N\u00e3o h\u00e1 outro dramaturgo que tenha se aproximado com tanto carinho dos exclu\u00eddos da sociedade como Pl\u00ednio Marcos. Seu interesse n\u00e3o era apenas tem\u00e1tico, ele realmente se identificava com os marginais a ponto de, no fim da vida, assumir radicalmente ele pr\u00f3prio essa condi\u00e7\u00e3o. Suas mais de quatro dezenas de trabalhos publicados e encenados (entre pe\u00e7as de teatro adulto e infantil, livros de contos, novelas policiais, relatos autobiogr\u00e1ficos e romances) d\u00e3o vida a um elemento invis\u00edvel aos olhos, desses que n\u00e3o fazem parte de estat\u00edsticas oficiais nem s\u00e3o estudados pela Academia, n\u00e3o s\u00e3o citados em f\u00f3runs de debates e n\u00e3o recebem a aten\u00e7\u00e3o da popula\u00e7\u00e3o que, na maior parte das vezes, os evitam quando aparecem pelas ruas & becos.<\/p>\n

Prostitutas, cafet\u00f5es, homossexuais, alcaguetes, meganhas corruptos, traficantes e proxenetas das mais variadas proced\u00eancias alimentavam sua arte como personagens perseguidos que ludibriavam a pol\u00edcia e tentavam a duras penas sobreviver de expedientes pouco louv\u00e1veis, mas sempre respeitando c\u00f3digos de conduta pr\u00f3prios. Afinal, tinham aprendido na porrada a filosofia das ruas desde pequenos. Portanto, nada tinham a perder, a n\u00e3o ser a pr\u00f3pria vida.<\/p>\n

Na sua \u00faltima d\u00e9cada de vida, depois de ter conseguido o reconhecimento da m\u00eddia, o louvor dos cr\u00edticos e a simpatia do p\u00fablico, Pl\u00ednio manteve-se fiel aos seus princ\u00edpios: largou tudo (casa, mulher e filhos) e imergiu nas quebradas do mundar\u00e9u, vivendo de favores e vendendo suas pe\u00e7as (confeccionadas e pagas de seu bolso) nas portas de teatro e locais de grande aflu\u00eancia de poss\u00edveis interessados na sua arte. A galera amiga ficou desorientada. Uns disseram que era um exagero, outros avaliaram como uma atitude de imola\u00e7\u00e3o, uma coer\u00eancia pol\u00edtica e social, uma esp\u00e9cie de op\u00e7\u00e3o de mimetizar os marginais que ele tanto respeitava.<\/p>\n

Um dia, ao receber um pr\u00eamio por sua obra, ele dedicou a estatueta ao Gigetto, o restaurante paulistano que o tinha alimentado (literalmente) durante anos. Noutra dessas noitadas regadas a celebridades, a estarrecida plateia do Teatro Municipal de S\u00e3o Paulo ouviu o seguinte discurso: \u201cJ\u00e1 disse mil vezes: n\u00e3o me deem pr\u00eamios, s\u00f3 quero que os jornais divulguem minhas pe\u00e7as para que o p\u00fablico possa assisti-las nas salas de espet\u00e1culo e eu ganhar algum para montar a seguinte\u201d.<\/p>\n

Tinha sentido: na \u00e9poca, a m\u00eddia o estava boicotando, era esnobado pelos intelectuais e a ditadura fungava em seu cangote, pois ele escancarava as piores mazelas de uma sociedade doente, constrangendo as plateias e as autoridades, que queriam v\u00ea-lo pelas costas. Quando a barra pesou, ficou com a cabe\u00e7a a pr\u00eamio: o plano era sumir com ele. Amigos se reuniram e chegaram \u00e0 conclus\u00e3o que s\u00f3 tendo visibilidade na m\u00eddia e sendo reconhecido pelo p\u00fablico nas ruas, Pl\u00ednio Marcos conseguiria sobreviver a mais aquela prova\u00e7\u00e3o. Um desses amigos era Br\u00e1ulio Pedroso, dramaturgo famoso que resolveu a quest\u00e3o da seguinte maneira: colocou-o como ator de sua telenovela Beto Rockfeller<\/i>, na extinta TV Tupi, em 1968. Seu personagem (o hil\u00e1rio motorista Vit\u00f3rio) brilhou por seu carisma, sua gra\u00e7a irreverente e sua g\u00edria sempre antenada com as veredas sujas de uma megal\u00f3pole decadente que insistia em desviar de pessoas humildes que n\u00e3o tinham nada no bolso, mas viviam da pr\u00f3pria honra. A novela foi um sucesso (durou dois anos) e Pl\u00ednio continuou acrescentando t\u00edtulos a sua carreira de dramaturgo.<\/p>\n

