamada Vontade se estende a todos os demais seres, concebendo-a, assim, como essência não só do homem, mas do mundo. No caso de Nietsche, independente de outras obras que Artaud tenha lido desse filósofo, podemos nos amparar, levando em conta o tema do teatro, em O Nascimento da Tragédia. Mas apesar de supostamente a crueldade de Artaud parecer uma derivação da crueldade dionisíaca de Nietsche, em muito eles se diferem. Se, para Nietsche, em O Nascimento da Tragédia, os gregos conheceram e sentiram a angústia e os horrores da existência a partir de uma perturbação do homem perante os poderes titânicos da natureza, representados por Moira, Prometeu, Édipo e tantos outros fazendo aparecer o espírito apolíneo como uma possibilidade de reagir em prol da vida, projetando as imagens luminosas sobre essa “parede obscura” que representa “uma visão profunda do horrível da natureza”, Artaud as renega para reencontrar o trágico na sua pureza, ou seja, entender a violência como algo que é natural. De certa forma, Nietsche diante de Artaud parece apenas ser dialético. Mas o que é a dialética senão a busca de uma síntese da contradição de dois lados de uma mesma moeda? Se a dialética é a arte do diálogo, esse somente se realiza dentro de um mesmo plano, ou seja, só consegue entender a diferença entre os iguais. Em termos de filosofia, assim como dizia Karl Marx, que “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo”, poderíamos dizer que Artaud propõe colocar em xeque a própria ideia de interpretação do mundo, considerando que, para ele, o verdadeiro pensamento é aquele que não se reduz à reiteração das categorias pré-existentes, tendo em vista que acredita que o pensamento criador nasce nos vácuos e nos novos espaços e a própria inquietude humana inaugura na tentativa de compreender a existência. Podemos dizer que Artaud se dissocia dessa herança da filosofia de um pensamento que pensa somente em torno de si mesmo, na medida em que ele propõe a uma espécie de não-pensar. Mas esse não-pensar é não pensar sobre o pensado e, sim, pensar o não pensado, ou seja, dar voz à própria existência ao espírito do ser que não se sente contemplado diante da racionalidade de um mundo conceitual e impostor. Finalmente, levando em conta o momento atual e a pandemia, soa plausível pensar em O Teatro e a Peste, um capítulo do livro O Teatro e seu Duplo, de Antonin Artaud. Neste texto, Artaud se refere à peste de 1947, em Florença, e a de 1720, em Marselha. Apesar de acontecimentos de uma certa forma datados, para Artaud, os acontecimentos em si mesmos não são o mais importante. Conforme sua proposta na formação do Teatro Alfred Jarry, ele diz: “Mas diriam, um teatro tão afastado da vida e dos fatos das preocupações atuais das preocupações e dos acontecimentos no que elas encerram de mais protundo e que é o atributo de alguns. Porei em cena acontecimentos e não homens. E será o assunto escolhido devido à sua atualidade e por todas as alusões que ele comporta. O que interessa nos acontecimentos atuais não são os acontecimentos em si mesmos, mas o estado de ebulição moral no qual eles mergulham o espírito dos homens. O grau de tensão extrema é o estado de caos consciente no qual não cessam de nos envolver. Pois bem, é dessa atualidade patética e mítica que o teatro se desviou e é com justa razão que o público se desinteressa de um teatro que ignora a realidade a esse ponto.” Por isso, faz uma ácida crítica ao teatro convencional, do qual não comunga e até combate e, com Robert Aron e Roger Vitrac, depois de ter rompido com o movimento surrealista de André Breton, pronuncia: “O teatro convencional serve aos idiotas loucos invertidos indivíduos com instrução primária e antipoetas positivistas ocidentais, pois este teatro fede e, inacreditalvemente, ao homem provisório material eu diria até que fede a carne putrefata e homem. O teatro tradicional está num adiantado estado de decadência. Imita uma sinistra realidade e ao realizar peças estórias de interesse humano cenas íntimas das vidas de alguns títeres converte o público em fantoches e bisbilhoteiros.” Nesse sentido, para Artaud, a peste parece um mal necessário, considerando que para ele, o teatro, assim como a peste, é uma condição decisiva, ou seja, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura. Ele acredita que sob a ação do flagelo os princípios que norteiam a sociedade se desfazem e a ordem até então acreditada como o melhor dos mundos possíveis se desmoronam. Como ele afirma em O teatro e a Peste: “Mesmo destruído, mesmo aniquilado e pulverizado organicamente, e queimado em suas entranhas, ele sabe que não se morre nos sonhos, que neles a vontade atua até o absurdo, até a negação do possível, até uma espécie de transmutação da mentira com a qual se refaz a verdade”. De algum modo, nesse texto, Artaud referenda o teatro para além de uma mera representação platônica do mundo, dividido entre o mundo das ideias e o mundo dos sentidos, assim como refuta o maniqueísmo que separa o mundo do bem do mundo do mal. Artaud descontrói essas fronteiras, assim como, também desafaz os discursos apolíneos da arte como a beleza que não passa de um acordo estético. Para ele, o teatro não só é uma possibilidade de destruição desse mundo conformado com as tragédias como se fora meramente um desígnio dos deuses, mas também propõe a construção de uma nova forma de nos organizarmos a partir do caos que é muito mais verdadeiro e honesto com a vida do que os tempos de bonança. Daí, tira proveito da peste: “A peste toma imagens adormecidas, uma desordem latente e as leva de repente aos gestos mais extremos; o teatro também toma gestos e os esgota: assim como a peste, o teatro refaz o elo entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o que existe na natureza materializada. O teatro reencontra a noção das figuras e dos símbolos-tipos, que agem como se fossem pausas, sinais de suspensão, paradas cardíacas, acessos de humor, acessos inflamatórios de imagens em nossas cabeças bruscamente despertadas; o teatro nos restitui todos os conflitos em nós adormecidos com todas as suas forças, e ele dá a essas forças nomes que saudamos como se fossem símbolos: e diante de nós trava-se então uma batalha de símbolos, lançados uns contra os outros num pisoteamento impossível; pois só pode haver teatro a partir do momento em que realmente começa o impossível e em que a poesia que acontece em cena alimenta e aquece símbolos realizados. Esses símbolos que são signos de forças maduras, mas até então subjugadas e sem uso na realidade, explodem sob o aspecto de imagens incríveis que dão direito de cidadania e de existência a atos hostis por natureza à vida das sociedades. Uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido, leva a uma espécie de revolta virtual e que aliás só poderá assumir todo o seu valor se permanecer virtual, impõe às coletividades reunidas uma atitude heroica e difícil”. Concluindo, considerando a proposta de falar sobre O Teatro de Artaud – Entre a Mitologia e a Peste, cabe ressaltar Artaud como um iconoclasta e adepto de um sentido de vida que ainda está para ser conhecido, inclusive, para livrá-lo da mitologia entendida como a construção de um mundo cujos mitos exercem o papel de superação das fraquezas humanas, creio que para situá-lo no tempo e no espaço, está mais para a utopia como o “ου” (não) e “τοπος” (lugar), na etimologia grega, o não-lugar, ou seja, um lugar que não existe na realidade. Mas para Artaud a utopia é o não-lugar que precisa ser construído pelo teatro. Não é por acaso que ele afirma num de seus textos: “É preciso acreditar num sentido renovado pelo teatro onde o homem impavidamente torna-se senhor daquilo que ainda não existe e o faz nascer e tudo que ainda não nasceu vir a nascer contanto que não nos contentamos com ser simples órgãos de registro.  

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Resumo: O artigo tem como objetivo contribuir para uma reflexão sobre o teatro proposto por Antonin Artaud e sua relação com a mitologia e a peste. Se, por um lado, a mitologia pode ser entendida como uma narrativa que explica como o mundo e a humanidade foram construídos para a forma que então conhecemos, convém analisar que em muitos de seus escritos Artaud se manifesta como um verdadeiro iconoclasta, que em sua origem grega eikon (ícone ou imagem) e klastein (quebrar) significa “quebrador de imagem”. Quanto à peste Artaud acredita na sua capacidade de instalar a desordem e provocar conflitos para, assim, permitir a revelação de verdades socialmente insuportáveis, como propunha em seu “teatro da crueldade”.

O TEATRO DE ARTAUD – ENTRE A MITOLOGIA E A PESTE

Wilson Coêlho

Se pensarmos a mitologia como uma narrativa que explica como o mundo e a humanidade foram construídos para a forma que então conhecemos, podemos também concordar com a ideia de que, na tentativa de entender o significado de sua existência, o ser humano sentiu a necessidade de projetar-se para fora de si mesmo. Assim, a origem do mito pode estar no desejo e na necessidade do ser humano de enfrentar o mundo, bem como, para fugir do medo e insegurança frente às forças da natureza que até hoje são assustadoras. De certa forma, a criação dos mitos também pode ser vista como a necessidade de inventar e depositar nos mesmos uma espécie de compensação para a fragilidade dos humanos, ao mesmo tempo que lhe dão a possibilidade de se acreditarem entendendo ao mundo e a si mesmos, como se fora a possibilidade de se acomodarem e se tranquilizarem perante os mistérios da vida. Nesse sentido, a mitologia se sustenta basicamente em dois pilares: a cosmogonia e a teogonia. E, entendendo a cosmogonia como uma tentativa de organização do caos a partir de alguns modelos relacionados à existência com origem no cosmos ou no universo. Trata-se de uma especulação sobre a formação do mundo. A teogonia, por sua vez, se dá na criação de divindades para a representação de fenômenos ou aspectos da natureza, de certa forma, humanizada, para expressar as ideias sobre a constituição de regentes para o universo. Havemos de também convir que tudo isso passa pela cultura, ou seja, que o universo não se trata de um absoluto, considerando que cada povo se organizou a partir da criação de seus próprios universos ou mundos. Assim, existem tantos universos ou mundos quanto existem culturas. Obviamente, muitas delas vem sendo assassinadas a mediante o projeto colonialista e hegemônico do mundo ocidental capitalista.

