fbpx

COMO CONSTRUIR A VERDADE ATRAVÉS DA MENTIRA

Um pressuposto precisa ficar bem claro: vida é uma coisa, teatro é outra completamente diferente. O escritor americano Mark Twain foi bem taxativo quanto a isso:

A única diferença entre a ficção e a realidade é que a ficção deve ser verossímil.

Ou seja, ao ser questionado sobre a falsidade (ou implausibilidade) de determinada cena, não adianta o candidato a dramaturgo alegar que aquele episódio realmente aconteceu, ele estava presente, viu com seus próprios olhos. Isso nunca será um álibi satisfatório. Quando passa para o palco, a realidade vira teatro e a cena deve seguir outras regras de verossimilhança interna. Às vezes, é necessário trair a realidade (fazer alguns ajustes) para que ela se encaixe num formato previamente consentido e se transforme em ficção. É um engano achar que a descrição o mais fiel possível de um episódio realmente acontecido ou vivido na pele pelo autor garante sua verossimilhança literária.

Um dia, fomos – eu e minha mulher – visitar um casal de amigos nossos (mais meus do que dela, como se perceberá a seguir, em função das observações de minha companheira). Para efeitos práticos, vamos batizar a mulher do casal de Joana.

O marido veio nos receber. Entramos. Sentamos. Ele nos serviu bebidas. Joana já vem, ele disse, acabou de acordar. Depois de um tempo, ela entrou: parecia uma pétala de rosa ou um arbusto flagrado ao acaso num jardim qualquer. Simples, sem pintura, rosto apenas lavado, cabelos esvoaçantes, alguns cachos lhe caindo naturalmente pelo pescoço. Sentou-se e começamos a conversar. Findo o colóquio, saímos e fomos para casa.

Você percebeu?, perguntou minha mulher. O quê?, eu disse. Ela deve ter ficado pelo menos uma hora e meia no banheiro para sair daquele jeito. Estranhei a colocação. Como assim?, exclamei, ela estava como sempre. Exato, rebateu minha companheira, ela se empetecou o bastante para parecer natural. Os cabelos, por exemplo. Cabelos normais não ficam daquele jeito. Ela os trabalhou o suficiente para que ficassem plausivelmente casuais, como se tivesse levantado da cama àquela hora. Só que a verdade não é essa.

Mulher conhece mulher, pensei. Sabe das manhas e artimanhas. O que minha companheira tinha acabado de fazer não era uma simples observação ferina. Era a teoria da verossimilhança aplicada à vida real, ao cotidiano. O que vemos pode ser uma ilusão. A realidade pode confundir as pessoas mais simplórias ou desatentas. A construção de uma trama ficcional e mesmo a caracterização de uma personagem devem levar em conta esse tipo específico de fenômeno: a traição da realidade em função de um efeito plástico premeditado. Em outras palavras: a construção da verossimilhança usa técnicas especiais para que o espectador acredite na naturalidade da cena ou nos movimentos dos personagens dentro de uma trama.

Joana se submetera deliberadamente a um banho de artifícios até que sua naturalidade parecesse natural, espontânea. Do contrário, é bem provável que isso não acontecesse. Explicando melhor: se Joana não tivesse ficado hora e meia no banheiro construindo sua naturalidade, se ela tivesse acabado de acordar e viesse nos receber, ela não pareceria natural? Pareceria, claro. Mas seria um outro tipo de naturalidade. Possivelmente, estaria com os cabelos desalinhados, um vinco na pele do rosto denotaria um contato mais prolongado com o travesseiro, os olhos estariam avermelhados. Ou (horror dos horrores!) com remelas.

Tanto na vida como no teatro, é preciso saber que tipo de naturalidade queremos passar para o espectador, com uma finalidade específica.

Peter Brook, diretor e grande teórico de teatro, em seu livro A Porta Aberta (1993), diz algo parecido em relação à atuação de atores profissionais numa peça, em contraponto com pessoas comuns atuando na realidade.

Ele conta que, em 1968, havia pessoas que, por motivos muito justificáveis, cansadas de tanto “teatro morto”, sustentavam que “a vida é teatro” e, portanto, não haveria necessidade de arte, de técnica, de estruturas. Eles diziam: “O teatro está em toda parte, o teatro acontece à nossa volta. Todos nós somos atores, podemos fazer qualquer coisa diante de qualquer um, tudo é teatro”.