A persegui\u00e7\u00e3o n\u00e3o come\u00e7ou com a ditadura, vinha de longe e n\u00e3o era de gra\u00e7a: Pl\u00ednio tinha montado (ainda em 1959) Barrela<\/i>, a hist\u00f3ria da curra de um jovem numa pris\u00e3o. Seguiram-se: Os Fantoches<\/i> (1960), Quando as M\u00e1quinas param<\/i> (1963), Reportagem de um Tempo Mau <\/em>(1965), Dois Perdidos numa Noite Suja<\/i> (1966) e Navalha na Carne<\/em> (1967), provavelmente seu maior sucesso.<\/p>\n

De Santos para o Brasil e o mundo<\/strong><\/p>\n

Pl\u00ednio Marcos nasceu em Santos, cidade litor\u00e2nea de S\u00e3o Paulo. Foi funileiro, camel\u00f4, jogou futebol no time da Portuguesa Santista, trabalhou no circo (onde aprendeu as manhas do clown) e, sob influ\u00eancia da escritora e jornalista Patr\u00edcia Galv\u00e3o, a Pagu, musa do modernismo, envolveu-se com o teatro. Sua estreia n\u00e3o teve muito \u00eaxito na \u00e9poca: por sua linguagem crua, Barrela <\/i>s\u00f3 teve uma apresenta\u00e7\u00e3o e ficou interditada durante 21 anos pela censura. Em outras palavras: Pl\u00ednio sempre incomodou pelo simples fato de existir, tanto nos regimes democr\u00e1ticos quanto em \u00e9pocas de exce\u00e7\u00e3o. Afinal, ningu\u00e9m quer ver a realidade nua explodindo no palco, na cara de uma burguesia que tem medo, pois pressente que, a qualquer momento, pode ser destronada e perder a boquinha.<\/p>\n

Em 1966, sob a dire\u00e7\u00e3o de Benjamin Cattan, ele e Ademir Rocha interpretam Dois Perdidos Numa Noite Suja<\/em> no Ponto de Encontro, bar da Galeria Metr\u00f3pole, em S\u00e3o Paulo, que marcou sua estreia como profissional. Fez barulho. A pe\u00e7a tocou o cora\u00e7\u00e3o de artistas e do p\u00fablico.<\/p>\n

Pl\u00ednio Marcos j\u00e1 n\u00e3o era mais um desconhecido, tinha angariado a simpatia de grandes nomes do teatro, de atores e atrizes a renomados diretores da \u00e1rea.<\/p>\n

Navalha na Carne<\/i>, sua obra seguinte, enfrenta graves problemas com a Censura. A classe teatral se mobiliza. Leituras no Teatro de Arena e no teatrinho particular de Cacilda Becker e Walmor Chagas re\u00fanem a cr\u00edtica e artistas, que pressionam pela libera\u00e7\u00e3o do texto, permitindo a montagem em 1967. Mas houve um problema: o pungente desempenho de Ruthin\u00e9a de Moraes, vivendo a prostituta explorada pelo gigol\u00f4, fez com que o espet\u00e1culo s\u00f3 fosse liberado para maiores de 21 anos.<\/p>\n

O mesmo papel impulsionou a carreira de T\u00f4nia Carrero, na montagem carioca sob a dire\u00e7\u00e3o de Fauzi Arap, em 1968, no Teatro Maison de France, contracenando com o fabuloso Nelson Xavier e Emiliano Queir\u00f3s. No ano anterior, Pl\u00ednio tinha dirigido outro texto, Quando as M\u00e1quinas Param<\/em>, no Teatro de Arte, sala pequena do TBC, que chamou a aten\u00e7\u00e3o para o trabalho da novata Miriam Mehler. Tamb\u00e9m em 1967, surge nova cria\u00e7\u00e3o, Homens de Papel<\/em>, com Maria Della Costa interpretando a catadora de papel Nhanha, pelo Teatro Popular de Arte – TPA.<\/p>\n

