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CORAÇÃO DE CAMPANHA / Um épico da DR
Por que o amor acaba? A Humanidade debruçou-se sobre este tema durante séculos e não conseguiu responder satisfatoriamente a essa questão (complexa por natureza), pois cada caso é um caso e todo casal tem suas próprias carências e comprometimentos. Aliás, a coisa começou bem antes. Existe realmente o amor? Filósofos, psicólogos, teólogos, sociólogos e todos os outros ólogos que você conheça já tentaram defini-lo, mas nenhum deles conseguiu sequer roçar sua superfície.
Honey, I ́m home. Com esta frase, os filmes americanos nos passaram a ideia de que a felicidade de um casal residia num lar onde o homem chega do trabalho e encontra a esposa na cozinha terminando o jantar, enquanto os pimpolhos assistem a desenhos animados na TV. De qualquer forma, havia uma outra frase que completava o raciocínio: a house is not a home. Ou seja: tinha que ter amor. Só as paredes não resolviam o assunto.
Mas os tempos mudaram e a doce esposinha deixou a cozinha de lado e passou a argumentar, criticando, admoestando e desaprovando determinadas atitudes do macho, que se retraiu em seu casulo. Surgiu a popular DR – discussão do relacionamento, que passou a significar um diálogo franco entre um homem e uma mulher, cada qual expondo suas argumentações com a finalidade de resolver pendências incubadas.
Coração de Campanha, escrita e interpretada por Clarice Niskier, fazendo par com Ísio Ghelman (uma espécie de John Malkovich menos gay, mas tão cínico quanto) resolveu enfrentar essa parada com inteligência e jogo de cintura. Muito humor, algum ódio latente, considerações não feitas na hora adequada. Cada qual com suas convicções, os dois se digladiam como num ringue de box. A luta está pau a pau, quando, durante a pandemia, resolvem se separar.
O problema é que ninguém aguenta mais DR. Quantas peça de teatro e filmes já foram feitos sobre o assunto? Centenas, milhares. Alguns trabalhos foram melhor sucedidos que outros mas, com certeza, nenhum deles se tornou um épico do gênero, pois a repetição cansa e, por mais inéditas que sejam as contestações, algo se perde no meio do caminho.
Será o interesse? Essa controvérsia começou a ficar fora de moda? De que maneira construir uma querela que já deu o que tinha de dar? Será o amor uma disfunção endócrina? A libido cai quando as glândulas param de excretar
os hormônios do apetite sexual? A energia vital do amor dependerá disso? Afinal, o que é fundamental para que dois seres humanos resolvam se abrigar sob o mesmo teto?
Pois bem, Clarice Niskier, provavelmente uma das maiores atrizes do teatro brasileiro, conseguiu fazer esse o épico que faltava. Usando recursos dramatúrgicos geniais e sinceros, escreve e interpreta com o útero, desnuda-se de forma genuína, utiliza inclusive uma espécie de metalinguagem, fazendo com que o real e o fictício se imbriquem na maior simplicidade, sem que isso se torne um entrave ao entendimento da trama. É fera, é afetiva, é paradoxal, indo e vindo, mordendo e assoprando. Ísio não fica atrás: é um sparring à altura, por vezes compreendendo, às vezes, se defendendo, noutras manipulando e, por fim, aceitando a separação.
A conversa é variada e eclética: rupturas, amizade, amor, sexo, casamento envelhecimento, perdas, desilusões, dinheiro, sobrevivência, pandemia, transformações sociais, arte. Tudo entra no jogo. É lá e cá, uma no cravo, outra na ferradura, mas a alternância de amor e ódio precisa ser melhor trabalhada, há lapsos de continuidade que necessitam de uma enzima dramatúrgica para que aconteçam mais naturalmente. Não basta simplesmente mudar a luz.
Temos que louvar a intenção de Clarice em tentar questionar tudo isso sem resvalar em clichês ou chavões clássicos. Justamente pelo fato de o texto estar acima da média, temo que os espectadores não estejam à altura da inteligência e capacidade da autora. Como diria Clarice, a vida a dois é como um filme pornô: pode agradar, mas não satisfaz.
Coração de campanha está em temporada no Teatro PetraGold. Veja informações, sinopse, endereço, horários e ingressos em https://teatrohoje.com.br/2022/06/17/coracao-de-campanha-2/