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O BALCÃO / A leitura precisa de Renato Carrera

É impressionante a capacidade que o autor francês Jean Genet tinha de driblar com elegância o maniqueísmo. Em suas obras teatrais, apesar de usar as palavras com o objetivo de trucidar a hipocrisia das pessoas e autoridades, jamais foi explícito. Conscientemente, tinha autêntica aversão ao didatismo e não abria mão de dizer as coisas de forma oblíqua. Seus textos não são fáceis. Pelo contrário: quando o espectador começa a entender a trama, ele muda o rumo, pegando uma variante inesperada. Em geral, suas frases contemplam a possibilidade de perceber a inconstância da alma humana, empregando a múltipla versatilidade dos vocábulos, da mesma forma que o uruguaio Juan Carlos Onetti fazia em seus romances e contos.
Era um obsessivo. Provavelmente, escrevia e reescrevia seus textos teatrais com a intenção de colocar uma espécie de pátina sobre as ideias, imergindo-as num pântano lodoso, mas sem perder a pegada. Não queria ser incompreensível, mas não gostava de simplicidades gratuitas. Não é só isso: atores e atrizes têm que rebolar para seguir as rubricas bizarras do autor: depois de desfilar uma saraivada de crueldades na maior truculência, ele tem de parar,
olhar para o lado e soltar um sorriso cínico ou até soltar uma sonora gargalhada. Ou seja, além de entender as palavras do texto, também é obrigado a perceber a intenção oculta do
autor.
Por isso, a tarefa de Renato Carrera ao fazer uma nova encenação de O Balcão travestia-se de uma dificuldade latente, principalmente para quem viu a revolucionária montagem de Victor Garcia no Teatro Ruth Escobar em 1968. Surpresa ou não [pois sua carreira (sem trocadilho) tem altos e baixos], ele saiu-se muito bem. Considerou como uma missão: idealizou o espetáculo, encomendou nova tradução, ensaiou exaustivamente e misturou atores experientes com novatos.
Em cena, Alexandre Barros, Andreza Bittencourt, Carmen Frenzel, Fernanda Sal, Ivson Rainero, Jean Marcel Gatti, José Karini, Lucas Oradovschi, Ricardo Lopes e Yumo Apurinã dão tudo que sabem. Há desnível entre os atores? Há, mas isso não importa. Diante da imensa empreitada e do resultado, o saldo é positivo.
É possível fazer recriminações em relação a algumas opções dramatúrgicas? Sem dúvida, mas isso também não importa. O texto de Genet é tão completo e abrangente, que essas vaciladas podem ser minimizadas ou simplesmente esquecidas. Mas vale lembrar algumas: será realmente necessário intercalar no meio da peça um texto que fala das barbaridades cometidas no Brasil nos últimos anos na voz do ator Yumo, que faz o papel de um indígena? Tenho minhas dúvidas, pois era justamente o que Genet evitava. Se o texto é atemporal e serve em qualquer latitude do globo, não precisaria que fosse localizado geograficamente.
O mesmo vale para o momento em que o elenco todo canta o Hino da Independência no meio na encenação. Não carece. É explícito, é didático. Todo mundo já entendeu. Lá se vão 54 anos da primeira montagem e 66 anos da existência do texto, que é de 1956 e ele continua tão atual e denso como sempre foi.

A rigor, a trama é simples: O Balcão é ambientado em uma cidade sem nome que está passando por um levante revolucionário nas ruas; a maior parte da ação ocorre em um bordel sofisticado que funciona como um microcosmo do regime que recebe a ameaça externa. O cinismo de Genet fica claro quando ele coloca num espaço regido por uma cafetina os representantes dos três pilares da sociedade: um bispo, um general e um magistrado digladiam-se para ver quem de fato detém o poder. Igreja, Exército e Justiça revesam-se em cenas hilariantes e proféticas, mas não desprovidas de sensualidade.
Embora o elenco seja eclético, vale ressaltar as atuações primorosas de Andrezza Bittencourt, José Karini e Carmen Frenzel. A leitura determinante, rigorosa e precisa do diretor Renato Carrera rege e nivela os vários graus de contratempos e dificuldades provenientes do desnível de talento dos atores, montando um bem-sucedido amálgama que, no final das contas, resulta num espetáculo imperdível.
Infelizmente, a trilha sonora é irritante, uma mistura de música de elevador com suspense obsessivo de filmes B. A peça já é obsessiva o suficiente. Dá a impressão de que o DJ não entendeu o texto.

O balcão está em cartaz na Arena do Sesc Copacabana. Veja informações sobre horário, ingressos e endereço em https://teatrohoje.com.br/2022/07/03/o-balcao/