Cr\u00edtica e p\u00fablico ainda n\u00e3o estavam refeitos do impacto dessas montagens, quando Pl\u00ednio manda para a ribalta em 1969 um novo texto, Abajur Lil\u00e1s<\/i>, a hist\u00f3ria da descida aos infernos de tr\u00eas prostitutas numa trajet\u00f3ria abjeta de degrada\u00e7\u00e3o f\u00edsica e moral.<\/p>\n

\u00c9 de se perguntar como que, em t\u00e3o pouco tempo de atividade profissional, ele conseguiu arrebanhar tanta admira\u00e7\u00e3o da classe teatral. Dizer que era pelos seus textos seria uma meia verdade. Pl\u00ednio Marcos era um sedutor nato. \u00c0 revelia da idade que tivesse, parecia ter sempre a jovialidade de um garoto de dezoito anos. Tinha um sorriso moleque encantador. Era carism\u00e1tico. Conseguia atrair jovens e adultos, que formavam \u00e0 sua volta um reduto de f\u00e3s, embevecidos por sua ret\u00f3rica, humor e hist\u00f3rias fant\u00e1sticas que inventava na hora.<\/p>\n

Pl\u00ednio atuava em v\u00e1rias m\u00eddias. Fervoroso defensor dos seus direitos, envolveu-se num caloroso debate, transmitido pela TV, com a deputada Concei\u00e7\u00e3o da Costa Neves, no qual advogava pela sua liberdade de express\u00e3o. J\u00e1 era um nome nacional e, como articulista do jornal \u00daltima Hora, dispunha de uma tribuna para arremeter contra a censura e a ditadura.<\/p>\n

As trevas caem sobre o autor<\/strong><\/p>\n

Sempre insubmisso e nunca admitindo negociar com seus algozes para libera\u00e7\u00e3o de suas pe\u00e7as, depois das montagens de Dois Perdidos<\/em> e Navalha<\/em>, toda sua obra foi proibida pela censura, obrigando-o a viver de bicos jornal\u00edsticos nos raros \u00f3rg\u00e3os da imprensa que aceitavam suas colabora\u00e7\u00f5es.<\/p>\n

A partir da d\u00e9cada de 80, Pl\u00ednio muda um pouco o rumo de seu enfoque dramat\u00fargico em fun\u00e7\u00e3o de sua pr\u00f3pria op\u00e7\u00e3o de vida: interessa-se por assuntos esot\u00e9ricos, por exemplo, e leitura do tar\u00f4. Dessa nova fase, nasce Madame Blavatsky<\/i>, encenada por Jorge Takla em 1985, grande painel sobre a vida da m\u00edstica autora de A Doutrina Secreta<\/i>. E era comum v\u00ea-lo todo de preto, portando um cajado com uma cruz na ponta, pronunciando longos discursos para plateias especiais a respeito de temas que normalmente n\u00e3o fariam parte de seus temas habituais. Mas era apenas a performance de um ator fora do palco, ele n\u00e3o tinha abdicado um cent\u00edmetro de suas convic\u00e7\u00f5es pol\u00edticas e sociais.<\/p>\n

Tanto que n\u00e3o esqueceu de suas ra\u00edzes: em 1986, encena Balada de um Palha\u00e7o<\/i>, com dire\u00e7\u00e3o de Odavlas Petti, uma abordagem l\u00edrica sobre dois palha\u00e7os de circo que dividem o picadeiro e que se alfinetam um ao outro (como dois clowns de Beckett) rumo ao entendimento. H\u00e1 humor, h\u00e1 tristeza e uma ponta de amargura.<\/p>\n

Depois disso, publicou em livro e montou outras pe\u00e7as, como A Manche Roxa<\/i> (1988), O Assassinato do An\u00e3o do Caralho Grande<\/em> (1995), O Bote da Loba<\/i> (1997) e deixou inacabado o texto Chico Viola<\/i>, uma homenagem (\u00e0 sua maneira) ao cantor Francisco Alves, o mesmo que tinha feito no musical Noel Rosa, o Poeta da Vila e seus Amores, de 1977.<\/em><\/p>\n

Pl\u00ednio Marcos foi traduzido, publicado e encenado em franc\u00eas, espanhol, ingl\u00eas e alem\u00e3o; sua obra foi tema de teses de sociolingu\u00edstica, semiologia, psicologia da religi\u00e3o, dramaturgia e filosofia, em universidades do Brasil e do exterior.<\/p>\n

