A lei de Baumol e a inviabilidade econômica das artes cênicas
É consenso entre os economistas da cultura a importância do livro Performing Arts: The Economic Dilemma, considerado por muitos como uma das primeiras tentativas de investigação econômica sobre as artes cênicas. De fato, qualquer que seja a perspectiva adotada, haverá pressuposta a lei de Baumol: Françoise Benhamou, Harold L. Vogel e Ruth Towse – para ficar nos três nomes mais proeminentes de economistas que refletem sobre o setor cultural – baseiam seus estudos das artes cênicas na teoria de Baumol. Conforme explicita Towse (2010).
The cost disease provides an explanation for the rise in the costs of producing the performing arts; it has also been used to argue for an increase in public subsidy to the arts, though cultural economists (including Baumol and Bowen) make the case for government intervention through welfare economics. (p. 200)
Os economistas William Baumol e William Bowen formularam o seu modelo de fatalidade dos custos aplicado às artes cênicas em 1965, por solicitação da Fundação Ford. Na ocasião, eles desenvolveram uma justificativa econômica para as artes cênicas, comprovando, por estudos de caso e posterior dedução, a especificidade estrutural do setor. O foco fora a Broadway, pois o contexto era estadunidense. Qual seria ela, a especificidade econômica das artes cênicas? Basicamente, os economistas comprovam, por meio de fatos estilizados decorrentes da verificação empírica do setor, que as artes cênicas (a Broadway!) não são viáveis economicamente, dada a impossibilidade de se obter ganhos substanciais de produtividade. Resta-nos entender por quê. Diz Vogel (2011):
It takes as long to play a Brahms concerto today as it did 100 years ago, and a scene by Shakespeare requires the same acting time it did 350 years ago. Meanwhile, over the long run, productivity (output per person-hour) has steadily grown in nearly every other segment of the economy. As it happens, a live performance is unique in that it is itself an end product and is consumed at the point of production. (p. 488)
Diferentemente desse diagnóstico das artes cênicas, nos outros setores tem-se a substituição paulatina de um trabalho intensivo em tempo (em que se utiliza uma grande quantidade de tempo e pouca quantidade de bens, como assistir ao pôr do sol) por um trabalho intensivo em bens (em que utiliza-se pouca quantidade de tempo e uma grande quantidade de bens, como ir a um restaurante fast-food ao invés de cozinhar a própria comida ou contratar uma faxineira ao invés de realizar a própria faxina). Conforme o mercado de trabalho se torna mais valioso, tem-se a substituição das mercadorias intensivas em tempo pelas mercadorias intensivas em bens. Soma-se a isso o aumento dos custos, alinhado ao aumento geral dos preços (inflação) e também ao aumento dos preços dos ingressos, a fim de se remediar os gaps de renda.
Como financiar as artes cênicas se os custos unitários do setor crescem inelutavelmente, devido a uma defasagem de produtividade? Isto é, os espetáculos ao vivo apresentariam invariavelmente déficits crescentes, pois nesse caso não haveria incremento de produtividade, sendo essa última uma unidade de medida (básica ao discurso e à metodologia da engenharia de produção) resultante da razão resultados físicos/hora de trabalho. Um dos meios para se atingir o incremento de produtividade seria, conforme dito acima, a substituição da força de trabalho do homem pela máquina. Há algumas décadas, nos anos 1970 e 1980, essa lógica de substituição motivaria o aparecimento do mito da fábrica escura, isto é, de um ambiente deserto de humanos e povoado apenas por máquinas e robôs, cujo trabalho asseguraria tanto a qualidade quanto a produtividade, tornando também os acidentes de trabalho coisas do passado. Tal mito jamais poderia ser associado às artes cênicas, uma vez que máquinas, equipamentos e tecnologia não seriam os protagonistas desse palco de produção2.