Depois, surge a filosofia como uma necessidade de superação dos mitos e rompimento com a teodiceia. Nessa tentativa de abandonar e superar a crença mítica, a filosofia busca a razão e a lógica como pressupostos básicos para o pensar. Muito embora não devamos nos esquecer que muitas das “civilizações” ou culturas em nosso planeta propõem alguns pensamentos filosóficos ainda ligados à tradição religiosa de seus povos.

Mas como situar Antonin Artaud nesse contexto? Primeiramente, acredito que o passo fundamental é desmitificar o próprio Artaud e trazê-lo para o plano humano, para que sua obra seja entendida nessa condição e não como mito que é o espaço do inalcançável. Não que sua obra seja de fácil apreensão, mas que é resultado de uma vivência e de experiências realizadas dentro de um contexto histórico e que se produziu a partir de uma busca e posicionamento contra a cultura e o pensamento de uma sociedade aprisionada e engessada em conceitos em que predomina um modelo escravagista e tirano em prol de um establishment que, para além do humano, têm as preocupações voltadas para uma ordem ideológica e  política que constitui uma elite tanto econômica quanto intelectual através do controle de um Estado.

Nesse sentido de desmitificar Artaud, podemos creditar à Florence de Méredieu um certo pioneirismo desta tarefa, considerando a grande e imprescindível obra C’était Antonin Artaud (publicada no Brasil pela Perspectiva sob o título Eis Antonin Artaud). Com essa edição, podemos dizer que a França resgata uma dívida com o escritor, dramaturgo, poeta, missivista, roteirista, encenador, ator de teatro e cinema, figurinista, cenógrafo, desenhista, pensador e criador do “Teatro da Crueldade”.

E, voltando a Artaud, a partir dele mesmo, podemos citar a sua conhecida Carta aos Reitores das Universidades Europeias, onde começa dizendo:

“Na estreita cisterna que os Senhores chamam de “Pensamento”, os raios espirituais apodrecem como a palha.

Chega de jogos de linguagem, de artifícios da sintaxe, de prestidigitações com fórmulas, agora é preciso encontrar a grande Lei do coração, a Lei que não seja uma lei, uma prisão, mas um guia para o Espírito perdido no seu próprio labirinto. Além daquilo que a ciência jamais conseguirá alcançar, lá onde os feixes da razão se partem contra as nuvens, existe esse labirinto, núcleo central para o qual convergem todas as forças do ser, as nervuras últimas do Espírito. Nesse dédalo de muralhas móveis e sempre removidas, fora de todas as formas conhecidas do pensamento, nosso Espírito se agita, espreitando seus movimentos mais secretos e espontâneos, aqueles com um caráter de revelação, essa ária vinda de longe, caída do céu”.

Numa outra de suas cartas, consideradas com uma de suas marcas, Artaud escreve Aos Diretores de Asilos de Loucos, e começa afirmando que:

“As leis e os costumes, concedem-lhes o direito de medir o espírito. Esta jurisdição soberana e terrível, vocês a exercem segundo vossos próprios padrões de entendimento. Não nos façam rir. A credulidade dos povos civilizados, dos especialistas, dos governantes, enfeita a psiquiatria de inexplicáveis luzes sobrenaturais. A profissão que vocês exercem está julgada de antemão. Não pensamos em discutir aqui o valor dessa ciência, nem a duvidosa existência das doenças mentais. Porém para cada cem pretendidas patogenias, onde se desencadeia a confusão da matéria e do espírito, para cada cem classificações, onde as mais vagas são também as únicas utilizáveis, quantas tentativas nobres se contam para conseguir melhor compreensão do mundo irreal onde vivem aqueles que vocês encarceraram? Quantos de vocês, por exemplo, consideram que o sonho do demente precoce ou as imagens que o perseguem são algo mais que uma salada de palavras? Não nos surpreende ver até que ponto vocês estão empenhados numa tarefa para a qual só existem alguns poucos predestinados. Porém nos rebelamos contra o direito concedido a certos homens – capazes ou não – de dar por terminadas suas investigações no campo do espírito com um veredito de encarceramento perpétuo.

E termina dizendo:

“Esperamos que amanhã de manhã, na hora da visita médica, recordem isto, quando tratarem de conversar sem dicionário com esses homens sobre os quais – reconheçam – os senhores só têm a superioridade da força”.

Ainda em relação ao seu desafio sobre a ideia de sanidade e loucura, Artaud faz o seu desafio:

“Senhores! E o que é um autêntico louco?

É um homem que preferiu enlouquecer

no sentido em que a sociedade entende a palavra

em vez de trair uma determinada idéia

superior de honra humana.

Assim, a sociedade mandou estrangular

nos seus manicômios

todos aqueles dos quais queria

se desembaraçar ou se defender

porque eles se recusavam a ser cúmplices

em certos atos de suprema sujeira.

Pois o louco é também o homem

que a sociedade não quis ouvir

e que é impedido de enunciar

certas verdades insuportáveis”.

Na obra Para acabar com o julgamento de deus (que, inclusive, faz questão de escrever deus com letra minúscula), Artaud se insere contra a mitologia cristã via colonização europeia. Num dos trechos dessa obra radiofônica ele diz que:

“E de onde vem essa objeção à imundície? Do fato de que o mundo não é ainda constituído, ou de que o homem não tem mais que uma pequena idéia do mundo e que ele quer eternamente guardar? Isso vem do que um homem, um belo dia, tem concluído a ideia de mundo.

Duas rotas se oferecem a ele

essa do infinito exterior

essa do ínfimo interior.

E ele tem preferido o ínfimo interior. Lá onde ele não tem que comprimir…

o rato

a língua

o ânus

ou a glande.

E deus,

ele mesmo

apressou o movimento.

Deus é um ser?

Se ele é, é merda.

Se ele não é

ele não é.

Ora, ele não é, mas como o vazio que avança com todas as suas formas”.

Uma das questões mais interessantes que podemos notar nessa obra Para acabar com o julgamento de deus, é sua preocupação com uma cultura que, de alguma forma, ele acreditava estar livre do pensamento ocidental, em especial, o europeu. Trata-se do seu encontro com os Tarahumaras no México, quando os visitou em 1936. Obviamente, ele se decepcionou em algum sentido, considerando que os mesmos já estavam afetados pelos invasores europeus. E, baseado nisso, regata o Ritual do Tutuguri ou o Rito do Sol Negro, onde coloca em questão o encontro das culturas. E nessa obra ele cria a sentença do Corpo Sem Órgãos que muita gente tem se debruçado em explicar, infelizmente aos olhos da psicanálise ou da sociologia, perdendo assim a possibilidade de compreender o grito de seu espírito em busca de uma poética originária. Para Artaud, o Corpo Sem Órgãos significa submeter o homem a uma cirurgia. Mas não se trata de uma cirurgia medicinal e – sim – de uma operação ontológica, onde o homem deveria raspar toda a sua carne e recriar-se a partir do seu osso. Limpar-se de todos os desejos construídos pelos psicologismos e pelo mito da chamada civilização. Uma abolição dos desejos em prol da vontade, daquilo que está em potência nesses seres originários. De fato, a verdadeira obsessão de Artaud é a pureza. E, para alcançar essa pureza ele necessita destruir a imundície, mas para destruí-la ele precisa fazer com que ela apareça ao dia em toda a sua imensa sujeira, tirá-la do estado enrustido ou recalcado como instrumento de defesa e trazê-la à tona para despedaçá-la. Por isso, muitas vezes, o exercício da obscenidade, da porcaria, espalhando a fecalidade em abundância. A vontade de Artaud era fazer voar em explosão a antiga ordem criada por “deus”, para reedificar um corpo novo, como assim ele disse em alto e bom som: – “eu reconstruirei o homem que sou” – e enfim puro.

Mas ele também acredita que essa reconstrução do corpo passa por uma reinvenção da linguagem. As palavras estão gastas e organizadas em silogismos de uma lógica formal. E nesse sentido ele acredita que o sentido de palavra se dá na não-palavra, ou seja, para que a palavra exista, faz-se necessário que a mesma se despoje de sê-la enquanto tal. Em certo sentido, dá-se como um existencialismo, considerando que, ao se fazer palavra, a palavra não se sustenta de uma função ou um significado a priori. A palavra é uma pá que lavra, é uma pá diante do terreno baldio e desconhecido da existência, onde se cria sulcos para uma tentativa de conhecimento e apreensão disso que
não sabemos o que é, desse vir a ser do espírito que se manifesta, mesmo através de recursos da glossolalia, como, por exemplo, ainda em Pour en finir avec le jugement de dieu (Para acabar com o julgamento de deus):

O reche modo
to edire
di za
tan dari
do padera coco.