Recebeu os principais pr\u00eamios nacionais em todas as atividades nas quais atuou (teatro, cinema, televis\u00e3o e literatura), como ator, diretor, escritor e dramaturgo.<\/p>\n

Sua sa\u00fade entrou em decl\u00ednio a partir de agosto de 1999 em virtude do diabetes, quando sofreu um derrame cerebral que deixou sequelas: seu lado esquerdo ficou paralisado, incapacitando sua respira\u00e7\u00e3o sem o aux\u00edlio de aparelhos. Depois do segundo derrame, no fim de outubro, foi internado no Instituto do Cora\u00e7\u00e3o, em S\u00e3o Paulo, com infec\u00e7\u00e3o pulmonar. Faleceu dois dias depois, aos 64 anos de idade.<\/p>\n

Afirmar que Pl\u00ednio foi e continua sendo um autor maldito \u00e9 pouco. Ele revolucionou a arte dramat\u00fargica de tal maneira que nada depois dele foi o mesmo. Ningu\u00e9m pode hoje negligenciar suas li\u00e7\u00f5es e voltar a fazer um teatro certinho & ass\u00e9ptico, com mensagens subliminares, s\u00edmbolos e met\u00e1foras, pois seu estilo desbocado e expl\u00edcito escancarou a possibilidade de acertar na jugular da vida sem medir consequ\u00eancias. Afinal, \u00e9 para isso que existe a arte do teatro: abrir os olhos dos que ainda hesitam em aceitar a verdade.<\/p>\n

As avalia\u00e7\u00f5es efusivas de cr\u00edticos como S\u00e1bato Magaldi, Anatol Rosenfeld, D\u00e9cio de Almeida Prado, Yan Michalski, Eneida de Moraes, B\u00e1rbara Heliodora e Jo\u00e3o Apolin\u00e1rio n\u00e3o deixam d\u00favida alguma sobre a import\u00e2ncia de Pl\u00ednio Marcos como dramaturgo, escritor e jornalista, tendo reabilitado os di\u00e1logos coloquiais (recheados de jarg\u00f5es e g\u00edrias de grupos apartados da sociedade), at\u00e9 ent\u00e3o considerados simples grosserias pelos intelectuais babacas e reacion\u00e1rios que n\u00e3o conseguiam aceitar a realidade.<\/p>\n

\nDi\u00e1logos poss\u00edveis & imposs\u00edveis<\/strong>
\nDa mesma forma que \u00e9 pertinente dizer que a escrita naturalista e os personagens de Pl\u00ednio Marcos dialogam diretamente com a literatura de Marcos Rey (O Enterro da Cafetina<\/i>, Mem\u00f3rias de um Gigol\u00f4<\/i>), Ant\u00f4nio Fraga (Desabrigo <\/i>e Outros Trecos<\/i>), Carolina Maria de Jesus (Quarto de Despejo<\/i>) e, mais especificamente, com Jo\u00e3o Ant\u00f4nio (Perus, Malagueta e Bacana\u00e7o<\/i> e Le\u00e3o de Ch\u00e1cara<\/i>), tamb\u00e9m \u00e9 l\u00edcito argumentar que h\u00e1 diferen\u00e7as fundamentais de prop\u00f3sitos nos tr\u00eas primeiros: enquanto Rey desenvolvia uma fic\u00e7\u00e3o mais insolente, Fraga contrapunha o submundo (conte\u00fado) a uma sofistica\u00e7\u00e3o estil\u00edstica (forma) que desconcertou at\u00e9 Oswald de Andrade. Por sua vez, Carolina tinha a inten\u00e7\u00e3o mais documental e jornal\u00edstica, ao passo que Jo\u00e3o Ant\u00f4nio foi o herdeiro inquestion\u00e1vel tanto de Pl\u00ednio Marcos quanto de Lima Barreto ao colocar na linha de frente personagens esquecidos da sociedade e mostrar que a vida e a gangorra econ\u00f4mica s\u00e3o mais complicadas do que se imagina.<\/p>\n