Claro que não se descarta aqui a importância de tais dispositivos para o desenvolvimento das artes cênicas. Basta lembrar de como Jean-Jacques Roubine (1998) inicia o capítulo “O nascimento do teatro moderno”, no influente livro A linguagem da encenação teatral:
Nos últimos anos do século XIX ocorreram dois fenômenos, ambos resultantes da revolução tecnológica, de uma importância decisiva para a evolução do espetáculo teatral, na medida em que contribuíram para aquilo que designamos como o surgimento do encenador. Em primeiro lugar, começou a se apagar a noção das fronteiras, e a seguir, a das distâncias. Em segundo, foram descobertos os recursos da iluminação cênica. (p. 19)
A crescente mobilidade que caracteriza a modernidade, bem como o advento da luz elétrica, se são definitivos para a evolução das artes cênicas (mas, em especial o teatro, foco desta investigação), o são sobretudo esteticamente. Isto é, o surgimento da encenação como arte autônoma, ou princípio estético, conduz a um desenvolvimento teatral que não se traduz necessariamente em um aumento de produtividade associado ao crescimento econômico. Pois, por mais decisivos que os dispositivos tecnológicos sejam para a transformação do espetáculo ao vivo, eles serão (ao que tudo indica, sempre) menos importantes que a tékhne. Mas o que é tékhne? Com a palavra, Philippe Dubois (2004):
Na origem, a tecnologia é simplesmente, e literalmente, um saber-fazer. Como bem lembrou Jean-Pierre Vernant, só foi possível haver tekhné, no sentido clássico (notadamente entre os gregos), no âmago da concepção fundamentalmente instrumentalista de produção humana. É neste sentido que o termo tékhne corresponde estritamente ao sentido aristotélico da palavra arte, que designava não as “belas-artes” (acepção moderna da palavra, que surge no século XVIII), mas todo procedimento de fabricação segundo regras determinadas e resultante na produção de objetos belos ou utilitários. Esses objetos podem ser materiais […] ou intelectuais. […] A tékhne é então, antes de mais nada, uma arte do fazer humano. (p. 32-33)
Se a tékhne é mais importante que a tecnologia nas artes cênicas, isso se dá à centralidade do saber-fazer de atores, encenadores, cenógrafos, figurinistas, iluminadores, dramaturgos, dentre outros profissionais cujo trabalho é tido como um fim em si mesmo, e não como um meio para a fabricação de uma manufatura, por exemplo. Ou, segundo o economista Celso Furtado (2012), um dos nossos primeiros ministros da Cultura:
No mundo das artes, o conceito de trabalho é distinto. Na produção de um espetáculo o trabalho assume outra dimensão – deixa de ser meio para ser fim. Quando se produz um espetáculo – por exemplo, alguém que canta –, o trabalho do artista é um fim e, neste sentido, não pode ser substituído. A rigor, não se pode aumentar a produtividade do artista, coisa distinta de fazê-lo trabalhar mais. Mas o excesso de fadiga poderá comprometer a qualidade do que ele produz. Dessa forma, fora da mudança de suporte, não se pode assimilar a produção cultural às formas correntes de produção. (p. 70)
Implicitamente, o comentário de Furtado evidencia a lógica da lei de Baumol. Pois, o trabalho do performer (acrobata, ator, comediante, músico etc.), sendo um fim em si mesmo, impede o aumento da produção por trabalhador. “It takes four musicians”, esclarece James Heilbrun (2011), “as much playing time to perform a Beethoven string quartet as it did in 1800” (p. 91). Esse seria, portanto, um setor estagnante, ou arcaico.