 

 

Para Artaud, essas glossolalias, ou seja, essas palavras-gritos são os gritos-sopros que certamente surpreenderão, não como mero espanto, mas como possibilidade de se perceber a potência dos ritmos e a fabulosa riqueza da invenção silábica, da liberdade do espírito para criar e colocar-se no mundo.

Mas para se ter essas experiências, principalmente, no que se diz respeito ao teatro, Artaud acreditava que seria preciso Acabar com as obras primas, um dos capítulos de O Teatro e seu Duplo, pois – para ele – de alguma maneira nós somos culpados por acreditarmos que o que está escrito ou pintado ou formulado já fosse uma questão esgotada e que não fosse necessário romper com elas e começar de novo. Nesse capítulo, Acabar com as obras primas, ele diz que:

“É preciso acabar com a ideia das obras-primas reservadas a uma assim chamada elite e que a massa não entende; e admitir que não existe, no espírito, uma zona reservada, como para as ligações sexuais clandestinas.

As obras-primas do passado são boas para o passado, não para nós. Temos o direito de dizer o que foi dito e mesmo o que não foi dito de um modo que seja nosso, imediato, direto, que responda aos modos de sentir atuais e que todo o mundo compreenda.”

Artaud acredita que se o povo se desacostumou e não lhe interessa ir ao teatro e considerá-lo como uma arte inferior e usado meramente como uma saída para nossos maus instintos, é porque fomos habituados desde a Renascença a pensar no teatro como puramente descritivo, como uma mentira e uma ilusão que não faz outra coisa senão tentar narrar a psicologia do nosso tempo. E, da psicologia, ele acredita que ela cumpre o vergonhoso papel de reduzir o desconhecido ao conhecido. Da mesma forma como o teatro vem cumprindo essa tarefa de fazer viver em cena seres plausíveis, com o espetáculo de um lado e a plateia do outro, sem o ritual onde todos estão incluídos. E novamente ele se manifesta iconoclasta, primeiro, com Sófocles:

“É idiotice censurar a massa por não ter o senso do sublime, quando se confunde o sublime com uma de suas manifestações formais que são, aliás, e sempre, manifestações mortas. E se, por exemplo, a massa de hoje já não compreende Édipo rei, ouso dizer que a culpa é de Édipo rei e não da massa.

Em Édipo rei há o tema do Incesto e a ideia de que a natureza zomba da moral; e que em algum lugar há forças errantes com as quais seria bom tomar cuidado; que se dê a essas forças o nome de destino ou outro qualquer.

Além disso, há a presença de uma epidemia de peste que é uma encarnação física dessas forças. Mas tudo isso sob disfarces e numa linguagem que perderam qualquer contato com o ritmo epiléptico e grosseiro deste tempo. Sófocles talvez fale alto, mas com modos que já não são desta época. Ele fala fino demais para esta época, e parece que ele fala de lado”.

E, depois, com o famoso bardo inglês:

“O próprio Shakespeare é responsável por esta aberração e degradação, por essa ideia desinteressada do teatro que quer que uma representação teatral deixe o público intacto, sem que uma imagem lançada provoque qualquer abalo no organismo, imprimindo nele uma marca que não mais se apagará.

Se em Shakespeare o homem às vezes se preocupa com aquilo que o ultrapassa, trata-se sempre, definitivamente, das consequências dessa preocupação no homem, isto é, a psicologia.

(…)

Se Shakespeare e seus imitadores nos insinuaram através dos tempos uma ideia da arte pela arte, com a arte de um lado e a vida do outro, podíamos ficar tranquilos com a ideia ineficaz e preguiçosa enquanto a vida lá fora se mantinha. Mas agora vemos muito bem os sinais indicadores de que o que nos mantinha vivos já não se mantém, de que estamos todos loucos, desesperados e doentes. E eu nos convido a reagir”.

No que diz respeito à filosofia, também parece importante localizar Artaud neste suposto “amor à sabedoria”. De imediato, podemos afirmar que – apesar de demonstrar ter lido obras de Platão, Aristóteles, Sören Kierkegaard e alguns outros – suas grandes influências ou talvez coincidência, considerando sua postura de rebeldia contra o instituído – dois filósofos que marcadamente estão presente em sua obra são Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietsche.

De Schopenhauer podemos nos ater em As dores do mundo, quando o filósofo nos apresenta uma série de reflexões sobre a existência, propondo uma nova forma de se pensar a dor e a felicidade, embora essa última não seja um tema muito comum ao discurso de Artaud. Mas coincidindo com Artaud, os dois defendem a ideia de que ao contrário do bem, o mal é que deve ser considerado positivo, uma vez que somente ele se faz, de fato, sentir. A outra obra de Schopenhauer que também nos aproxima de uma análise sobre Artaud, está em O mundo como vontade e representação, quando o filósofo afirma a superioridade da vontade em detrimento da razão, inclusive, pela ideia de que toda a vida é vontade e que razão serve somente para justificá-la ou reprimi-la, considerando que toda essa substância primordial chamada Vontade se estende a todos os demais seres, concebendo-a, assim, como essência não só do homem, mas do mundo.

No caso de Nietsche, independente de outras obras que Artaud tenha lido desse filósofo, podemos nos amparar, levando em conta o tema do teatro, em O Nascimento da Tragédia. Mas apesar de supostamente a crueldade de Artaud parecer uma derivação da crueldade dionisíaca de Nietsche, em muito eles se diferem. Se, para Nietsche, em O Nascimento da Tragédia, os gregos conheceram e sentiram a angústia e os horrores da existência a partir de uma perturbação do homem perante os poderes titânicos da natureza, representados por Moira, Prometeu, Édipo e tantos outros fazendo aparecer o espírito apolíneo como uma possibilidade de reagir em prol da vida, projetando as imagens luminosas sobre essa “parede obscura” que representa “uma visão profunda do horrível da natureza”, Artaud as renega para reencontrar o trágico na sua pureza, ou seja, entender a violência como algo que é natural. De certa forma, Nietsche diante de Artaud parece apenas ser dialético. Mas o que é a dialética senão a busca de uma síntese da contradição de dois lados de uma mesma moeda? Se a dialética é a arte do diálogo, esse somente se realiza dentro de um mesmo plano, ou seja, só consegue entender a diferença entre os iguais.

Em termos de filosofia, assim como dizia Karl Marx, que “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo”, poderíamos dizer que Artaud propõe colocar em xeque a própria ideia de interpretação do mundo, considerando que, para ele, o verdadeiro pensamento é aquele que não se reduz à reiteração das categorias pré-existentes, tendo em vista que acredita que o pensamento criador nasce nos vácuos e nos novos espaços e a própria inquietude humana inaugura na tentativa de compreender a existência. Podemos dizer que Artaud se dissocia dessa herança da filosofia de um pensamento que pensa somente em torno de si mesmo, na medida em que ele propõe a uma espécie de não-pensar. Mas esse não-pensar é não pensar sobre o pensado e, sim, pensar o não pensado, ou seja, dar voz à própria existência ao espírito do ser que não se sente contemplado diante da racionalidade de um mundo conceitual e impostor.

Finalmente, levando em conta o momento atual e a pandemia, soa plausível pensar em O Teatro e a Peste, um capítulo do livro O Teatro e seu Duplo, de Antonin Artaud. Neste texto, Artaud se refere à peste de 1947, em Florença, e a de 1720, em Marselha. Apesar de acontecimentos de uma certa forma datados, para Artaud, os acontecimentos em si mesmos não são o mais importante. Conforme sua proposta na formação do Teatro Alfred Jarry, ele diz:

“Mas diriam, um teatro tão afastado da vida e dos fatos

das preocupações atuais

das preocupações e dos acontecimentos

no que elas encerram de mais protundo

e que é o atributo de alguns.

Porei em cena acontecimentos e não homens.

E será o assunto escolhido devido à sua atualidade

e por todas as alusões que ele comporta.

O que interessa nos acontecimentos atuais

não são os acontecimentos em si mesmos,

mas o estado de ebulição moral

no qual eles mergulham o espírito dos homens.

O grau de tensão extrema

é o estado de caos consciente

no qual não cessam de nos envolver.

Pois bem, é dessa atualidade patética e mítica

que o teatro se desviou

e é com justa razão que o público se desinteressa

de um teatro que ignora a realidade a esse ponto.”

Por isso, faz uma ácida crítica ao teatro convencional, do qual não comunga e até combate e, com Robert Aron e Roger Vitrac, depois de ter rompido com o movimento surrealista de André Breton, pronuncia:

“O teatro convencional serve aos idiotas

loucos

invertidos

indivíduos com instrução primária

e antipoetas positivistas ocidentais,

pois este teatro fede e, inacreditalvemente,

ao homem provisório

material

eu diria até que fede

a carne putrefata e homem.

O teatro tradicional está num adiantado estado

de decadência.

Imita uma sinistra realidade e ao realizar peças

estórias de interesse humano

cenas íntimas das vidas de alguns títeres converte

o público em fantoches e bisbilhoteiros.”

Nesse sentido, para Artaud, a peste parece um mal necessário, considerando que para ele, o teatro, assim como a peste, é uma condição decisiva, ou seja, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura. Ele acredita que sob a ação do flagelo os princípios que norteiam a sociedade se desfazem e a ordem até então acreditada como o melhor dos mundos possíveis se desmoronam. Como ele afirma em O teatro e a Peste:

“Mesmo destruído, mesmo aniquilado e pulverizado organicamente, e queimado em suas entranhas, ele sabe que não se morre nos sonhos, que neles a vontade atua até o absurdo, até a negação do possível, até uma espécie de transmutação da mentira com a qual se refaz a verdade”.