O importante \u00e9 saber que Pl\u00ednio Marcos n\u00e3o estava s\u00f3 nessa cruzada. Muitos nomes do teatro e da literatura tamb\u00e9m se preocuparam em recuperar do olvido personagens esquecidos e encurralados pelo preconceito e a intoler\u00e2ncia de classes sociais cru\u00e9is e violentas, mas foi ele sem d\u00favida que soube dar-lhes voz com mais propriedade, pois amava de todo o cora\u00e7\u00e3o essa gente perdida, transformando-a em dignos seres humanos pelo menos no teatro.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

N\u00e3o h\u00e1 outro dramaturgo que tenha se aproximado com tanto carinho dos exclu\u00eddos da sociedade como Pl\u00ednio Marcos. Seu interesse n\u00e3o era apenas tem\u00e1tico, ele realmente se identificava com os marginais a ponto de, no fim da vida, assumir radicalmente ele pr\u00f3prio essa condi\u00e7\u00e3o. Suas mais de quatro dezenas de trabalhos publicados e encenados (entre pe\u00e7as de teatro adulto e infantil, livros de contos, novelas policiais, relatos autobiogr\u00e1ficos e romances) d\u00e3o vida a um elemento invis\u00edvel aos olhos, desses que n\u00e3o fazem parte de estat\u00edsticas oficiais nem s\u00e3o estudados pela Academia, n\u00e3o s\u00e3o citados em f\u00f3runs de debates e n\u00e3o recebem a aten\u00e7\u00e3o da popula\u00e7\u00e3o que, na maior parte das vezes, os evitam quando aparecem pelas ruas & becos. Prostitutas, cafet\u00f5es, homossexuais, alcaguetes, meganhas corruptos, traficantes e proxenetas das mais variadas proced\u00eancias alimentavam sua arte como personagens perseguidos que ludibriavam a pol\u00edcia e tentavam a duras penas sobreviver de expedientes pouco louv\u00e1veis, mas sempre respeitando c\u00f3digos de conduta pr\u00f3prios. Afinal, tinham aprendido na porrada a filosofia das ruas desde pequenos. Portanto, nada tinham a perder, a n\u00e3o ser a pr\u00f3pria vida. Na sua \u00faltima d\u00e9cada de vida, depois de ter conseguido o reconhecimento da m\u00eddia, o louvor dos cr\u00edticos e a simpatia do p\u00fablico, Pl\u00ednio manteve-se fiel aos seus princ\u00edpios: largou tudo (casa, mulher e filhos) e imergiu nas quebradas do mundar\u00e9u, vivendo de favores e vendendo suas pe\u00e7as (confeccionadas e pagas de seu bolso) nas portas de teatro e locais de grande aflu\u00eancia de poss\u00edveis interessados na sua arte. A galera amiga ficou desorientada. Uns disseram que era um exagero, outros avaliaram como uma atitude de imola\u00e7\u00e3o, uma coer\u00eancia pol\u00edtica e social, uma esp\u00e9cie de op\u00e7\u00e3o de mimetizar os marginais que ele tanto respeitava. Um dia, ao receber um pr\u00eamio por sua obra, ele dedicou a estatueta ao Gigetto, o restaurante paulistano que o tinha alimentado (literalmente) durante anos. Noutra dessas noitadas regadas a celebridades, a estarrecida plateia do Teatro Municipal de S\u00e3o Paulo ouviu o seguinte discurso: \u201cJ\u00e1 disse mil vezes: n\u00e3o me deem pr\u00eamios, s\u00f3 quero que os jornais divulguem minhas pe\u00e7as para que o p\u00fablico possa assisti-las nas salas de espet\u00e1culo e eu ganhar algum para montar a seguinte\u201d. Tinha sentido: na \u00e9poca, a m\u00eddia o estava boicotando, era esnobado pelos intelectuais e a ditadura fungava em seu cangote, pois ele escancarava as piores mazelas de uma sociedade doente, constrangendo as plateias e as autoridades, que queriam v\u00ea-lo pelas costas. Quando a barra pesou, ficou com a cabe\u00e7a a pr\u00eamio: o plano era sumir com ele. Amigos se reuniram e chegaram \u00e0 conclus\u00e3o que s\u00f3 tendo