Se a produtividade (i.e., produção por trabalhador) é estanque (um ator não pode realizar mais espetáculos por hora, como um operário pode produzir mais pregos por minuto), o salário não o é. Pois, os salários dos artistas envolvidos com as artes cênicas cresce conforme o aumento da remuneração em uma sociedade. Mas por que essa remuneração cresce? Segundo Baumol (HEILBRUN, 2011), o crescimento dos salários em uma sociedade resulta do aumento da produtividade física de determinadas atividades econômicas, reunidas sob o setor progressista. A despeito dos ganhos desiguais de produtividade entre os dois setores (a producivity lag), os salários de ambos crescem proporcionalmente, devido a uma espécie de solidariedade do mercado de trabalho:
It is not suggested that artists must be paid the same hourly wage as workers in other jobs, since working conditions and the non-monetary satisfaction obtained from employment differ across occupations. Rather, the argument is that all industries, including the arts, compete to hire workers in a nationally integrated labour market and that artists’ wages must therefore rise over time by the same proportion as wages in the general economy to enable the arts industry to hire the workers it needs to carry on. (Ibid., p. 92)
Desse modo, a lei de Baumol definiria dois setores: um progressista e outro arcaico. De um lado, haveria a possibilidade de substituição de capital por trabalho; de outro, a sua impossibilidade. Uma vez que os salários em ambos os setores crescem proporcionalmente, haveria aí um aumento dos custos do setor arcaico não seguido, todavia, por um aumento de produtividade correspondente. Essa é, basicamente, a lei de Baumol, comprovada pelos autores para diversos casos. O teatro seria teoricamente o caso típico notório devido ao grau mínimo de substituição de trabalho por capital, levando a poucos ganhos de produtividade. Nesse sentido, as artes cênicas são consideradas um caso extremo exemplar, sendo, portanto, um objeto-limite para se avaliar economicamente:
Setores intensivos em capital tenderiam a usufruir de mais ganhos de produtividade. Artes performáticas estão do lado oposto, pois são intensivos em trabalho, e além disso, máquinas, equipamentos e tecnologias têm participações muito restritas na produção, assim como tendem a mudar pouco, não permitindo uma trajetória sustentável de ganhos de produtividade. (NUNES, 2012, p. 18)
Ao longo das mais de quatro décadas que separam o estudo de Baumol e Bowen da presente data, muito se questionou a respeito dessa pesquisa, que tem o epíteto de lei. Enquanto algumas evidências empíricas tratam de não confirmar a lei de Baumol, outros, por sua vez, tratam de questionar os pressupostos desse modelo3. Quanto a essa segunda objeção, o economista brasileiro Alain Herscovici4 (2010) iria, por exemplo, identificar a lógica industrial e fordista subjacente à lei de Baumol, lançando a hipótese de, em um contexto econômico pautado pelas redes eletrônicas e pela economia digital, haver uma modificação do setor das artes cênicas. Seus exemplos, todavia, se referem menos à produção teatral – o caso arquetípico – do que os outros espetáculos ao vivo, como os grupos musicais que disponibilizam gratuitamente na rede as suas produções, tendo as suas receitas associadas às apresentações (o caso mais notório aqui seria a banda Calypso, sendo estudada inclusive por Chris Anderson em seu livro Free).
Sob outra ótica, uma contraevidência à Lei de Baumol seria justamente a Broadway. Conforme destaca Vogel (2011), “it is Broadway – essentially the theater district in New York City – that attracts a significant portion of commercial theater receipts in the United States, that defines an industry, and that is of greatest historical significance” (p. 481). Nesse contexto, um grande musical, como é o caso de Fantasma da ópera, pode negar a lei de Baumol, sendo tão ou mais lucrativo quanto um blockbuster cinematográfico, como Jurassic Park. Mesmo no caso da Broadway, Vogel não hesitaria em dizer, contudo, que 80% dos espetáculos nunca recobram por completo os seus custos. Considerando, em 2010, o custo de montagem de uma peça e de um musical na Broadway, respectivamente, 3 e 20 milhões de dólares, é fácil supor que o financiamento de tais empreendimentos seja realizado por grandes firmas de entretenimento que, dado seu porte, conseguem sobreviver a possíveis fracassos. Essa sobrevivência, muitas vezes, passa por uma estratégia de convergência midiática, por meio da qual um dado espetáculo integra-se a outros meios de expressão, configurando um mix de produtos nivelados sob um tema (lembre-se de Harry Potter: livro, cinema, brinquedos e parques temáticos).
Apesar dos questionamentos, há muitas evidências empíricas que com provam o modelo de Baumol. De acordo com Benhamou (2007), “embora tenham sido raros os testes que não corroboraram a lei de Baumol, essa lei é comprovada na maioria das vezes” (p. 59). No que Heilbrun (2011) concordaria ao afirmar que “the historical record strongly supports the hypothesis that, because of productivity lag, unit costs in the live performing arts have increased substantially faster than the general price level” (p. 93). Vogel (2011), por sua vez, também pontuaria o seguinte: “Empirical studies indeed suggest that ticket prices for live performances have risen at rates consistently higher than that for the consumer price index” (p. 488). Os estudos de Baumol & Bowen, mas também por outros autores em outros países, atestam a lei de Baumol em uma dimensão internacional, sem haver restrição, portanto, territorial. Em conjunto, essas pesquisas apontam, portanto, para uma lógica da atividade econômica em questão.