De algum modo, nesse texto, Artaud referenda o teatro para além de uma mera representação platônica do mundo, dividido entre o mundo das ideias e o mundo dos sentidos, assim como refuta o maniqueísmo que separa o mundo do bem do mundo do mal. Artaud descontrói essas fronteiras, assim como, também desafaz os discursos apolíneos da arte como a beleza que não passa de um acordo estético. Para ele, o teatro não só é uma possibilidade de destruição desse mundo conformado com as tragédias como se fora meramente um desígnio dos deuses, mas também propõe a construção de uma nova forma de nos organizarmos a partir do caos que é muito mais verdadeiro e honesto com a vida do que os tempos de bonança. Daí, tira proveito da peste:

“A peste toma imagens adormecidas, uma desordem latente e as leva de repente aos gestos mais extremos; o teatro também toma gestos e os esgota: assim como a peste, o teatro refaz o elo entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o que existe na natureza materializada. O teatro reencontra a noção das figuras e dos símbolos-tipos, que agem como se fossem pausas, sinais de suspensão, paradas cardíacas, acessos de humor, acessos inflamatórios de imagens em nossas cabeças bruscamente despertadas; o teatro nos restitui todos os conflitos em nós adormecidos com todas as suas forças, e ele dá a essas forças nomes que saudamos como se fossem símbolos: e diante de nós trava-se então uma batalha de símbolos, lançados uns contra os outros num pisoteamento impossível; pois só pode haver teatro a partir do momento em que realmente começa o impossível e em que a poesia que acontece em cena alimenta e aquece símbolos realizados.

Esses símbolos que são signos de forças maduras, mas até então subjugadas e sem uso na realidade, explodem sob o aspecto de imagens incríveis que dão direito de cidadania e de existência a atos hostis por natureza à vida das sociedades.

Uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido, leva a uma espécie de revolta virtual e que aliás só poderá assumir todo o seu valor se permanecer virtual, impõe às coletividades reunidas uma atitude heroica e difícil”.

Concluindo, considerando a proposta de falar sobre O Teatro de Artaud – Entre a Mitologia e a Peste, cabe ressaltar Artaud como um iconoclasta e adepto de um sentido de vida que ainda está para ser conhecido, inclusive, para livrá-lo da mitologia entendida como a construção de um mundo cujos mitos exercem o papel de superação das fraquezas humanas, creio que para situá-lo no tempo e no espaço, está mais para a utopia como o “ου” (não) e “τοπος” (lugar), na etimologia grega, o não-lugar, ou seja, um lugar que não existe na realidade. Mas para Artaud a utopia é o não-lugar que precisa ser construído pelo teatro. Não é por acaso que ele afirma num de seus textos:

“É preciso acreditar num sentido renovado

pelo teatro

onde o homem impavidamente torna-se senhor daquilo

que ainda não existe

e o faz nascer

e tudo que ainda não nasceu vir a nascer

contanto que não nos contentamos com ser

simples órgãos de registro.

 

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Willy Loman reside no nosso medo mais profundo https://teatrohoje.com.br/2021/12/29/willy-loman-reside-no-nosso-medo-mais-profundo/ Wed, 29 Dec 2021 13:06:29 +0000 https://teatrohoje.com.br/?p=100440 Especial/Dramaturgias Willy Loman reside no nosso medo mais profundo Avelino Alves   Num dia qualquer, um simples e anônimo caixeiro-viajante chega em casa, em Nova York (EUA). Cansado, os ombros curvados, carrega duas malas, dessas de vendedores que passam de cidade em cidade como representantes comerciais. A mulher o recebe com euforia e carinho. Ele está esgotado e inseguro. Diz a ela que não consegue mais viajar pelas cidades da Nova Inglaterra, exercendo uma atividade que já dura mais de três décadas e o sugou até o talo. Motivo: não conhece mais ninguém na estrada, seu carro às vezes sai da pista tamanha é a sua desatenção. E as praças, que antes o recebiam com respeito e consideração, deixaram os rapapés de lado. Isso quando se dignam a atendê-lo. Consequentemente, sua comissão está à beira de minguar. Ele teme perder emprego e ver os boletos da família se acumularem. A mulher contemporiza. Talvez o marido precise de férias, uns dias de descanso pelo menos, a fim de repor as energias. Ele sabe que não. E sintetiza sua dor na frase inicial da peça: “(…) Você imagina, eu olhando a paisagem, na estrada toda a semana a minha vida inteira. E de repente estava saindo da estrada! Imagina você, eu esqueci completamente que estava dirigindo. Então dei partida outra vez… e cinco minutos depois estava sonhando de novo e quase… Eu penso cada coisa, cada coisa estranha.” É desta forma poética e amarga que começa a saga de Willy Loman, personagem principal da peça A morte do caixeiro-viajante. Casado com a compreensiva Linda e pai de dois filhos sonhadores e fracassados como ele – Biff e Happy – durante dois atos e um réquiem, o dramaturgo norte-americano Arthur Asher Miller (1915-2005) dissecará o medo embutido na classe média norte-americana, qual seja o de não conseguir honrar a hipoteca da casa própria, acreditar como uma criança no sonho americano e ver seus devaneios de uma sociedade justa irem por terra por conta da indiferença das grandes corporações que costumam dar uma grande banana quando a pessoa começa a envelhecer. Willy sabe que seus dias de glória vã estão contados. Ancorado no próprio sonho de encaminhar os filhos para o futuro, dar conforto doméstico à mulher e ser amado por outros caixeiros-viajantes, granjeando respeito e dinheiro, o personagem percorre a peça expondo as vísceras da desilusão de um homem comum, um simples vendedor tragado pelo fracasso, que queria ser parecido com os caixeiros-viajantes que fizeram história antes dele. Contudo, tem que dar mão à palmatória. Ele morrerá na praia afogado em suas próprias fantasias. Motivos para a derrocada se acumulam. Não tem respeito dos dois rebentos, que o acusam de ter mania de grandeza, é tratado com piedade pela esposa, as praças de venda por onde passa não o reconhecem mais e vive seu cotidiano silencioso e amargo de um sucesso que foi esperado, mas simplesmente insistiu em não acontecer. Willy foi moído pela maquinaria perversa das empresas que investem em jovens-laranja, chupam seu sumo até o limite e depois os abandonam ressecados à margem da vida quando começam a ficar improdutivos. A peça é quase um longo poema sobre a frustração da vida e o balanço nem sempre generoso que fazemos de nossa trajetória quando estamos em vias de nos aposentar. O caixeiro-viajante sempre temeu perder a casa, não honrar seus compromissos estava entre seus piores pesadelos e sua existência foi marcada pelo medo de se olhar no espelho e perceber, enfim, que foi enganado e não era tão autoconfiante como sempre apregoava. Quem não conhece uma história assim? Willy Loman reside em todos nós. Identificou-se? Provavelmente. Essa peça poderia ter sido escrita por um brasileiro já que dentre os nossos sonhos – e que em geral se tornam pesadelos – ter a casa própria nos envelhece e muitas vezes nos leva antes do tempo à cidade dos pés juntos. É, amigos, muitas vezes passamos uma vida inteira pagando as paredes de uma casa que, no sentido figurado, acaba sendo o túmulo dos nossos desejos e o pódio para nossas derrotas. Não falamos isso, tampouco defendemos essa tese. A razão é simples, quase prosaica. O show não pode parar e, de certa forma, mesmo anônimos, fazemos parte dele. O medo que ronda os norte-americanos e é sussurrado entre os lençóis dos casais atende por ‘hipoteca’. Aqui, o pesadelo muda de nome, entope as artérias e treslouca o cotidiano. Contudo, a navalhada na carne, e que também atinge o osso, é a mesma. Chama-se ‘financiamento da casa própria’. Em 1956, o dramaturgo e novelista brasileiro Jorge Andrade (1922-1984) desembarcou nos EUA e se encontrou com seu colega de ofício. Recebeu do dramaturgo norte-americano um conselho curto e grosso: “Volte para seu país e procure descobrir por que os homens são o que são e não o que gostariam de ser, e escreva sobre a diferença”. Miller sabia muito bem o que estava dizendo. Tinha escrito A morte do caixeiro-viajante em 1949, em um mês e meio, com apenas 33 anos, e papado os principais prêmios oferecidos ao gênero: o Pulitzer, o dos Críticos de Teatro de Nova York e o Tony, uma espécie de Oscar do meio teatral. A estreia na Broadway, sob a batuta do lendário cineasta Elia Kazan, eletrizou crítica e público. Confesso que conselho desse quilate acerca da complexidade do ser humano e o que deve ser explorado no fazer teatral só vi recentemente – e, claro, em outro contexto – em uma série mexicana na Netflix, Narcos, onde um velho traficante ensina a um jovem aspirante ao mundo do crime a receita infalível para subjugar: quando quiser dominar um homem, não considere o que ele quer, mas sim o que necessita. Digo, sem medo, que esses dois conselhos aí em cima são certamente a chave para entender a alma do personagem principal de Miller, o atormentado Willy, que entregou 34 anos de sua vida a uma empresa, acreditou no american way of life e vê sua vida desmoronar quando perde o emprego, assiste pasmado o fracasso sentimental e profissional dos filhos e agarra-se à esposa sonhadora para não desmoronar de vez. O medo humano rende uma matéria-prima e tanto quando os dramaturgos suspendem suas pseudo-experiências estéticas e optam por colocar o homem comum no palco. É por essa razão que o teatro norte-americano e, de quebra, o brasileiro, dos anos 1950 continua insuperável. De lá para cá, na minha modesta opinião, tivemos coisas muito boas como experimentação teatral. Todavia, lidar com o ofício desta forma serviu mal e mal para azeitar o ego de diretores e atores. O que fica na arte, sempre, é uma história contada com começo, meio e fim. Isso porque essa é a história de todo homem sobre a face da Terra. Pense aí com seus botões por que se foge do teatro feito no Brasil como o diabo da cruz e por que formação de público, nessa área, é um sonho quase impossível. A saga de Miller Isadore, o pai do dramaturgo, confeccionava casacos e era um empresário de sucesso. A mãe, Augusta, lecionava. A vida da família, em Nova York, era confortável. Enfrentaram, porém, o estouro da Bolsa, em 1929, o que fez a fortuna da família virar pó. Miller ficou sem dinheiro para pagar a universidade e, por isso, trabalhou em diversos empregos – motorista de caminhão, garçom, marinheiro e empacotador em uma empresa de autopeças – até conseguir entrar na Universidade de Michigan. Nela, venceu alguns concursos de dramaturgia. E foi um desses que, ao premiar uma peça sua, levou o jovem dramaturgo à Broadway, em 1944. A peça se chamava O homem que teve toda a sorte. A crítica ignorou, o público fugiu e a peça naufragou. Arthur Miller, no entanto, não desistiu. Três anos depois embolsaria seu primeiro Tony de melhor autor com Todos os meus filhos. A consagração mesmo viria em 1949. Crítica e público se renderiam em uníssono à história trágica do caixeiro-viajante Willy Loman, seus devaneios (a peça é um emaranhado genial de flashbacks muito bem amarrados), sua solidão e, claro, a decisão pela morte planejada com o único objetivo de permitir à família embolsar a grana do seguro e, com parte do dinheiro, quitar a hipoteca. A vida pessoal do dramaturgo também foi um carrossel de emoções. Casou-se três vezes. Primeiro com Mary Slattery, depois com nada menos que Marilyn Monroe, a diva trágica de Hollywood. E, por fim, com a fotógrafa Inge Morath. A primeira e última mulher deram a Miller, cada uma, dois filhos. Dizem as más-línguas que a peça Depois da Queda era uma alusão às carências afetivas da belíssima Marilyn. Ele foi acusado de se aproveitar da tragédia da ex-mulher e trabalhar sua autopromoção, faturando em cima de um cadáver. Miller passou a vida negando, mas a crítica foi impiedosa e cravou a narrativa como verdadeira. Não sem deixar de mencionar, justiça seja feita, que os cinco anos passados ao lado de Marilyn foram improfícuos e atormentados. Verdade ou não, resumindo, a peça conta a história de um advogado famoso chamado Quentin que se relaciona com uma jovem cantora de nome Maggie, carente à medula e propensa à destruição. Todo o trabalho de Miller foi uma feroz crítica à sociedade, falta de liberdade e denúncia de perseguição aos comunistas. Em 1956 foi dedurado por Kazan de ser simpático aos comunistas e participar de suas reuniões. Por isso, teve que se apresentar no tenebroso e irascível Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara (HUAC) presidido por Joseph McCarthy (1908-1957), senador pelo Estado de Wisconsin. Miller teve que engolir um duro processo por se recusar a responder às perguntas sobre quem em Hollywood era ou não de esquerda e participava de reuniões clandestinas com os comunistas. Para se ter ideia do quanto Miller flertava com tendências esquerdistas, suas peças eram proibidas na finada União Soviética. Por essa teimosia, vista pelos políticos como um desrespeito e uma afronta ao comitê, o dramaturgo foi sentenciado a 30 dias de xilindró. Cumpriu a condenação em meio aos holofotes e barulho da imprensa, certamente cheio de orgulho pela própria conduta. Depois, entrou com um processo e lutou até o fim para que sua inocência fosse provada. A papelada, claro, foi arquivada e ele saiu absolvido do imbróglio. Três anos antes tinha escrito As bruxas de Salém, sobre a caça às bruxas nos EUA. O establishment havia captado a mensagem subliminar deste e de seus textos anteriores, onde dissecava as ilusões e o autoritarismo, os pilares da sociedade americana, e ficou de olho no dramaturgo. Para quem não sabe, ou nunca ouviu falar, os julgamentos contra as bruxas de Salém ocorreram em Massachusetts (EUA). Todo o espetáculo dantesco durou um ano (1693-1694) e envolveu 200 acusados. Destes, 30 foram culpados e 19 conheceram a forca. Para bom entendedor, a escolha de um tema por um escritor já serve como meia palavra. Quem na minha opinião melhor definiu a genialidade do dramaturgo norte-americano foi o crítico Sábato Magaldi (1927-2016) que, na valiosíssima coleção Teatro Vivo, da Abril Cultural, foi lapidar ao falar d’A morte do caixeiro-viajante: “Desde o destemor com que explora o noticiário jornalístico até o aproveitamento da crônica histórica, Arthur Miller revela suas raízes fincadas no realismo. Um realismo moderno e saudável, que não esquece ser o homem o instrumento do teatro, e um homem tanto mais completo quanto melhor testemunha a epopeia terrena.” O dramaturgo morreu em 10 de fevereiro de 2005 de câncer e problemas cardíacos, com belos e bem vividos 89 anos, em sua fazenda em Roxbury (Connecticut/EUA). Dentre as muitas frases lapidares que criou, a que mais me fascina é a que diz que o teatro não pode desaparecer porque é a única arte que permite à Humanidade enfrentar-se a si mesma. Willy Loman que o diga. Miller o colocou no palco para que, à nossa maneira, despertássemos das nossas ilusões pueris. Avelino Alves é dramaturgo.