visibilidade na m\u00eddia e sendo reconhecido pelo p\u00fablico nas ruas, Pl\u00ednio Marcos conseguiria sobreviver a mais aquela prova\u00e7\u00e3o. Um desses amigos era Br\u00e1ulio Pedroso, dramaturgo famoso que resolveu a quest\u00e3o da seguinte maneira: colocou-o como ator de sua telenovela Beto Rockfeller, na extinta TV Tupi, em 1968. Seu personagem (o hil\u00e1rio motorista Vit\u00f3rio) brilhou por seu carisma, sua gra\u00e7a irreverente e sua g\u00edria sempre antenada com as veredas sujas de uma megal\u00f3pole decadente que insistia em desviar de pessoas humildes que n\u00e3o tinham nada no bolso, mas viviam da pr\u00f3pria honra. A novela foi um sucesso (durou dois anos) e Pl\u00ednio continuou acrescentando t\u00edtulos a sua carreira de dramaturgo. A persegui\u00e7\u00e3o n\u00e3o come\u00e7ou com a ditadura, vinha de longe e n\u00e3o era de gra\u00e7a: Pl\u00ednio tinha montado (ainda em 1959) Barrela, a hist\u00f3ria da curra de um jovem numa pris\u00e3o. Seguiram-se: Os Fantoches (1960), Quando as M\u00e1quinas param (1963), Reportagem de um Tempo Mau (1965), Dois Perdidos numa Noite Suja (1966) e Navalha na Carne (1967), provavelmente seu maior sucesso. De Santos para o Brasil e o mundo Pl\u00ednio Marcos nasceu em Santos, cidade litor\u00e2nea de S\u00e3o Paulo. Foi funileiro, camel\u00f4, jogou futebol no time da Portuguesa Santista, trabalhou no circo (onde aprendeu as manhas do clown) e, sob influ\u00eancia da escritora e jornalista Patr\u00edcia Galv\u00e3o, a Pagu, musa do modernismo, envolveu-se com o teatro. Sua estreia n\u00e3o teve muito \u00eaxito na \u00e9poca: por sua linguagem crua, Barrela s\u00f3 teve uma apresenta\u00e7\u00e3o e ficou interditada durante 21 anos pela censura. Em outras palavras: Pl\u00ednio sempre incomodou pelo simples fato de existir, tanto nos regimes democr\u00e1ticos quanto em \u00e9pocas de exce\u00e7\u00e3o. Afinal, ningu\u00e9m quer ver a realidade nua explodindo no palco, na cara de uma burguesia que tem medo, pois pressente que, a qualquer momento, pode ser destronada e perder a boquinha. Em 1966, sob a dire\u00e7\u00e3o de Benjamin Cattan, ele e Ademir Rocha interpretam Dois Perdidos Numa Noite Suja no Ponto de Encontro, bar da Galeria Metr\u00f3pole, em S\u00e3o Paulo, que marcou sua estreia como profissional. Fez barulho. A pe\u00e7a tocou o cora\u00e7\u00e3o de artistas e do p\u00fablico. Pl\u00ednio Marcos j\u00e1 n\u00e3o era mais um desconhecido, tinha angariado a simpatia de grandes nomes do teatro, de atores e atrizes a renomados diretores da \u00e1rea. Navalha na Carne, sua obra seguinte, enfrenta graves problemas com a Censura. A classe teatral se mobiliza. Leituras no Teatro de Arena e no teatrinho particular de Cacilda Becker e Walmor Chagas re\u00fanem a cr\u00edtica e artistas, que pressionam pela libera\u00e7\u00e3o do texto, permitindo a montagem em 1967. Mas houve um problema: o pungente desempenho de Ruthin\u00e9a de Moraes, vivendo a prostituta explorada pelo gigol\u00f4, fez com que o espet\u00e1culo s\u00f3 fosse liberado para maiores de 21 anos. O mesmo papel impulsionou a carreira de T\u00f4nia Carrero, na montagem carioca sob a dire\u00e7\u00e3o de Fauzi Arap, em 1968, no Teatro Maison de France, contracenando com o fabuloso Nelson Xavier e Emiliano Queir\u00f3s. No ano anterior, Pl\u00ednio tinha dirigido outro texto, Quando as M\u00e1quinas Param, no Teatro de Arte, sala pequena do TBC, que chamou a aten\u00e7\u00e3o para o trabalho da novata Miriam Mehler. Tamb\u00e9m em 1967, surge nova cria\u00e7\u00e3o, Homens de Papel, com Maria