A fim de se remediar o déficit econômico, muitos espetáculos apostariam na redução de suas equipes de criação e produção e/ou diminuição da quantidade de ensaios, bem como da verba destinada à produção cenográfica e dos outros elementos do espetáculo. Isso seria chamado de déficit artístico, quando há um comprometimento da produção, com a finalidade de garantir a redução dos custos. Essa é uma explicação factível, por exemplo, para a presença de monólogos na cena brasileira em geral, e na carioca em particular. Veja-se a seguinte nota jornalística, de Torres (2014), com a crítica Barbara Heliodora5:
Ela [Heliodora] critica […] o que chama de excesso de monólogos. Nos últimos anos de trabalho no jornal, era esse formato o que mais lhe incomodava. “Eu não aguentava mais! De seis estreias, cinco eram monólogos! Um horror!”. Atualmente, há pelo menos quatro em cartaz no Rio de Janeiro. “Há pouco dinheiro no teatro carioca. Todo teatro feito aqui é com muita dificuldade. Não é como em São Paulo, que em qualquer momento tem 100 peças em cartaz. Aqui, se faz monólogo porque não tem dinheiro para mais. Com três atores no elenco, já é superprodução”.
Nesse caso substitui-se um déficit por outro: o comercial pelo artístico em produções mais enxutas. Mas, segundo Heilbrun (2011), “what makes the performing arts different is that the past provides much of the substance that we want to see performed. We do not want Hamlet with half the characters omitted because of the high cost of labour” (p. 97). Na realidade, a variedade é que conta. Pois, não se pode dizer a priori que uma adaptação de Hamlet, que conta com dezenas de personagens, para um único ator – sendo transformada, portanto, em monólogo – acarretaria necessariamente em um déficit artístico. De fato, como diz o teórico do teatro polônes Jan Kott (2003):
Hamlet não pode ser encenado integralmente, pois a representação duraria cerca de seis horas. É preciso escolher, resumir, cortar. Podemos representar apenas um dos Hamlets latentes nesse superdrama. Será sempre um Hamlet mais pobre que o de Shakespeare, mas pode ser igualmente um Hamlet enriquecido de todo o nosso tempo. Pode ser assim, mas prefiro dizer: deve ser assim. (p. 70)
Assim, uma montagem de Hamlet será sempre pobre em relação à matriz e rica de seu contexto histórico mais imediato. Para que não se permaneça ao nível da especulação téorica, basta dizer o seguinte: Ensaio. Hamlet, das Cia dos Atores – considerado pela extinta revista Bravo como o melhor espetáculo da primeira década de 2000, cuja estreia se deu em 2004 – contava com seis atores (Bel Garcia, César Augusto, Felipe Rocha, Fernando Eiras, Mallu Gali e Marcelo Olinto). Já em Ham-let, do Teatro Oficina – com estreia em 1993, tendo recebido os Prêmios Shell e Mambembe – havia 17 atores, incluindo o diretor José Celso Martinez Correa. A versão do diretor Aderbal Freire-Filho, com Wagner Moura no papel título, contava com dez atores em sua estreia, em junho de 2008. E, em 2013, o grupo iraniano Leev Theater apresentaria em Nova York o monólogo Hamlet, Prince of Grief, sintetizado em uma versão de intensos quarenta minutos. Nesse caso, o ator Afshin Hashemi, sentado diante de uma mesa, manipulava um conjunto de objetos (na maioria, brinquedos infantis) guardados em uma mala.
Ora, os quatro espetáculos aqui mencionados são absolutamente diversos a partir da proposta comum de encenar a história do cidadão mais famoso da Dinamarca, sendo todos muito bem recebidos por público e crítica. A quantidade de atores, portanto, não deve ser uma medida confiável para o
déficit artístico, sendo a fórmula de composição desse indicador muito mais complexa. Pois, a transfiguração das restrições econômicas é uma estratégia teatral bem-sucedida (pense-se, por exemplo, no despojamento anti-intelectualista de Asdrúbal Trouxe o Trombone). Tais exemplos confirmam, com isso, a seguinte colocação de Towse (2010): “There is no reason to suppose that a play with a small cast is any less artistically valuable than one with large cast, though it may indeed have been chosen for economic reasons” (p. 222).