Como todo fenômeno que envolve celebridades do rock, muitas lendas surgiram ao longo do tempo sobre a banda britânica Rolling Stones. Levando em conta que Keith Richards nunca teve problemas com drogas, só com a polícia, como ele mesmo disse numa entrevista, propagou-se a previsão de que ele seria um dos primeiros a ir conversar com seus antepassados antes da hora, pois sua vida era uma overdose só. A realidade encarregou-se de desmentir essa teoria, pois Brian Jones e Charlie Watts se foram antes dele.
Em seguida, surgiu outra lenda que contrariava a anterior: a de que, por ser o mais longevo dos Stones, teria feito um pacto com o diabo e viveria para sempre. A piada é boa, mas não procede: Mick Jagger tem a mesma idade que ele (78 anos). Portanto, também teria sua dose de longevidade.
A assessoria de imprensa diz que foi com base nesta mitologia que Eduardo Nunes, Leonardo Corajo e Sérgio Medeiros se inspiraram para escrever o texto de Que mundo deixaremos para Keith?, (sic) “uma reflexão bem-humorada sobre os rumos da educação e da cultura no Brasil de hoje”.
Com direção de Denise Stutz e atuação dos atores Leonardo Corajo e Sérgio Medeiros, a peça poderia ter aproveitado a oportunidade para afirmarque devemos tomar uma atitude drástica para não deixar para nossos descendentes um mundo indigno de ser vivido em sua plenitude. As escolas poderão ruir por dentro e por fora e o saber, a ciência e a arte, dentro de pouco tempo, serão apenas peças de museu, descansando em pedestais ladeados por múmias, dinossauros e máscaras egípcias.
Por que todos esses verbos no condicional? Porque não é isso que o espectador vê e ouve durante a peça. O que é encenado é uma sucessão de colagens de textos que priorizam a memória dos dois atores ao relembrarem o que aprenderam ou desaprenderam durante as aulas.
Essas reminiscências, no entanto, não formam um conjunto coeso, ficam jogadas, não configuram uma dramaturgia em tom crescente, pelo contrário: é constrangedor perceber a falta de sintonia e sincronia entre os atores e o texto, entre o texto e o objetivo da mensagem, entre a mensagem e a atuação da diretora. Dá a impressão de que tudo foi mal colado com fita durex e que se desprende ao menor contato com os parâmetros do teatro.
Mesmo dando um desconto (pois a estreia é sempre tumultuada), algumas perguntas se fazem necessárias. Com qual intuito os autores deram esse título se, em momento algum, Keith Richards é mencionado no texto? Acaso pressentiram que seria redundante, pois, afinal, todo mundo sabe quem é Keith e sua lenda? E se não souberem? Fica por isso mesmo? Foi conveniente o texto ser escrito por três caras, cada qual com suas lembranças escolares, para depois editar tudo sem o menor critério de continuidade?
Foi vantajoso para o resultado final optar pela metalinguagem ao entremear essas lembranças dos atores com ajustes de luz, mexidas nos objetos de cena e recomeçar duas ou três vezes a peça com repetições de frases inteiras (pouco significativas, aliás)?
No meio do espetáculo, porém, rola uma situação inusitada, quando Sérgio Medeiros lê num livro a definição de afasia. Afasia é uma disfunção de linguagem que pode envolver deficiência na compreensão e sua consequente e interminável repetição de palavras. Esta última frase é replicada três ou quatro vezes seguidas, como se eles se dessem conta do que estariam fazendo, numa espécie de autoparódia.Resta saber se isso também foi aleatório ou uma iluminação de cunho autocrítico.
Mas é pouco. Para fazer jus à sinopse divulgada pela assessoria de imprensa, ainda falta muito. O humor, por exemplo, está sem timing, é comedido e tímido. E o drama de pressentir que a pedagogia está indo pras cucuias não rende de maneira adequada no sentido de alertar o que o título sugere. Com Keith ou sem Keith.