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Especial/Dramaturgias

Willy Loman reside no nosso medo mais profundo

Avelino Alves

 

Num dia qualquer, um simples e anônimo caixeiro-viajante chega em casa, em Nova York (EUA). Cansado, os ombros curvados, carrega duas malas, dessas de vendedores que passam de cidade em cidade como representantes comerciais.

A mulher o recebe com euforia e carinho. Ele está esgotado e inseguro. Diz a ela que não consegue mais viajar pelas cidades da Nova Inglaterra, exercendo uma atividade que já dura mais de três décadas e o sugou até o talo.

Motivo: não conhece mais ninguém na estrada, seu carro às vezes sai da pista tamanha é a sua desatenção. E as praças, que antes o recebiam com respeito e consideração, deixaram os rapapés de lado. Isso quando se dignam a atendê-lo.

Consequentemente, sua comissão está à beira de minguar. Ele teme perder emprego e ver os boletos da família se acumularem.

A mulher contemporiza. Talvez o marido precise de férias, uns dias de descanso pelo menos, a fim de repor as energias. Ele sabe que não. E sintetiza sua dor na frase inicial da peça: “(…) Você imagina, eu olhando a paisagem, na estrada toda a semana a minha vida inteira. E de repente estava saindo da estrada! Imagina você, eu esqueci completamente que estava dirigindo. Então dei partida outra vez… e cinco minutos depois estava sonhando de novo e quase… Eu penso cada coisa, cada coisa estranha.”

É desta forma poética e amarga que começa a saga de Willy Loman, personagem principal da peça A morte do caixeiro-viajante. Casado com a compreensiva Linda e pai de dois filhos sonhadores e fracassados como ele – Biff e Happy – durante dois atos e um réquiem, o dramaturgo norte-americano Arthur Asher Miller (1915-2005) dissecará o medo embutido na classe média norte-americana, qual seja o de não conseguir honrar a hipoteca da casa própria, acreditar como uma criança no sonho americano e ver seus devaneios de uma sociedade justa irem por terra por conta da indiferença das grandes corporações que costumam dar uma grande banana quando a pessoa começa a envelhecer.

Willy sabe que seus dias de glória vã estão contados. Ancorado no próprio sonho de encaminhar os filhos para o futuro, dar conforto doméstico à mulher e ser amado por outros caixeiros-viajantes, granjeando respeito e dinheiro, o personagem percorre a peça expondo as vísceras da desilusão de um homem comum, um simples vendedor tragado pelo fracasso, que queria ser parecido com os caixeiros-viajantes que fizeram história antes dele. Contudo, tem que dar mão à palmatória. Ele morrerá na praia afogado em suas próprias fantasias.

Motivos para a derrocada se acumulam. Não tem respeito dos dois rebentos, que o acusam de ter mania de grandeza, é tratado com piedade pela esposa, as praças de venda por onde passa não o reconhecem mais e vive seu cotidiano silencioso e amargo de um sucesso que foi esperado, mas simplesmente insistiu em não acontecer.

Willy foi moído pela maquinaria perversa das empresas que investem em jovens-laranja, chupam seu sumo até o limite e depois os abandonam ressecados à margem da vida quando começam a ficar improdutivos. A peça é quase um longo poema sobre a frustração da vida e o balanço nem sempre generoso que fazemos de nossa trajetória quando estamos em vias de nos aposentar.

O caixeiro-viajante sempre temeu perder a casa, não honrar seus compromissos estava entre seus piores pesadelos e sua existência foi marcada pelo medo de se olhar no espelho e perceber, enfim, que foi enganado e não era tão autoconfiante como sempre apregoava. Quem não conhece uma história assim? Willy Loman reside em todos nós.

