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Crônica singela sobre o vírus do teatro
Bons tempos aqueles em que quarentena era o limbo para onde mandávamos os vírus que nos infernizavam o micro e danificavam os arquivos. Ninguém nunca se debruçou com seriedade sobre esse local emblemático que deve estar nas entranhas de algum buraco negro do antivírus, nem o que acontece com eles. Proliferam-se nesse cativeiro? Ficam isolados uns dos outros, infectam-se mutuamente? Ficam num estágio larvar ou entram num estado de mutação? Estariam à espera de um vacilo qualquer para poder escapar e voltar à ativa?
O curioso é que, nas pandemias, não são os vírus que ficam em quarentena, mas os seres humanos, as pessoas. Nessa situação diametralmente oposta, somos nós que esperamos um vacilo do vírus para escapar e voltarmos à ativa.
Numa analogia pertinente, lembramos da metáfora do vírus do teatro que geralmente nos infecta na infância ou na adolescência ou no primeiro contato com o palco e do qual muito dificilmente conseguimos nos livrar. Ele fica latente dentro de nós, atacando todas as células e criando anticorpos contra a formalidade da vida.
O vírus do teatro é uma bênção e uma maldição. Depois que se instala, nunca mais conseguimos ser os mesmos de antes. É como um novo órgão que pulsa & respira de acordo com o ritmo de um monastério budista. Ou algo no gênero. É uma segunda vida que corre paralela à nossa. Nos tornamos um duplo de nós mesmos. Nos tornamos uma espécie de reféns da criatividade. Um ator jamais conseguirá enxergar a realidade como ela é de fato, estará sempre num eterno distanciamento crítico, pois a multiplicidade de opções desvirtua o senso comum.
O teatro reverencia o matrimônio do céu com o inferno e nos abre as portas da percepção, como dizia Blake.
O vírus do micro em quarentena; as pessoas em quarentena por causa do vírus. Bom tema para uma live. Cada qual em seu cativeiro. Cada um aguardando o eventual vacilo do outro. Uma espera que angustia. O tempo suspenso no nada. O isolamento sublinhado por traços da saudade e da esperança.
Se o dramaturgo focar no comportamento do vírus do micro que se sente preterido pelo resto do sistema, tem sérios problemas de autoestima, pois é caçado impiedosamente, pode virar uma comédia.
Se focar no artista contaminado pelo vírus do teatro aguardando a liberação do confinamento para que a covid não neutralize suas ações, pode virar um drama.
Se o dramaturgo conseguir fazer um link entre essas duas configurações diametralmente opostas, pode ganhar o prêmio Shell de melhor texto.