Della Costa interpretando a catadora de papel Nhanha, pelo Teatro Popular de Arte – TPA. Cr\u00edtica e p\u00fablico ainda n\u00e3o estavam refeitos do impacto dessas montagens, quando Pl\u00ednio manda para a ribalta em 1969 um novo texto, Abajur Lil\u00e1s, a hist\u00f3ria da descida aos infernos de tr\u00eas prostitutas numa trajet\u00f3ria abjeta de degrada\u00e7\u00e3o f\u00edsica e moral. \u00c9 de se perguntar como que, em t\u00e3o pouco tempo de atividade profissional, ele conseguiu arrebanhar tanta admira\u00e7\u00e3o da classe teatral. Dizer que era pelos seus textos seria uma meia verdade. Pl\u00ednio Marcos era um sedutor nato. \u00c0 revelia da idade que tivesse, parecia ter sempre a jovialidade de um garoto de dezoito anos. Tinha um sorriso moleque encantador. Era carism\u00e1tico. Conseguia atrair jovens e adultos, que formavam \u00e0 sua volta um reduto de f\u00e3s, embevecidos por sua ret\u00f3rica, humor e hist\u00f3rias fant\u00e1sticas que inventava na hora. Pl\u00ednio atuava em v\u00e1rias m\u00eddias. Fervoroso defensor dos seus direitos, envolveu-se num caloroso debate, transmitido pela TV, com a deputada Concei\u00e7\u00e3o da Costa Neves, no qual advogava pela sua liberdade de express\u00e3o. J\u00e1 era um nome nacional e, como articulista do jornal \u00daltima Hora, dispunha de uma tribuna para arremeter contra a censura e a ditadura. As trevas caem sobre o autor Sempre insubmisso e nunca admitindo negociar com seus algozes para libera\u00e7\u00e3o de suas pe\u00e7as, depois das montagens de Dois Perdidos e Navalha, toda sua obra foi proibida pela censura, obrigando-o a viver de bicos jornal\u00edsticos nos raros \u00f3rg\u00e3os da imprensa que aceitavam suas colabora\u00e7\u00f5es. A partir da d\u00e9cada de 80, Pl\u00ednio muda um pouco o rumo de seu enfoque dramat\u00fargico em fun\u00e7\u00e3o de sua pr\u00f3pria op\u00e7\u00e3o de vida: interessa-se por assuntos esot\u00e9ricos, por exemplo, e leitura do tar\u00f4. Dessa nova fase, nasce Madame Blavatsky, encenada por Jorge Takla em 1985, grande painel sobre a vida da m\u00edstica autora de A Doutrina Secreta. E era comum v\u00ea-lo todo de preto, portando um cajado com uma cruz na ponta, pronunciando longos discursos para plateias especiais a respeito de temas que normalmente n\u00e3o fariam parte de seus temas habituais. Mas era apenas a performance de um ator fora do palco, ele n\u00e3o tinha abdicado um cent\u00edmetro de suas convic\u00e7\u00f5es pol\u00edticas e sociais. Tanto que n\u00e3o esqueceu de suas ra\u00edzes: em 1986, encena Balada de um Palha\u00e7o, com dire\u00e7\u00e3o de Odavlas Petti, uma abordagem l\u00edrica sobre dois palha\u00e7os de circo que dividem o picadeiro e que se alfinetam um ao outro (como dois clowns de Beckett) rumo ao entendimento. H\u00e1 humor, h\u00e1 tristeza e uma ponta de amargura. Depois disso, publicou em livro e montou outras pe\u00e7as, como A Manche Roxa (1988), O Assassinato do An\u00e3o do Caralho Grande (1995), O Bote da Loba (1997) e deixou inacabado o texto Chico Viola, uma homenagem (\u00e0 sua maneira) ao cantor Francisco Alves, o mesmo que tinha feito no musical Noel Rosa, o Poeta da Vila e seus Amores, de 1977. Pl\u00ednio Marcos foi traduzido, publicado e encenado em franc\u00eas, espanhol, ingl\u00eas e alem\u00e3o; sua obra foi tema de teses de sociolingu\u00edstica, semiologia, psicologia da religi\u00e3o, dramaturgia e filosofia, em universidades do Brasil e do exterior. Recebeu os principais pr\u00eamios nacionais em todas as atividades nas quais atuou (teatro, cinema, televis\u00e3o