Identificou-se? Provavelmente. Essa peça poderia ter sido escrita por um brasileiro já que dentre os nossos sonhos – e que em geral se tornam pesadelos – ter a casa própria nos envelhece e muitas vezes nos leva antes do tempo à cidade dos pés juntos.

É, amigos, muitas vezes passamos uma vida inteira pagando as paredes de uma casa que, no sentido figurado, acaba sendo o túmulo dos nossos desejos e o pódio para nossas derrotas. Não falamos isso, tampouco defendemos essa tese.

A razão é simples, quase prosaica. O show não pode parar e, de certa forma, mesmo anônimos, fazemos parte dele. O medo que ronda os norte-americanos e é sussurrado entre os lençóis dos casais atende por ‘hipoteca’. Aqui, o pesadelo muda de nome, entope as artérias e treslouca o cotidiano. Contudo, a navalhada na carne, e que também atinge o osso, é a mesma. Chama-se ‘financiamento da casa própria’.

Em 1956, o dramaturgo e novelista brasileiro Jorge Andrade (1922-1984) desembarcou nos EUA e se encontrou com seu colega de ofício. Recebeu do dramaturgo norte-americano um conselho curto e grosso: “Volte para seu país e procure descobrir por que os homens são o que são e não o que gostariam de ser, e escreva sobre a diferença”.

Miller sabia muito bem o que estava dizendo. Tinha escrito A morte do caixeiro-viajante em 1949, em um mês e meio, com apenas 33 anos, e papado os principais prêmios oferecidos ao gênero: o Pulitzer, o dos Críticos de Teatro de Nova York e o Tony, uma espécie de Oscar do meio teatral. A estreia na Broadway, sob a batuta do lendário cineasta Elia Kazan, eletrizou crítica e público.

Confesso que conselho desse quilate acerca da complexidade do ser humano e o que deve ser explorado no fazer teatral só vi recentemente – e, claro, em outro contexto – em uma série mexicana na Netflix, Narcos, onde um velho traficante ensina a um jovem aspirante ao mundo do crime a receita infalível para subjugar: quando quiser dominar um homem, não considere o que ele quer, mas sim o que necessita.

Digo, sem medo, que esses dois conselhos aí em cima são certamente a chave para entender a alma do personagem principal de Miller, o atormentado Willy, que entregou 34 anos de sua vida a uma empresa, acreditou no american way of life e vê sua vida desmoronar quando perde o emprego, assiste pasmado o fracasso sentimental e profissional dos filhos e agarra-se à esposa sonhadora para não desmoronar de vez.

O medo humano rende uma matéria-prima e tanto quando os dramaturgos suspendem suas pseudo-experiências estéticas e optam por colocar o homem comum no palco. É por essa razão que o teatro norte-americano e, de quebra, o brasileiro, dos anos 1950 continua insuperável.

De lá para cá, na minha modesta opinião, tivemos coisas muito boas como experimentação teatral. Todavia, lidar com o ofício desta forma serviu mal e mal para azeitar o ego de diretores e atores. O que fica na arte, sempre, é uma história contada com começo, meio e fim. Isso porque essa é a história de todo homem sobre a face da Terra. Pense aí com seus botões por que se foge do teatro feito no Brasil como o diabo da cruz e por que formação de público, nessa área, é um sonho quase impossível.

A saga de Miller

Isadore, o pai do dramaturgo, confeccionava casacos e era um empresário de sucesso. A mãe, Augusta, lecionava. A vida da família, em Nova York, era confortável.

Enfrentaram, porém, o estouro da Bolsa, em 1929, o que fez a fortuna da família virar pó. Miller ficou sem dinheiro para pagar a universidade e, por isso, trabalhou em diversos empregos – motorista de caminhão, garçom, marinheiro e empacotador em uma empresa de autopeças – até conseguir entrar na Universidade de Michigan. Nela, venceu alguns concursos de dramaturgia.

E foi um desses que, ao premiar uma peça sua, levou o jovem dramaturgo à Broadway, em 1944. A peça se chamava O homem que teve toda a sorte. A crítica ignorou, o público fugiu e a peça naufragou.

Arthur Miller, no entanto, não desistiu. Três anos depois embolsaria seu primeiro Tony de melhor autor com Todos os meus filhos.

A consagração mesmo viria em 1949. Crítica e público se renderiam em uníssono à história trágica do caixeiro-viajante Willy Loman, seus devaneios (a peça é um emaranhado genial de flashbacks muito bem amarrados), sua solidão e, claro, a decisão pela morte planejada com o único objetivo de permitir à família embolsar a grana do seguro e, com parte do dinheiro, quitar a hipoteca.

A vida pessoal do dramaturgo também foi um carrossel de emoções. Casou-se três vezes. Primeiro com Mary Slattery, depois com nada menos que Marilyn Monroe, a diva trágica de Hollywood. E, por fim, com a fotógrafa Inge Morath. A primeira e última mulher deram a Miller, cada uma, dois filhos.

Dizem as más-línguas que a peça Depois da Queda era uma alusão às carências afetivas da belíssima Marilyn. Ele foi acusado de se aproveitar da tragédia da ex-mulher e trabalhar sua autopromoção, faturando em cima de um cadáver. Miller passou a vida negando, mas a crítica foi impiedosa e cravou a narrativa como verdadeira. Não sem deixar de mencionar, justiça seja feita, que os cinco anos passados ao lado de Marilyn foram improfícuos e atormentados.

Verdade ou não, resumindo, a peça conta a história de um advogado famoso chamado Quentin que se relaciona com uma jovem cantora de nome Maggie, carente à medula e propensa à destruição.

Todo o trabalho de Miller foi uma feroz crítica à sociedade, falta de liberdade e denúncia de perseguição aos comunistas.

Em 1956 foi dedurado por Kazan de ser simpático aos comunistas e participar de suas reuniões. Por isso, teve que se apresentar no tenebroso e irascível Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara (HUAC) presidido por Joseph McCarthy (1908-1957), senador pelo Estado de Wisconsin.

Miller teve que engolir um duro processo por se recusar a responder às perguntas sobre quem em Hollywood era ou não de esquerda e participava de reuniões clandestinas com os comunistas. Para se ter ideia do quanto Miller flertava com tendências esquerdistas, suas peças eram proibidas na finada União Soviética.

Por essa teimosia, vista pelos políticos como um desrespeito e uma afronta ao comitê, o dramaturgo foi sentenciado a 30 dias de xilindró. Cumpriu a condenação em meio aos holofotes e barulho da imprensa, certamente cheio de orgulho pela própria conduta. Depois, entrou com um processo e lutou até o fim para que sua inocência fosse provada. A papelada, claro, foi arquivada e ele saiu absolvido do imbróglio.

Três anos antes tinha escrito As bruxas de Salém, sobre a caça às bruxas nos EUA. O establishment havia captado a mensagem subliminar deste e de seus textos anteriores, onde dissecava as ilusões e o autoritarismo, os pilares da sociedade americana, e ficou de olho no dramaturgo.

Para quem não sabe, ou nunca ouviu falar, os julgamentos contra as bruxas de Salém ocorreram em Massachusetts (EUA). Todo o espetáculo dantesco durou um ano (1693-1694) e envolveu 200 acusados. Destes, 30 foram culpados e 19 conheceram a forca. Para bom entendedor, a escolha de um tema por um escritor já serve como meia palavra.

Quem na minha opinião melhor definiu a genialidade do dramaturgo norte-americano foi o crítico Sábato Magaldi (1927-2016) que, na valiosíssima coleção Teatro Vivo, da Abril Cultural, foi lapidar ao falar d’A morte do caixeiro-viajante: “Desde o destemor com que explora o noticiário jornalístico até o aproveitamento da crônica histórica, Arthur Miller revela suas raízes fincadas no realismo. Um realismo moderno e saudável, que não esquece ser o homem o instrumento do teatro, e um homem tanto mais completo quanto melhor testemunha a epopeia terrena.”

O dramaturgo morreu em 10 de fevereiro de 2005 de câncer e problemas cardíacos, com belos e bem vividos 89 anos, em sua fazenda em Roxbury (Connecticut/EUA).

Dentre as muitas frases lapidares que criou, a que mais me fascina é a que diz que o teatro não pode desaparecer porque é a única arte que permite à Humanidade enfrentar-se a si mesma. Willy Loman que o diga. Miller o colocou no palco para que, à nossa maneira, despertássemos das nossas ilusões pueris.

Avelino Alves é dramaturgo.