Diante dessa colocação, ele pergunta: O que há de errado nesta afirmação? Ele mesmo responde:

Um simples exercício pode esclarecer a questão. Peçam a uma pessoa qualquer caminhar de um lado a outro de um espaço. Até um perfeito idiota é capaz disso, só teria que caminhar. Em seguida, peçam-lhe para imaginar que está carregando nas mãos um jarro precioso. Ele terá que caminhar devagar, tomando o cuidado para não derramar uma só gota de seu conteúdo. Qualquer um pode fazer isso também. Depois, peçam-lhe para imaginar que, durante a caminhada, o jarro escorrega de suas mãos e se espatifa no chão, derramando todo o conteúdo. Aí, ele vai se complicar. Tentará interpretar a cena e seu corpo será possuído pela pior espécie de atuação artificial, amadorística, tornando a expressão de seu rosto “teatral” – ou seja, horrivelmente falsa.

Brook continua:

Realizar esta ação aparentemente simples de modo que pareça tão natural quanto uma simples caminhada requer toda a competência de um artista altamente profissional.

Deu seguimento à sua tese com uma grande sacada:

Qualquer ideia tem que se materializar em carne, sangue e realidade emocional: tem que ir além da imitação, para que a vida inventada seja também uma vida paralela, que não se possa distinguir da realidade em nível algum.

E conclui:

Vamos ao teatro para um encontro com a vida, mas se não houver diferença entre a vida lá fora e a vida em cena, o teatro não terá sentido. Não há razão para fazê-lo. Se aceitarmos, porém, que a vida no teatro é mais visível, mais vívida do que lá fora, então veremos que é a mesma coisa e, ao mesmo tempo, um tanto diferente.

Em seu romance A Humilhação (2009), o escritor americano Philip Roth pega o mesmo tema pelos colarinhos: um ator de teatro clássico perde a magia: não consegue mais interpretar, não consegue mais encarnar os personagens que o tornaram famoso, está decadente, está acabado. Em seu último trabalho no palco, não existiu autenticidade, a credibilidade foi pras cucuias e amargou um fracasso retumbante. A plateia até riu dele. Roth vai mais longe: Simon Axler percebe que até nos atos mais triviais do cotidiano não consegue ser verossímil, seus gestos são impostados, falsos, tudo que faz tem uma premeditação fria, não dá a vazão necessária para que o acaso se interponha entre a realidade e o ato de viver. Além de morto como ator, ele está acabado como ser humano. Sua redenção só virá no final do livro, numa cena trágica de arrepiar.

Então: o dramaturgo é o profissional de teatro que detecta a verdadeira realidade e, através de técnicas específicas, transforma-a em ficção. Para isso, emprega artifícios para que ela se mostre naturalmente natural, da mesma forma que Joana esculpiu sua naturalidade dentro da vida real – e da mesma forma (em sentido inverso) que o personagem de Roth perdera a capacidade de ser plausível em seu dia-a-dia. Mais que isso: para captar a verdadeira realidade, o dramaturgo tem que ser um ótimo observador, no sentido de detectar esses macetes, pois nem todos os personagens da vida real são maus “atores”, nem todos (segundo a concepção de Peter Brook) são “teatrais”, ou seja, falsos. Um dramaturgo desatento ou ingênuo embarcaria na encenação de naturalidade de Joana e a descreveria de maneira errada ou parcial, comprometendo o significado da cena.

Esse talvez seja o maior paradoxo da arte em geral e, em particular, do teatro: a veracidade; construir algo em que se possa crer cegamente, partindo de uma realidade sem o menor sentido. Pois, antes de emocionar, precisamos ser críveis. Para isso, o autor tenta copiá-la o mais corretamente possível. Mas ela é imperfeita. Na vida, não há histórias nem personagens coerentes ou congruentes. Há o acaso que entra pelos poros do cotidiano e detona todo nosso raciocínio. Quando menos se espera, algo aleatório (proveniente das profundezas do cosmo ou do passado) desvirtua nossa expectativa. O teatro, pelo contrário, tem de ser redondo, harmonioso, tudo no seu devido lugar, não pode deixar pontas soltas (inclusive nos textos mais transgressivos); os personagens devem agir com uma finalidade precípua, de acordo com os parâmetros previamente acertados com a plateia.