e literatura), como ator, diretor, escritor e dramaturgo. Sua sa\u00fade entrou em decl\u00ednio a partir de agosto de 1999 em virtude do diabetes, quando sofreu um derrame cerebral que deixou sequelas: seu lado esquerdo ficou paralisado, incapacitando sua respira\u00e7\u00e3o sem o aux\u00edlio de aparelhos. Depois do segundo derrame, no fim de outubro, foi internado no Instituto do Cora\u00e7\u00e3o, em S\u00e3o Paulo, com infec\u00e7\u00e3o pulmonar. Faleceu dois dias depois, aos 64 anos de idade. Afirmar que Pl\u00ednio foi e continua sendo um autor maldito \u00e9 pouco. Ele revolucionou a arte dramat\u00fargica de tal maneira que nada depois dele foi o mesmo. Ningu\u00e9m pode hoje negligenciar suas li\u00e7\u00f5es e voltar a fazer um teatro certinho & ass\u00e9ptico, com mensagens subliminares, s\u00edmbolos e met\u00e1foras, pois seu estilo desbocado e expl\u00edcito escancarou a possibilidade de acertar na jugular da vida sem medir consequ\u00eancias. Afinal, \u00e9 para isso que existe a arte do teatro: abrir os olhos dos que ainda hesitam em aceitar a verdade. As avalia\u00e7\u00f5es efusivas de cr\u00edticos como S\u00e1bato Magaldi, Anatol Rosenfeld, D\u00e9cio de Almeida Prado, Yan Michalski, Eneida de Moraes, B\u00e1rbara Heliodora e Jo\u00e3o Apolin\u00e1rio n\u00e3o deixam d\u00favida alguma sobre a import\u00e2ncia de Pl\u00ednio Marcos como dramaturgo, escritor e jornalista, tendo reabilitado os di\u00e1logos coloquiais (recheados de jarg\u00f5es e g\u00edrias de grupos apartados da sociedade), at\u00e9 ent\u00e3o considerados simples grosserias pelos intelectuais babacas e reacion\u00e1rios que n\u00e3o conseguiam aceitar a realidade. Di\u00e1logos poss\u00edveis & imposs\u00edveis Da mesma forma que \u00e9 pertinente dizer que a escrita naturalista e os personagens de Pl\u00ednio Marcos dialogam diretamente com a literatura de Marcos Rey (O Enterro da Cafetina, Mem\u00f3rias de um Gigol\u00f4), Ant\u00f4nio Fraga (Desabrigo e Outros Trecos), Carolina Maria de Jesus (Quarto de Despejo) e, mais especificamente, com Jo\u00e3o Ant\u00f4nio (Perus, Malagueta e Bacana\u00e7o e Le\u00e3o de Ch\u00e1cara), tamb\u00e9m \u00e9 l\u00edcito argumentar que h\u00e1 diferen\u00e7as fundamentais de prop\u00f3sitos nos tr\u00eas primeiros: enquanto Rey desenvolvia uma fic\u00e7\u00e3o mais insolente, Fraga contrapunha o submundo (conte\u00fado) a uma sofistica\u00e7\u00e3o estil\u00edstica (forma) que desconcertou at\u00e9 Oswald de Andrade. Por sua vez, Carolina tinha a inten\u00e7\u00e3o mais documental e jornal\u00edstica, ao passo que Jo\u00e3o Ant\u00f4nio foi o herdeiro inquestion\u00e1vel tanto de Pl\u00ednio Marcos quanto de Lima Barreto ao colocar na linha de frente personagens esquecidos da sociedade e mostrar que a vida e a gangorra econ\u00f4mica s\u00e3o mais complicadas do que se imagina. O importante \u00e9 saber que Pl\u00ednio Marcos n\u00e3o estava s\u00f3 nessa cruzada. Muitos nomes do teatro e da literatura tamb\u00e9m se preocuparam em recuperar do olvido personagens esquecidos e encurralados pelo preconceito e a intoler\u00e2ncia de classes sociais cru\u00e9is e violentas, mas foi ele sem d\u00favida que soube dar-lhes voz com mais propriedade, pois amava de todo o cora\u00e7\u00e3o essa gente perdida, transformando-a em dignos seres humanos pelo menos no teatro.<\/p>\n","protected":false},"author":10,"featured_media":73551,"comment_status":"closed","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"_acf_changed":false,"footnotes":""},"categories":[677],"tags":[],"acf":[],"yoast_head":"\n