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Tennessee Williams, do inferno da fama ao ostracismo https://teatrohoje.com.br/2019/11/29/tennessee-williams-do-inferno-da-fama-ao-ostracismo/ Sat, 30 Nov 2019 01:49:02 +0000 http://br1012.teste.website/~beeped34/beepecriaoc/teatrohoje/?p=76190 O dramaturgo norte-americano Tennessee Williams – que conheceu o céu e o inferno durante os 71 anos de sua existência – ainda trocava os dentes de leite quando aprendeu quais eram os ingredientes necessários para se construir um barril de pólvora humano. Sentiu isso na pele porque, afinal de contas, o barril era ele mesmo e a pólvora, claro, o inferno familiar em que estava metido. Sob o teto de uma casa emprestada pela comunidade ao avô materno, que era pastor, os Williams se digladiavam diariamente. O garotinho assustado conviveu com Cornelius Williams, um pai alcoólatra, infiel e ausente do lar; Edwina, uma mãe puritana, reprimida sexualmente e castradora; e Rose, sua irmã, que viria a revelar sérios problemas mentais na adolescência, além de Dakin, o último a nascer e o mais poupado dos infortúnios cotidianos que se abatiam sobre aquela família disfuncional. Cornelius, caixeiro viajante, percorria o país a maior parte do tempo, enquanto as três crianças ficavam aos cuidados da mãe, que os entretinha com leituras de Shakespeare e Charles Dickens. Quando isso acontecia, os anjos tocavam trombetas. Afinal, assim como os filhos, Edwina tolerava em silêncio os gritos do marido e sua selvageria verbal quando estava bêbado. Como bem relembra Dakin, era uma casa onde todo mundo gritava, em especial quando os boletos eram colocados debaixo da porta. A presença paterna na casa só trazia sobressaltos e medos. Tennessee, a vida inteira, insistiu que o pai gostava mais do irmão. Cornelius via no futuro escritor um rapaz fraco, de temperamento frágil e demasiadamente afeminado. Isso acabou empurrando-o para os livros, onde aquela criança franzina e insegura encontrou, enfim, um pouco de guarida e paz. Thomas Lanier Williams, o verdadeiro e pomposo nome do garotinho arredio e olhar triste, não sabia, claro, que estavam sendo erigidos dentro daquelas paredes de tormento os pilares do melhor e mais sólido teatro contemporâneo de que se tem notícia na dramaturgia do século XX. Essa torrente de sofrimento familiar cotidiano legou aos palcos do mundo inteiro verdadeiros clássicos da dramaturgia e personagens que, até hoje, encontram morada nos corações dos espectadores. Em todos os seus trabalhos, Tennessee Williams dissecou como ninguém o tormento, a dúvida, a dor e a carência humanas. O dramaturgo – que adotou o pseudônimo por conta de seu forte sotaque do Sul, motivo de gozação constante dos colegas da universidade de Iowa – escreveu, ao todo, 45 peças longas e 60 de apenas um ato, além de contos, romances, poesia, ensaios, roteiros cinematográficos e um livro de memórias. Foi sua resposta ao mundo para a falta de amor que o cercou. Homossexual assumido, nunca empunhou nenhuma bandeira – aliás, era um conservador nato acerca de costumes e muito reservado, exceto se estivesse bêbado –, mas isso não impediu que vivesse uma vida pessoal e profissional na plenitude. Tennessee Williams não mandava recado. Em seus arroubos, era quase que um macaco numa cristaleira e descompunha quem quer que fosse. Isso, evidente, se necessário fosse. E pagou um preço bastante alto por isso. Todo mundo sabe, mas ninguém diz. Se há uma coisa que o mundo das artes não aceita é a autenticidade. O mais louco dos loucos, entre os artistas, é sempre alguém que faz as estripulias de caso pensado. Você pode até pendurar uma melancia no pescoço, mas deve estar consciente de que, se ela for cortada, azar seu se a polpa não estiver muito doce para os comensais de ocasião. O dramaturgo norte-americano muitas vezes exibia a fruta no pescoço sem nenhum constrangimento – em especial quando aparecia bêbado em entrevistas televisivas. Quem o conhecia sabia que era só uma maneira de a criança que habitava nele defender-se. No entanto, que sumo saía dali, que ambrosia, que manjar dos deuses. Frasista incorrigível, um dia foi perguntado por um jornalista sobre sua homossexualidade. Desconversou, a ponto de se remexer na poltrona, mas se saiu com essa: “Olha, digamos que eu tenha conhecido todos os cais”. No movediço círculo das artes, quando se pergunta a alguém como está, ou a pessoa responde que ótima ou desconversa. A verdade não faz bem a ninguém e foi exatamente a sua verdade que Tennessee Williams esfregou na cara de todo mundo por meio de suas peças. No mesmo diapasão, colheu amor e ódio. A Nova York puritana que lhe abriu as portas do sucesso, no início dos anos 1940, foi a mesma que lhe deu corda para que se enforcasse no começo dos anos 1960, quando a crítica começou a relegá-lo ao ostracismo, acelerando sua queda vertiginosa para o álcool e as drogas. A década de 1960, apesar de todos os seus esforços, não devolveu a fama ao autor. Diga o que se quiser, mas esse período de cerca de duas décadas foi suficiente para que Tennessee Williams dissesse a que veio e nos legasse obras-primas. Ele nunca capitulou. Insistente, sua carreira se estendeu até sua morte – com seus novos trabalhos apresentados em obscuros teatros longe da Broadway e já sem o fôlego necessário para voltar a brilhar. É importante, contudo, destacar que, com suas peças teatrais, Tennessee Williams ganhou os principais prêmios da dramaturgia norte-americana. Embolsou dois Pulitzer por Um Bonde Chamado Desejo (1948) e Gata em teto de zinco quente (1955). Fora isso, papou o premio da New York Drama Critics Circle por À Margem da vida (1944) e A noite do iguana (1961). Em 1952, A Rosa Tatuada recebeu o Tony Award de melhor peça. E o ex-presidente Jimmy Carter lhe concedeu também, em 1980, a Medalha Presidencial da Liberdade. Não é para qualquer um, não. Tennessee Williams teve dois grandes amores em sua vida. Rose, a irmã esquizofrênica que passou toda a sua juventude internada em hospitais psiquiátricos e Frank Merlo, um ator italiano com quem viveu de 1947 a 1963, data da morte de Merlo. Um dia, quando passava uma breve temporada em casa, no início dos anos 1940, Rose atacou o pai a facadas e por pouco não logrou seu intento. A família decidiu fazer lobotomia nela. Era uma intervenção que dava ainda seus primeiros passos. A operação incapacitou-a para o resto de sua vida. Tennessee Williams passou todo o seu calvário existencial apavorado pelo fantasma da loucura. O dramaturgo cuidou da irmã até sua morte. E foi nos braços de Merlo, que morreu por conta de um câncer de pulmão, que o dramaturgo encontrou paz de espírito.  Foi certamente, durante os dezesseis anos que passaram juntos, o período afetivo mais tranquilo desse furacão ambulante. À Margem da Vida, por ter catapultado o jovem Tennessee Williams à fama nos círculos intelectuais e glória nos palcos, também o colocou diante de holofotes que serviram mais para amargurar sua vida que propriamente lustrar seu ego. Ele nunca teve uma relação boa com o sucesso, ainda que gostasse, a ponto de sentir saudades da provinciana Saint Louis. Tinha muito medo de fracassar na peça seguinte. Depois de À Margem, produtores, crítica e público queriam porque queriam um novo texto. E, de quebra, outra obra-prima. Ele teve que se esconder em Saint Louis para parir mais uma história.  Em razão disso, e até para justificar seu terror, escreveu um ensaio memorável sobre esse período, chamado “A catástrofe do sucesso”. Nele, se queixa da saudade dos tempos de extrema pobreza em cubículos pelo país. Em um luxuoso quarto de hotel em Manhattan, teclou furibundo: “A vida que eu levara antes de atingir esse sucesso de público era do tipo que exigia resistência e tenacidade, que me fazia agarrar-me à superfície cheia de arestas que me feriam e me obrigavam a prender-me firmemente, com unhas e dentes, a cada centímetro de pedra colocada mais alto que a precedente – mas era uma vida substancialmente boa porque era do tipo para o qual o organismo humano é criado”. É que, saturado com os elogios, Tennessee Williams temia que os mantras de “adorei sua peça” o matassem por dentro e ele se visse incapaz de escrever outro texto. Para ele, a vida era curta e não voltava nunca mais, razão porque a pureza do coração “é o único sucesso que vale a pena termos”. A ironia é que as suas peças escritas depois de 1960, e praticamente ignoradas pelos produtores, começaram a ser montadas mal o público tinha assimilado seu falecimento.  Tennessee Williams brilhou nos palcos americanos nos anos 1940 e 1950. O publico o amava e parte da critica – que torcia o rosto por achar suas peças superficiais e por demais confessionais – empenhou-se em destruí-lo em trabalhos posteriores. De fracasso em fracasso, ele se escondeu no álcool e drogas e tudo o que escreveu depois da segunda metade dos anos 1960 era objeto de criticas mordazes. O dramaturgo norte-americano, nascido em 26 de março de 1911, em Columbus, no estado do Mississippi, foi encontrado morto supostamente engasgado com a tampa de um frasco de remédio num quarto do Hotel Elysée, em Nova York, no dia 25 de fevereiro de 1983. Antes de partir deste mundo, que o assustava como a uma criança quando chega a noite, tivesse tempo de abrir a janela do solitário quarto daquele hotel nova-iorquino, tendo aos seus pés a cidade que o amou para, em seguida, desprezá-lo, ele certamente gritaria a plenos pulmões a celebre frase de sua personagem principal, Blanche Dubois, quando é levada para um manicômio: “Seja o senhor quem for… eu sempre dependi da bondade dos estranhos…”. A cidade por certo silenciaria. Provavelmente por vergonha.

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Tennessee Williams

Foto de Richard Corkery

O dramaturgo norte-americano Tennessee Williams – que conheceu o céu e o inferno durante os 71 anos de sua existência – ainda trocava os dentes de leite quando aprendeu quais eram os ingredientes necessários para se construir um barril de pólvora humano. Sentiu isso na pele porque, afinal de contas, o barril era ele mesmo e a pólvora, claro, o inferno familiar em que estava metido.

Sob o teto de uma casa emprestada pela comunidade ao avô materno, que era pastor, os Williams se digladiavam diariamente. O garotinho assustado conviveu com Cornelius Williams, um pai alcoólatra, infiel e ausente do lar; Edwina, uma mãe puritana, reprimida sexualmente e castradora; e Rose, sua irmã, que viria a revelar sérios problemas mentais na adolescência, além de Dakin, o último a nascer e o mais poupado dos infortúnios cotidianos que se abatiam sobre aquela família disfuncional.

Cornelius, caixeiro viajante, percorria o país a maior parte do tempo, enquanto as três crianças ficavam aos cuidados da mãe, que os entretinha com leituras de Shakespeare e Charles Dickens. Quando isso acontecia, os anjos tocavam trombetas. Afinal, assim como os filhos, Edwina tolerava em silêncio os gritos do marido e sua selvageria verbal quando estava bêbado. Como bem relembra Dakin, era uma casa onde todo mundo gritava, em especial quando os boletos eram colocados debaixo da porta.

A presença paterna na casa só trazia sobressaltos e medos. Tennessee, a vida inteira, insistiu que o pai gostava mais do irmão. Cornelius via no futuro escritor um rapaz fraco, de temperamento frágil e demasiadamente afeminado. Isso acabou empurrando-o para os livros, onde aquela criança franzina e insegura encontrou, enfim, um pouco de guarida e paz.

Thomas Lanier Williams, o verdadeiro e pomposo nome do garotinho arredio e olhar triste, não sabia, claro, que estavam sendo erigidos dentro daquelas paredes de tormento os pilares do melhor e mais sólido teatro contemporâneo de que se tem notícia na dramaturgia do século XX. Essa torrente de sofrimento familiar cotidiano legou aos palcos do mundo inteiro verdadeiros clássicos da dramaturgia e personagens que, até hoje, encontram morada nos corações dos espectadores.

Em todos os seus trabalhos, Tennessee Williams dissecou como ninguém o tormento, a dúvida, a dor e a carência humanas. O dramaturgo – que adotou o pseudônimo por conta de seu forte sotaque do Sul, motivo de gozação constante dos colegas da universidade de Iowa – escreveu, ao todo, 45 peças longas e 60 de apenas um ato, além de contos, romances, poesia, ensaios, roteiros cinematográficos e um livro de memórias. Foi sua resposta ao mundo para a falta de amor que o cercou.

Homossexual assumido, nunca empunhou nenhuma bandeira – aliás, era um conservador nato acerca de costumes e muito reservado, exceto se estivesse bêbado –, mas isso não impediu que vivesse uma vida pessoal e profissional na plenitude. Tennessee Williams não mandava recado. Em seus arroubos, era quase que um macaco numa cristaleira e descompunha quem quer que fosse. Isso, evidente, se necessário fosse. E pagou um preço bastante alto por isso.

Todo mundo sabe, mas ninguém diz. Se há uma coisa que o mundo das artes não aceita é a autenticidade. O mais louco dos loucos, entre os artistas, é sempre alguém que faz as estripulias de caso pensado. Você pode até pendurar uma melancia no pescoço, mas deve estar consciente de que, se ela for cortada, azar seu se a polpa não estiver muito doce para os comensais de ocasião.

O dramaturgo norte-americano muitas vezes exibia a fruta no pescoço sem nenhum constrangimento – em especial quando aparecia bêbado em entrevistas televisivas. Quem o conhecia sabia que era só uma maneira de a criança que habitava nele defender-se. No entanto, que sumo saía dali, que ambrosia, que manjar dos deuses. Frasista incorrigível, um dia foi perguntado por um jornalista sobre sua homossexualidade. Desconversou, a ponto de se remexer na poltrona, mas se saiu com essa: “Olha, digamos que eu tenha conhecido todos os cais”.

No movediço círculo das artes, quando se pergunta a alguém como está, ou a pessoa responde que ótima ou desconversa. A verdade não faz bem a ninguém e foi exatamente a sua verdade que Tennessee Williams esfregou na cara de todo mundo por meio de suas peças. No mesmo diapasão, colheu amor e ódio.

A Nova York puritana que lhe abriu as portas do sucesso, no início dos anos 1940, foi a mesma que lhe deu corda para que se enforcasse no começo dos anos 1960, quando a crítica começou a relegá-lo ao ostracismo, acelerando sua queda vertiginosa para o álcool e as drogas. A década de 1960, apesar de todos os seus esforços, não devolveu a fama ao autor. Diga o que se quiser, mas esse período de cerca de duas décadas foi suficiente para que Tennessee Williams dissesse a que veio e nos legasse obras-primas. Ele nunca capitulou. Insistente, sua carreira se estendeu até sua morte – com seus novos trabalhos apresentados em obscuros teatros longe da Broadway e já sem o fôlego necessário para voltar a brilhar.

É importante, contudo, destacar que, com suas peças teatrais, Tennessee Williams ganhou os principais prêmios da dramaturgia norte-americana. Embolsou dois Pulitzer por Um Bonde Chamado Desejo (1948) e Gata em teto de zinco quente (1955). Fora isso, papou o premio da New York Drama Critics Circle por À Margem da vida (1944) e A noite do iguana (1961). Em 1952, A Rosa Tatuada recebeu o Tony Award de melhor peça. E o ex-presidente Jimmy Carter lhe concedeu também, em 1980, a Medalha Presidencial da Liberdade. Não é para qualquer um, não.

Tennessee Williams teve dois grandes amores em sua vida. Rose, a irmã esquizofrênica que passou toda a sua juventude internada em hospitais psiquiátricos e Frank Merlo, um ator italiano com quem viveu de 1947 a 1963, data da morte de Merlo.

Um dia, quando passava uma breve temporada em casa, no início dos anos 1940, Rose atacou o pai a facadas e por pouco não logrou seu intento. A família decidiu fazer lobotomia nela. Era uma intervenção que dava ainda seus primeiros passos. A operação incapacitou-a para o resto de sua vida. Tennessee Williams passou todo o seu calvário existencial apavorado pelo fantasma da loucura. O dramaturgo cuidou da irmã até sua morte. E foi nos braços de Merlo, que morreu por conta de um câncer de pulmão, que o dramaturgo encontrou paz de espírito.  Foi certamente, durante os dezesseis anos que passaram juntos, o período afetivo mais tranquilo desse furacão ambulante.

À Margem da Vida, por ter catapultado o jovem Tennessee Williams à fama nos círculos intelectuais e glória nos palcos, também o colocou diante de holofotes que serviram mais para amargurar sua vida que propriamente lustrar seu ego. Ele nunca teve uma relação boa com o sucesso, ainda que gostasse, a ponto de sentir saudades da provinciana Saint Louis. Tinha muito medo de fracassar na peça seguinte. Depois de À Margem, produtores, crítica e público queriam porque queriam um novo texto. E, de quebra, outra obra-prima. Ele teve que se esconder em Saint Louis para parir mais uma história.  Em razão disso, e até para justificar seu terror, escreveu um ensaio memorável sobre esse período, chamado “A catástrofe do sucesso”.

Nele, se queixa da saudade dos tempos de extrema pobreza em cubículos pelo país. Em um luxuoso quarto de hotel em Manhattan, teclou furibundo: “A vida que eu levara antes de atingir esse sucesso de público era do tipo que exigia resistência e tenacidade, que me fazia agarrar-me à superfície cheia de arestas que me feriam e me obrigavam a prender-me firmemente, com unhas e dentes, a cada centímetro de pedra colocada mais alto que a precedente – mas era uma vida substancialmente boa porque era do tipo para o qual o organismo humano é criado”. É que, saturado com os elogios, Tennessee Williams temia que os mantras de “adorei sua peça” o matassem por dentro e ele se visse incapaz de escrever outro texto. Para ele, a vida era curta e não voltava nunca mais, razão porque a pureza do coração “é o único sucesso que vale a pena termos”.

A ironia é que as suas peças escritas depois de 1960, e praticamente ignoradas pelos produtores, começaram a ser montadas mal o público tinha assimilado seu falecimento.  Tennessee Williams brilhou nos palcos americanos nos anos 1940 e 1950. O publico o amava e parte da critica – que torcia o rosto por achar suas peças superficiais e por demais confessionais – empenhou-se em destruí-lo em trabalhos posteriores. De fracasso em fracasso, ele se escondeu no álcool e drogas e tudo o que escreveu depois da segunda metade dos anos 1960 era objeto de criticas mordazes.

O dramaturgo norte-americano, nascido em 26 de março de 1911, em Columbus, no estado do Mississippi, foi encontrado morto supostamente engasgado com a tampa de um frasco de remédio num quarto do Hotel Elysée, em Nova York, no dia 25 de fevereiro de 1983. Antes de partir deste mundo, que o assustava como a uma criança quando chega a noite, tivesse tempo de abrir a janela do solitário quarto daquele hotel nova-iorquino, tendo aos seus pés a cidade que o amou para, em seguida, desprezá-lo, ele certamente gritaria a plenos pulmões a celebre frase de sua personagem principal, Blanche Dubois, quando é levada para um manicômio: “Seja o senhor quem for… eu sempre dependi da bondade dos estranhos…”. A cidade por certo silenciaria. Provavelmente por vergonha.

O post Tennessee Williams, do inferno da fama ao ostracismo apareceu primeiro em Teatro Hoje.

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